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COORDENADAS FILOSÓFICAS DO PENSAMENTO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA

Manuel Ferreira Patrício (Universidade de Évora)

I

Colhemos no texto “Defesa do Livro Intitulado «Quinto Império», que é a apologia do livro Clavis Prophetarum e respostas das proposições censuradas pelos Inquisidores, estando recluso nos cárceres do Santo Ofí- cio de Coimbra”, informações preciosas a respeito da formação intelectu- al do Padre António Vieira, espécie de fragmentos autobiográficos.1 Pois vejamos.

Aos dezassete anos de idade, os seus prelados encomendaram-lhe as cartas ânuas da Província portuguesa da Companhia, as quais seguiram para Roma historiadas na língua latina2.

Aos dezoito anos fizeram-no os prelados mestre de primeira, tendo nesse âmbito comentado as tragédias de Séneca, “de que até então não havia comento”3.

Aos dezanove e aos vinte começa a carreira, digamos assim, de co- mentador das Escrituras Sagradas: com um comentário literal e moral sobre Josué e outro sobre os Cantares de Salomão em cinco sentidos. Ainda nos vinte, estuda Filosofia. Com o êxito que o acompanhava em

1 Inserto em Obras Escolhidas, Volume VI, Obras Várias (IV), Livraria Sá da Costa,

Lisboa, 1952, pp. 157-158, 159, 165.

2

Ib., p. 157.

3

tudo, segundo parece. Nas suas próprias palavras, “no mesmo tempo compus uma filosofia própria”4. É a hora da Teologia:

[…] e passando à Teologia, me consentiram os meus prelados que não tomasse postila, e que eu compusesse por mim as matérias, como com efeito compus, que estão na mesma Província”5.

Foi eleito mestre de Teologia aos trinta anos. A restauração da inde- pendência interrompeu este seu magistério, vindo do Brasil para “este Reino” de Portugal6. Onde continuou “os mesmos estudos”, com a apli-

cação que todos sabem, sendo mais morador da livraria que do cubícu- lo”7. Que quer dizer “os mesmos estudos”? Só a Teologia? A Teologia e

as Escrituras? Tudo o que sabemos aponta para as Escrituras e a Teolo- gia, sem destaque para a Filosofia.

As suas “peregrinações de Holanda, França, Inglaterra e Itália”, pe- regrinações de Estado, não prejudicaram esses estudos, antes os favorece- ram, num certo sentido. Diz-nos ele: “[…] pude ver as melhores livrarias do Mundo e tratar os homens mais doutos […]”8. Refere Vieira, neste

ponto, o seu conhecimento das terras e mares, que muito o ajudaram nes- sas diplomáticas andanças9. Esse conhecimento cosmográfico aliou ele ao conhecimento histórico: da história profana, eclesiástica e sagrada. Juntou assim a cosmografia dos espaços e a “cronologia dos tempos, ordem e sucessão das idades do Mundo, da Igreja e dos homens grandes que nele e nela floresciam”10. O conhecimento desses homens compreendia as suas

obras e a leitura das mesmas nas fontes, “principalmente as dos Santos Padres e expositores da Escritura, a qual passei por vezes toda, e mais particularmente os livros proféticos”11. Importante será para nós darmos

conta do paradigma da sua leitura, que não é científico no sentido moder- no, nem é também filosófico no sentido do racionalismo estrito. O que ele procurava, e procurou com constância, foi insistir sempre “no sentido

4 Ib., p. 158. 5 Ib., p. 158. 6 Ib., p. 158. 7 Ib., p. 158. 8 Ib., p. 158. 9 Ib., p. 158. 10 Ib., p. 158. 11 Ib., p. 158.

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genuíno e radical pretendido pelo Espírito Santo”12, afastando-se do tipo

exegético e hermenêutico de leitura que era então “o estudo ordinário dos Portugueses”, estilo de diversão em folhas e em flores13. Aqui aparece a

dimensão lógica do pensar e do escrever de Vieira, que afirma que do seu método de leitura dos textos sagrados era parte hegemónica a procura da “coerência de uns lugares com outros, de modo que todos se pudessem entender concordemente, sem contradição ou repugnância alguma em todo o Texto Sagrado”14.

