• Nenhum resultado encontrado

VIEIRA: UM HOMEM À MEDIDA DE UM SONHO! Fernando Cristóvão

3. O Pregador e o Escritor

Como pregador, agigantou-se por uma eloquência arrebatadora que conhecia os segredos da língua, de sólidos fundamentos teológicos, bíbli- cos e retóricos, abusando, não poucas vezes, do processo encantatório dos malabarismos barrocos, ao manipular os vários sentidos bíblicos, as ale- gorias, comparações, metáforas e os exempla da antiguidade clássica, multiplicando os silogismos, as antíteses, os paradoxos, as hipérboles, as apóstrofes, em suma, misturando, estrategicamente, o docere com o delectare, sobretudo quando um sopro de utopia era usado para arrebatar, ou amedrontar os ouvintes.

Tal foi o seu êxito que se tornou o pregador da capela real, da elite de Roma, sobretudo na Igreja de Santo António, também pregador da rainha Cristina da Suécia, sendo o seu prestígio tal que, em Roma, foram ouvir o seu sermão do Carnaval de 1673, 19 cardeais.

Homem contraditório, tanto se ocupava das mais variadas questões terrenas, das mais elevadas meditações teológicas, como das mais ousa- das utopias do Quinto Império, em obras como a História do Futuro e a Clavis Prophetarum, dando crédito às profecias de Bandarra, às interpre- tações escatológicas ligadas à passagem dos cometas e de meteoros como espadas saindo das nuvens, conforme relatou em carta de 4 de Maio de 1665 a D. Rodrigo de Meneses.

Como expressão desta multifacetada actividade e pensamento, dei- xou para a posteridade uma vasta obra escrita de sermões e cartas. A to- dos se dirigiu: antes de mais a Deus, aos poderosos, aos mais humildes, louvando, repreendendo, ameaçando, satirizando, tanto em Portugal como no Brasil e em diversos países europeus.

Com os seus escritos, a língua portuguesa tornou-se mais dúctil e plástica, e a nossa cultura, sobretudo na sua expressão literária, ganhou dimensões de universalidade. E tão cuidadoso foi que, no fim da vida, retocou e aprimorou os seus sermões, consciente também da sua missão de escritor.

Eram os sermões construídos segundo inspiração barroca, embora rejeitando os exageros do estilo que então estava em moda, assim os re- tratando sarcasticamente, porque se expressavam de modo a “motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipí- cios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras e outras mil indignidades! Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar?”

Vieira: Um Homem à Medida de um Sonho! 85

No seu entendimento, os sermões deviam ser construídos dentro de duas dinâmicas a que sempre foi fiel, embora utilizando as mais diversas liberdades no tratamento da linguagem: a da fidelidade à grande oratória clássica, e a da fidelidade aos textos litúrgicos, bíblicos e patrísticos. Mas eram sempre os textos da Bíblia que figuravam no início e a espaços do sermão, mais como “mote” do que como “epígrafe”.

Ele próprio o confessou, no famoso Sermão da Sexagésima:

Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente não só com os preceitos de Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada dos principais oradores evangélicos – S. João Crisóstomo, S. Basílio Magno, S. Bernardo, S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nanzianzeno, mestre de ambas as Igrejas.

É oportuno lembrar que, contrariamente ao que não poucas vezes se afirma ser a Bíblia desconhecida dos católicos, ela estava continuamente presente nas celebrações litúrgicas diárias, semanais ou por ocasião de efemérides. Isso o demonstram os sermões de Vieira e de outros pregado- res, pois era a partir de um passo de um texto sagrado, tomado como «mote» que o sermão se organizava. Texto sempre citado a partir da Vulgata latina de S. Jerónimo. Para além disso a celebração eucarística sempre assentou, em sua primeira parte, na leitura da palavra bíblica, de- pois comentada para um auditório que, no tempo de Vieira, frequentava a igreja em muito alta percentagem.