Notáveis nos parecem ser estas indicações de autobiografia intelec- tual de António Vieira, configuradoras de uma sua antecipada obra de Verdade e Método, como no século XX veio a fazer Gadamer15. É ao Tri- bunal do Santo Ofício, à Inquisição, aos Inquisidores, que Vieira expõe o seu método de leitura do Texto Sagrado. Ironia dramática, ironia no fun- do trágica.

O texto que vimos analisando é de 1666. É o ano do 58º aniversário de António Vieira. Do que vimos, ressaltam algumas dimensões da sua personalidade intelectual. Há outras, estruturais. A do orador sacro, por exemplo. Vieira refere-a na representação que endereça aos Inquisidores. Fala dos “assuntos de seus sermões e matéria e eficácia deles e [d’] as doutrinas de todos os domingos, uma que fazia na Matriz aos Índios na sua língua, e outra aos estudantes em português no seu Colégio, a que concorria todo o povo”16. Isto no Brasil. Há que acrescentar o que ocorreu

em Portugal. Os Sermões estão aí. Conhecemo-los. Outra dimensão estrutural foi a política.

Este homem definiu muito cedo um projecto de vida, a que se dedi- cou todo. A filosofia não entrou directamente nesse projecto; quer dizer, teleonomicamente. Estava destinada a ser meramente instrumental, anci- lar. Não estava a filosofia, nem mesmo a teologia. Ele o diz e explica aos Inquisidores. Ouçamo-lo também nós algum tanto:

12 Ib., pp. 158-159. 13 Ib., p. 159. 14 Ib., p. 159. 15

GADAMER, Hans-Georg, Verdad y método – Fundamentos de una hermenêutica filosófica, 2 vols., (1984 e 19942), Salamanca, Ediciones Sígueme.

16 VIEIRA, António, Obras Escolhidas, Volume VI, Obras Várias (IV), da Livraria

Mas vindo ao particular da Fé: de idade de dezassete anos fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos Gentios e doutrinar aos no- vamente convertidos, e para isso me apliquei às duas línguas do Brasil e Angola, de que usam os gentios e cristãos boçais daquela província. E porque para este ministério me não era necessário mais ciência que a doutrina cristã, pedi aos Superiores me tirassem dos estudos, porque não queria curso nem Teologia, e cedia dos graus da Religião que a ele e ela se seguem. E posto que os Supe- riores mo não quiseram conceder, antes me tiraram a obrigação do voto, e o Padre Geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e insistir nele, até que ultimamente o consegui, indo-me para o Ma- ranhão tanto contra a vontade de El-rei e do Príncipe, como é notó- rio […]17.

Coisas extraordinárias fez o espantoso jesuíta nessa linha missioná- ria da sua vida, de que damos apenas, de momento, o exemplo dos cate- cismos que elaborou. Diz ele:

[…] compus no mesmo tempo, com excessiva diligência e traba- lho, seis catecismos, que continham em suma todos os mistérios da Fé e a doutrina cristã em seis línguas diferentes: um na língua geral da costa do mar, outro na dos Nheengaíbas, outro na dos Bocas, outro na dos Jurimanas e dois na dos Tapuias […]18.

Supomos que se terão perdido estes catecismos, bem como a “filoso- fia própria” e as matérias de Teologia a que atrás fizemos referência. Admitimos que algum exemplar deles se encontre nos Arquivos do Vati- cano.

Aristotélico-tomista não pode deixar de ter sido a formação filosófi- ca de António Vieira, que de qualquer modo não foi muito extensa nem profunda. E já não era entre os jesuítas tão rigorosa como antes fora. De Aristóteles podemos pressupor em Vieira influências da lógica, fontes da retórica, da poética, da ética, da política, da física, da psicologia e certa- mente poucas da metafísica. De São Tomás de Aquino, as influências principais terão sido, com grande probabilidade, as defluentes da Summa Theologiae. Não encontramos referências a Pedro da Fonseca, havendo- -as a Luis de Molina, que àquele deve a ciência média. Poderíamos espe- rar que Vieira conhecesse, e utilizasse, a Isagoge Filosófica, as Institui-

17

Ib., p. 165.

18

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ções Dialécticas e os Comentários à Metafísica de Aristóteles, de Fonse- ca.

Sendo aristotélico-tomista a sua matriz filosófica, deve notar-se a sua simpatia por Santo Agostinho, referenciado e referido em muitas pas- sagens da sua obra, e a presença sempre aureolada de grandeza de Platão.

II

Filosoficamente, ainda que inserido na atmosfera neoescolástica de pensamento filosófico e filosófico-teológico que era a da Companhia de Jesus e da Península Ibérica, que era a do seu espaço e do seu tempo, Vi- eira procurou sempre pensar por si. É o significado que atribuímos à sua confissão, já mencionada, de que fez a sua própria filosofia e a sua “maté- ria de teologia”. “Tratados” lhes chama o Padre António Lopes.

Essa sua inata tendência para a originalidade de pensamento vamos nós encontrar na História do Futuro. Começa Vieira assim, fazendo lem- brar o começo da Metafísica de Aristóteles:

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais con- forme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capaci- dade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história.19

Nova e nunca vista – fixemos. Procurando justificar a originalidade da obra, escreve pouco depois:

Não escrevemos com Beroso as antiguidades dos Assírios, nem com Xenofonte as dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josefo a dos Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedó- nios, nem com Tucídides a dos Gregos, nem com Lívio a dos Ro- manos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escre- vemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para os futuros, nós escre- vemos a do futuro para os presentes.”20.

19 VIEIRA, Padre António, Obras escolhidas, Volume VIII, História do Futuro (I),

Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1953, Capítulo I, p. 1

20

Vieira afirma, pois, a radical novidade e originalidade da sua obra. Põe também à vista a sua dificuldade, que todavia espera superar: “Im- possível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa História.”21 Novidade, originalidade, dificul-

dade: três marcas identitárias, três características singulares, da História do Futuro, da obra. Outra, e última: a solidão do autor no seu esforço. Lemos, quase comovidos:

Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nu- vens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lu- mes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.22

Queremos chamar a atenção para um facto que reputamos do maior significado e importância para o entendimento do intento visado por Viei- ra com a História do Futuro, a Clavis Prophetarum e o que veio há pou- cos anos a ser publicado com o título Apologia das coisas profetizadas. O facto é este: Vieira distingue, ao iniciar a sua obra, entre falar para o Mundo e falar para os Portugueses. No capítulo I da História do Futuro, fala para o Mundo; no II, fala para os Portugueses. Não é interpretação nossa; é declaração expressa sua. Lemos: “No capítulo passado falámos com todo o Mundo; neste só com Portugal.”23 Porque nos parece tão

significativa e importante esta distinção? É o caso que há interpretes mui- to qualificados da doutrina vieirina do Quinto Império que, comparando a exposição da mesma na História do Futuro e na Clavis Prophetarum, interpretam a ausência quase total de Portugal na segunda como um sinal de evolução num dado sentido – mais escatológico e quase nada utópico – do pensamento de Vieira sobre este fulcral ponto, aproximando Sam- paio Bruno de Vieira e arredando deste Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. Nós pensamos que o Padre Vieira teve muito cuidado e prudência quando escreveu a Clavis Prophetarum. Ele quis convencer o Mundo, que era então, para o efeito, a Europa. Portugal é ocultado, fica encoberto. Escreveu, aliás, em latim. Só agora começamos a ter a Clavis em língua

21 Ib., p. 6. 22 Ib., pp. 9-10. 23 Ib., p. 10.

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portuguesa. O Mundo não queria saber para nada de D. João IV como monarca do Quinto Império Consumado de Cristo. O Mundo também era a Espanha e a Inquisição espanhola. Também era a Cúria Romana e o Papa. E a França. Não nos parece, pois, que tenha havido uma como que retractação de Vieira, ou mero recuo nas suas concepções, da primeira obra para a segunda, mas um prudente movimento táctico. Que quer Viei- ra com o discurso ao Mundo? Prometer grandes futuros ao desejo. E com o discurso a Portugal? Assegurar breves desejos ao futuro24. Tudo, no que

nos diz respeito, prevenindo “alguma emulação estrangeira”25.