O que estava proibido pela Inquisição eram as traduções em verná- culo num excessivo e injusto zelo que não se esquecia de que todas as heresias e cismas, desde os primeiros séculos, se fundamentavam em in- terpretações, individuais ou de grupo, do texto sagrado. À memória desse passado de heresias e cismas acabara de se juntar a dissidência teológica da Reforma protestante que, também ela, se fundamentava na Bíblia, se- gundo o “princípio do livre exame”.

Por outro lado, a não leitura popular da Bíblia devia-se também à au- sência de traduções portuguesas. Apenas alguns textos, como o Génesis, traduzido no século XIII, no reinado de D. Dinis, e poucos mais, estavam acessíveis aos que sabiam ler, para além do óbice reinante do analfabe- tismo. Em grande parte, a não leitura da Bíblia em português é mais um problema da sociologia da leitura e do leitor, que da teologia, estando naturalmente relacionada com a inexistência de traduções completas e acessíveis, e do reduzido mercado para os editores.

Só no século XVIII surgem as traduções integrais da Bíblia, primeiro a de João Ferreira de Almeida, protestante, de 1753, e a do padre António Pereira de Figueiredo, católico, de 1790. Até por isso, de certo modo co-

mo compensação, são tão frequentes os comentários bíblicos nos ser- mões, como ponto de partida e de chegada do que o pregador queria ensi- nar e demonstrar.

Em Vieira, o uso da Bíblia, na versão da Vulgata, era de uma fre- quência extraordinária. Num estudo estatístico desta questão, José Nunes Carreira afirma:

Em quinze sermões, Vieira recorreu à Sagrada Escritura pelo me- nos 794 vezes (622 citações; 172 alusões)! Se nas citações há um certo equilíbrio de distribuição pelos dois Testamentos (327 para o Antigo, 295 para Novo), nas alusões campeia de tal modo o Antigo Testamento (144 ocorrências) que o Novo quase desaparece (31 ocorrências). E não admira, dado o volume de literatura narrativa do Antigo Testamento.12

Quanto à outra dinâmica da parenética vieirina, a do estilo, relembra Vieira, nesse sermão modelo da Sexagésima, que à boa maneira clássica “o estilo há-de ser muito fácil e muito natural (…) assim há-de ser o pre- gar. Hão-de cair as cousas e hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo”.

E para ser mais concreto acrescenta:

Há-de tomar o pregador uma só matéria (…) há-de defini-la para que se conheça (…) há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová-la com as Escrituras, há-de declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de ampliá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências (…) há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de im- pugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois há-de colher, há-de ajustar, há-de concluir, há- -de persuadir, há-de acabar.

Isto é o sermão, isto é pregar, o que não é isto é falar de mais alto! E foi isto que procurou fazer nos seus sermões ao longo das oito par- tes em que, em média, os estruturava, segundo os objectivos enunciados na parte VI. Assim aplicava a teoria oratória de Cícero e de Quintiliano, escolhendo o material na inventio, seleccionando as palavras e seu orde- namento na elocutio, encadeando as ideias na dispositio, de modo a pare-

12 CARREIRA, José Nunes, «O uso da Escritura nos Sermões de Vieira», Vieira Escritor, Lisboa, Cosmos, 1997, p. 97.

Vieira: Um Homem à Medida de um Sonho! 87

cer caso e não estudo, depois de se preparar para falar ao povo, fixando na memoria os diversos lances oratórios, a fim de conseguir a ilusão da espontaneidade ou do improviso, e preparando atitudes e gestos de simpa- tia na pronuntiatio. Assim preparado, podia começar por atrair o auditó- rio na captatio benevolentiae do exórdio, espraiando-se pela narratio, confirmatio, refutatio, na conclusão das provas da peroratio, como ele o fazia, finalizando os raciocínios em frases, às vezes de uma só palavra, como por exemplo “Provo”. Ou encerrando uma discussão real ou simu- lada com raciocínios deste tipo: “Este ponto é tão claro que não há para que nos determos na prova”.