III

Logo a abrir a sua História do Futuro tece Vieira subtis e profundas considerações sobre a eternidade, o tempo e a ciência. Luis de Molina não é citado, ou referenciado, mas está presente. Como presente está, ine- vitavelmente, Pedro da Fonseca, não referenciado aqui nem em lugar ne- nhum.

Escreve Vieira que Deus sempre reservou para si, excluindo os ho- mens, “a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade”26. Por

sua eternidade, forçoso é que a Deus “todos os futuros lhe sejam presen- tes”27. Já “o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência

ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futu- ro nada”28. Não referenciando neste ponto nem Fonseca nem Molina, Vi-

eira referencia, contudo, Platão e mesmo o cita: “A ciência dos futuros – disse Platão – é a que distingue os deuses dos homens”29. Todavia, desde

o Paraíso sempre os homens tiveram “aquele antiquíssimo apetite de se- rem como deuses”30.

Belíssima figuração do tempo faz Vieira um pouco adiante, ainda dentro do desenho dos seus prolegómenos à História do Futuro. Pois consideremo-la:

24 Ib., p. 10. 25 Ib., p. 17. 26 Ib., p. 1. 27 Ib., p. 1. 28 Ib., p. 1. 29 Ib., p. 2. 30 Ib., p. 2.

O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e vi- sível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa.31

Já se sabia, no século de Vieira, que a Terra era esférica, com um hemisfério norte e um hemisfério sul e, ao meio entre os dois, um equa- dor. Disso tem Vieira experiência viva e vivida. Sabe por inteiro do que fala. Bem distinta da de Santo Agostinho, nas Confissões, é a sua intuição interna do tempo. Para Agostinho, “o tempo é uma certa distensão”32.

Para Vieira, é a projecção metafísica do espaço. O sujeito humano que pensa e fala – o je, o eu, do cogito cartesiano, descoberto e formulado espacialmente ali ao lado de Vieira –, ocupa o ponto medial do presente. Ele o sabe e o assume:

Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste se- gundo hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado.33

Na disquisição do pensador português está presente, e latejante, toda a experiência portuguesa dos Descobrimentos. Já fizéramos o descobri- mento do espaço terráqueo. Vieira quer empreender o descobrimento do tempo, do tempo do Mundo. Quer levar-nos a ver, já, desde agora, os an- típodas do passado. Exclama: “Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!”34. Diremos, para concluir esta nossa

breve deriva, que é visível haver em Vieira uma filosofia mínima do tem- po. Seja-nos permitido pôr em evidência um aspecto fundamental dessa filosofia, que iremos encontrar em Leibniz e Kant. Para o primeiro, o es- paço é a ordem das coexistências e o tempo a ordem das sucessões. Para o segundo, fugindo ao real – ao contrário do que faz Vieira e faz Leibniz –, o espaço e o tempo são formas a priori da sensibilidade. Mais uma vez, Vieira corre a sua corrida, solitariamente. Mas corre bem. E corre antes.

31

Ib., p. 7.

32

SANTO AGOSTINHO, Confissões, Livro XI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2001, pp. 285-317.

33 VIEIRA, P.de António, Obras escolhidas, Volume VIII, História do Futuro (I), Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1953, Capítulo I, p. 7.

34

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Nós apontamos para Fonseca e Molina logo que vemos Vieira a falar de ciência dos futuros. Mas talvez não tenha sido a doutrina filosófico- -teológica da ciência média aquela em que mais solidamente se apoiou o Padre Vieira, senão que na Sagrada Escritura. Ele nos diz que as profeci- as de uma boa parte da sua História “são as do mesmo Apocalipse”35,

“este prodigioso livro do futuro”36.

IV

Encontramos também, na História do Futuro, ainda no que o autor chama o Prolegómeno da obra, o que consideraremos ser uma filosofia da verdade. Prudentemente diremos, como a respeito do tempo, uma filoso- fia mínima da verdade, a qual integra uma tipologia das verdades. Eis as verdades do primeiro tipo, ou género: as que se encontram “nas profecias canónicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canónicos, por concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos Padres”37. As que destes, “as-

sim profetizadas e conhecidas, por natural consequência, se deduzirem, […] são verdades segundas que participam a mesma certeza também in- falível, qual é a das conclusões teológicas […]”38, são as verdades do se-

gundo tipo, ou género. Eis as verdades do terceiro tipo, ou género: “As profecias não canónicas podem ser tão evidentemente provadas por seus efeitos, […], que tenham toda a certeza moral, que é a que depois da fé e da ciência têm no juízo humano o maior assento”39. As verdades do quar-

to tipo ou género, são aquelas que “ficam dentro dos limites da probabili- dade opinativa”40. Terão “somente certeza provável”41.

Em síntese: nas do primeiro género, verdades com certeza de fé; nas do segundo, verdades com certeza teológica; nas do terceiro, verdades com certeza moral; nas do quarto, verdades com certeza provável. Fun-

35 Ib., p. 67. 36 Ib., p. 67. 37 Ib., p. 134. 38 Ib., p. 134. 39 Ib., p. 134. 40 Ib., p. 135. 41 Ib., p. 135.

damento último: “o mesmo Deus”42. Temos aqui, em sistema, desenhada

a epistemologia vieirina.

V

Escreveu o Padre António Lopes, jesuíta, um livro excelentíssimo sobre o Padre António Vieira. É o título desse livro algo intrigante: Viei- ra, o Encoberto. 74 anos de evolução da sua utopia43. A investigação que sustenta o livro é exaustiva, de rigor absoluto, de intocável seriedade. So- bre a formação de Vieira e sua relação com a filosofia, parece-nos obra de indispensável leitura e estudo.

O cerne do livro reside talvez na palavra utopia. É a partir dela, e da respectiva fundamentação, que o autor constrói as suas conclusões e nos desvela o Vieira encoberto, Vieira como “o Encoberto”. A seu ver, natu- ralmente.

É sua convicção que Vieira foi vítima de uma operação de silencia- mento e ocultamento da sua autêntica personalidade e verídico pensamen- to. Diz-nos: “Não deixa de ser impressionante verificar como Vieira foi «o grande encoberto» sobretudo nos últimos 250 anos.”44. E esclarece:

Este trabalho vai consistir precisamente na exposição, por um lado de diversos factos que para isso concorreram e, por outro, das fases da sua vida que mais foram atingidas por essa esponja ideológi- ca.45.

O propósito superior da investigação de António Lopes é desvelar “o que constitui o segredo desta vida extraordinária”46. Como nos parece que

o desvelamento deste segredo nos coloca no coração da relação de Vieira com a filosofia e a presença desta na sua obra, teremos de prestar alguma atenção às conclusões a que chega o Padre António Lopes.

Encontramos no seu estudo a confirmação da análise que levámos a cabo da opção de vida que cedo fez António Vieira, ainda noviço da

42 Ib., p. 135.

43 LOPES, António, S. J., Vieira, o Encoberto. 74 anos de evolução da sua utopia,

Cascais, Principia, 1999. 44 Ib., p. 9. 45 Ib., pp. 9-10. 46 Ib., p. 10.

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Companhia de Jesus. Dessa opção releva António Lopes os seguintes pontos:

No Noviciado a decisão de entrar na Companhia contra a vontade dos pais de ter ido fazer o seu Noviciado a umas sete léguas da Ba- ía, para ao mesmo tempo se dedicar aos escravos índios e negros e ir aprendendo as suas línguas; a opção de acrescentar um quarto