Em certas ocasiões não se coibia de recorrer a elementos estranhos ao tema na digretio para acrescentar crédito e simpatia à matéria exposta.

Contudo, a aplicação de toda esta logística clássica não terá provo- cado o efeito contrário de os sermões se apresentarem mais como obras de complexidade do que simplicidade? É que as ideias e os sentimentos neles manifestados são em catadupa, imbricando-se uns nos outros ou desenvolvendo-se em espiral, refreadas de quando em quando por cons- truções antitéticas ou mesmo dilemáticas, ao mesmo tempo que, tanto o auditório como o próprio Deus são convocados ou destinatários, em in- terpelações ou apóstrofes arrebatáveis num turbilhão de ideias e senti- mentos em movimento.

De que naturalidade e simplicidade se reclama, afinal, o pregador? É que, para além de se levar em linha de conta o contexto histórico- -cultural em que eles foram proferidos, as ideias de clareza e simplicidade devem ser entendidas em função de também outros dois códigos orienta- dores: o dos “sentidos bíblicos” e o da estética barroca.

Obedecia o primeiro desses códigos ao que preceituava S. Tomás na Summa Theologica [e os seus ensinamentos foram sempre muito respei- tados, mesmo que nem sempre jesuítas e dominicanos estivessem em sin- tonia] deste modo:

O primeiro sentido segundo o qual as palavras exprimem as coisas é o histórico ou literal; o sentido, segundo o qual as coisas expressas pelas palavras significam, por sua vez, outras coisas, chama-se espiritual, tendo por base e supondo-o o sentido literal; este sentido literal, por sua vez, divide-se em três, como diz S. Paulo: «A Lei Antiga é figura da Nova (…).» Deste modo, quando o que pertence à Lei Antiga significa o que corresponde à Nova, o sentido é alegórico; porém se olharmos o que em Cristo se realizou ou o que o representa como imagem do que devemos fazer, o sentido é moral, e quando consideramos estas mesmas coisas na relação com a glória eterna, então o sentido é anagógico.

Adverte porém que, estando todos os sentidos baseados no literal, ele é o único que pode servir de base à argumentação. Deste modo, se- gundo S. Agostinho, não se argumenta com o sentido alegórico. Contudo, a Sagrada Escritura nada perde com ele”13 e o mesmo se depreende do

uso dos vários outros sentidos nele hierarquizados.

Em conformidade com estes ensinamentos, a instrução doutrinária de Vieira guia-se pelo sentido literal da Escritura, obviamente, nos livros bíblicos construídos sobre ele, e neles como nos outros servindo-se abun- dantemente dos recursos retóricos dos restantes sentidos.

Mas não só, pois também os sermões obedecem a outro código, o da estética barroca da Contra-Reforma.

Foi ela que guiou todos os voos que se levantaram do sentido literal, muito segundo a teorização de Heinrich Wölfflin para a arte barroca, aplicáveis à arte do discurso.

Assim: o sentido alegórico recomenda metáforas, alegorias e compa- rações; o tropológico ou moral sugerindo ao cristão os modos de proce- der; o anagógico transfigurando os factos em perspectivas místicas e es- catológicas, não só nos eventos soltos mas também nas próprias visões do futuro. Em consequência, todos estes sentidos influenciaram os conceitos barrocos de simplicidade e naturalidade.

Deste modo Vieira declarou na História do Futuro:

Para a exaltação da fé, para triunfo da Igreja, para glória de Cristo (…) ouvirá o mundo o que nunca viu, lerá o que nunca viu, admi- rará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imagi- nou (…) porque toda se emprega em provar a esperança do novo Império ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo, chamamos Quinto.14

Ideias estas confirmadas e ampliadas na Clavis Prophetarum, em que se parte do princípio de que o reino de Cristo ainda não se consumara na terra, de que há profecias ainda por cumprir, prevendo-se aconteci- mentos futuros para a Igreja, o advento do Anti-Cristo, o fim do mundo… Não é esta visão do mundo aplicação macroestrutural do sentido anagógi- co?

13

AQUINO, S. Tomás de, Suma Teológica, traducida directamente del latin, por D. Hilário Abad de Aparicio, Tomo I, Madrid, Moya e Plaza, Cuestion primera, artí- culos VIII e IX.

14

Vieira: Um Homem à Medida de um Sonho! 89

Voltando ao estilo: para dar conta de todo este universo de ideias e sentimentos é bem visível nos Sermões de Vieira a subordinação das par- tes ao todo e, no trabalho da palavra e da frase, a semelhança ao labor da arquitectura e pintura do Barroco, em especial transformando as linhas rectas em curvas [a prosa linear em circunlóquios], as superfícies planas em côncavas ou convexas [evidenciando a profundidade das coisas apa- rentemente simples ou a grandiosidade dos conceitos], derramando a cor- nucópia das cores em qualificações, metáforas, símbolos, paradoxos e antíteses, criando o sentido da grandiosidade [como nos frontões, arcos, colunas, cúpulas, etc.]. Simultaneamente, arrastando os ouvintes num ritmo e linguagem ondulatórias, ou de vaivém, em movimentos perma- nentes de agrado ou desagrado, com o objectivo final de perturbar e con- vencer, porque:

O frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer. Fru- tifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que dá pena. Quando o ouvinte, a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o co- ração do ouvinte; quando o ouvinte sai do sermão para casa confu- so e atónito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto.

Deste modo, todos os registos da sensibilidade são percorridos por este pregador que também não hesita em passar do temor ao riso e deste à exasperação, dominando o auditório.

Por exemplo, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, pregado no Maranhão em 1654, repreende os maranhenses pelas suas críticas e falta de colaboração, imaginando uma fábula que os simbolize:

Dizem que, quando o Diabo caiu do Céu, que no ar se fez em pe- daços, e que estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam.

E, logo a seguir, concretiza: a cabeça do Diabo coube à Espanha pela sua arrogância; o peito à Itália, por trazerem o coração sempre coberto; o ventre caiu na Alemanha, por serem inclinados à gula; os pés à França, por serem pouco sossegados e amigos de bailes; os braços com as mãos e unhas crescidas, um caiu na Holanda e outro em Argel, e daí lhes veio tornarem-se corsários.

Quanto a língua, essa é a parte que toca a Portugal e ao Maranhão, ela e os seus vícios. Cabendo ao Maranhão a letra M com que se escreve e é indicadora desses mesmos vícios: “M de murmurar, M de motejar, M de maldizer, M de malsinar, M de mexericar e, sobretudo, M de mentir”.

Imaginamos, facilmente, como o auditório passou da apreensão ao riso e deste à ira, até porque já antes hostilizava Vieira e a Companhia de Jesus.

O mesmo sentido de humor aplicou várias vezes a classes sociais e a certas profissões e pessoas, para além de se servir dele como argumento, segundo confessou na Conferência que proferiu em Roma, em Academia reunida no Palácio da Rainha Cristina da Suécia, em 1674.

Teorizando sobre o riso e o choro, e invocando o testemunho dos clássicos Demócrito, Plistarco e Cícero, afirma:

Cícero, como se vê nas suas Orações, respondia, muitas vezes rin- do, aos argumentos da parte contrária; que é solução muito fácil quando os argumentos são difíceis.

E nem poupou os médicos:

como todos somos mortais, só o médico vive do que nós morre- mos: e tam certo é a sua medicina o pão como na mortalidade a doença. Nunca pode faltar ao médico o pão em abundância (…) as quaresmas dos enfermos são as páscoas dos médicos.

E nem a sogra de S. Pedro escapou à sua ironia:

… uma sogra talvez melhor é estar doente que sã; porque doente, a mesma doença a tem quieta a um canto da casa; e sã, rara é a que não se contente com menos que com todos os quatro cantos dela.

***

Era assim que o Imperador da Língua Portuguesa falava aos seus súbditos…

VIEIRA PREGADOR BARROCO