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UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA Fausto Amaro

(CAPP/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa)

1. Introdução

Esta comunicação procura analisar, numa perspectiva sociológica, a carta do P. António Vieira ao Geral da Companhia de Jesus em Roma, no ano de 1626.

O documento, escrito por indicação dos superiores de Vieira, relata os acontecimentos ocorridos, bem como informações consideradas rele- vantes sobre a actuação dos padres da Companhia de Jesus no Brasil. A carta é, assim, uma espécie de relatório baseado em observações próprias e também nos relatos enviados pelas diversas casas de jesuítas no Brasil.

O documento pode ter várias leituras de acordo com os objectivos do investigador. A leitura proposta nesta comunicação baseia-se na metodo- logia de análise sociológica do discurso. Nesta perspectiva, o objectivo da análise não é fazer uma caracterização histórica da sociedade da época, nem tão pouco realizar um estudo linguístico ou literário do texto.

A análise baseia-se na ideia de que os textos podem ser uma forma de acção; que todo o discurso é socialmente construído e que uma vez produzido ajuda a construir também a nossa visão do mundo1.

1

GILL, Rosalind (2000), Discourse Analysis. In BAUER, Martin W. e GASKELL, George (2000) (org.), Qualitative researching with text, image and sound. London: Sage.

Nesta perspectiva, o texto em análise tem um interesse particular de- vido ao facto de o seu autor ter apenas 18 anos quando assina, em 30 de Setembro de 1626, esta carta/relatório da Província do Brasil.

Nascido em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, Vieira foi com os seus pais para a Baía aos seis anos de idade. Aos 15 anos entrou como noviço para o Colégio dos Jesuítas. No ano seguinte dá-se a invasão e conquista da Baía pelos holandeses, tendo Vieira vivido, ele próprio, alguns dos acontecimentos que relata com grande pormenor nesta carta ânua. O seu discurso reflecte o processo de socialização como elemento da Compa- nhia de Jesus e mostra a sua visão da sociedade brasileira da época.

A carta refere-se aos anos de 1624 e 1625, pois devido à invasão dos holandeses não houve possibilidade de a escrever em cada um destes anos. Como diz Vieira logo no primeiro parágrafo: a guerra “que tudo perturba não dá lugar a escrituras; pelo menos as que são mais largas, e requerem tempo e algum descanso. Por esta razão, até agora se não es- creveu nem mandou ânua a Vossa Paternidade, desde o ano de 1624 para cá” (p. 3).

A análise vai incidir sobre os seguintes pontos:

1. Qualidades evidenciadas pelos padres da Companhia 2. Apoio dos índios na guerra contra os holandeses 3. Relação com os índios

4. Evangelização dos índios 5. Arrependimento dos pecadores 6. Acontecimentos milagrosos

À volta destes temas, Vieira constrói um discurso que encerra várias mensagens para o Geral da Companhia em Roma, o Padre Mucio Vitelleschi que estava no exercício do cargo desde 1615 e que se manteve até 1645.

A carta faz o relato circunstanciado do que ocorreu durante os dois anos nos três colégios existentes na altura: Colégio da Baía, Rio de Janei- ro e Pernambuco, a que se juntavam seis casas e treze aldeias anexas e onde viviam cerca de 120 padres da Companhia.

As citações feitas nesta comunicação referem-se à edição de J. Lúcio de Azevedo publicada pela Imprensa Nacional em 19702.

2

AZEVEDO, J. Lúcio de (1970), Cartas do Padre António Vieira. Lisboa: Imprensa Nacional (Edição revista do texto publicado em 1925 pela Imprensa da Universida- de de Coimbra).

Carta do P.e António Vieira ao Geral da Companhia de Jesus 183

2. Qualidades evidenciadas pelos padres da Companhia e a luta con- tra os holandeses

A primeira preocupação de Vieira parece ser a de mostrar ao Geral em Roma que os padres ao serviço da Província estavam a cumprir com rigor os votos e preceitos da Companhia. Neste sentido, Vieira começa por dar notícia de alguns padres que faleceram no Colégio da Baía, em que ele próprio se encontrava: o Padre Fernando Cardim, natural de Via- na do Alvito; o padre Gregório da Rocha, natural de Pernambuco; e o padre António Fernandes, da ilha da Madeira.

De todos Vieira refere a vida piedosa e grande devoção, enaltecendo as suas qualidades na prestação de cuidados aos doentes, a sua humildade e o grande espírito de sacrifício manifestado em diversas ocasiões. A forma como os três padres viveram e morreram é apontada como exem- plo a ser seguido por todos.

Mas, para além destes três casos especiais, a acção e comportamento dos padres são apresentados em relação aos seguintes pontos:

1. Assistência aos prisioneiros, aos doentes, aos próprios padres e aos índios.

2. Assistência espiritual a toda a população, confessando e adminis- trando os sacramentos, nomeadamente aos soldados que comba- tiam os holandeses.

3. Cumprimento dos votos de obediência, pobreza e castidade. 4. Afirmação dos princípios e símbolos da Igreja Católica.

O relato do Colégio da Baía começa precisamente por referir que quase todos os padres do colégio caíram enfermos, mas “que nunca falta- ram sãos que servissem os doentes no corporal e no espiritual” (p. 4).

Vieira mostra grande preocupação também em acentuar a observân- cia da castidade por parte dos padres da Companhia, certamente por ser um ponto importante do ideário da Companhia, mas possivelmente para marcar a diferença face a outros clérigos e sossegar os representantes da inquisição.

No que respeita aos bens materiais, Vieira refere várias vezes como os bens dos colégios eram postos ao serviço da comunidade e embora não mencione quantitativos, estes deveriam ser bastante avultados pois foram praticamente eles que financiaram o equipamento e a manutenção dos soldados portugueses que combatiam os holandeses. Esta era uma men-

sagem muito importante a enviar ao Geral, pois tratava-se de combater os inimigos calvinistas. Estes eram apresentados como pessoas sem respeito pelos valores sagrados da Igreja Católica, sendo feitas descrições porme- norizadas de como os holandeses destruíam e profanavam os símbolos sagrados, tais como crucifixos e cálices para a consagração. Escreve Viei- ra:

Arremetem com furor diabólico às sagradas imagens dos santos e do mesmo Deus: quis talia fando temperet a lacrimis. A esta tiram a cabeça, àquela cortam os pés e mãos, umas enchem de cutiladas, a outras lançam o fogo. Desarvoram e quebram as cruzes, profa- nam os altares, vestiduras e vasos sagrados; usando dos cálices, onde ontem se consagrou o sangue de Cristo, para em suas descon- certadas mesas servirem a Baco (…) Tal foi a misericórdia do nos- so Deus que quis então tomar em si a maior parte do castigo, por não nos castigar com outro maior, como nossos pecados mereciam. (p. 19)

Ao referir a necessidade de respeito pelas relíquias e pelos símbolos da Igreja Católica acentua a sua importância, mostrando, ao Geral da Companhia a vantagem que haveria na canonização do Padre Anchieta3 cujo processo decorria em Roma.

Vieira tem também a preocupação de transmitir que no Brasil os pa- dres da Companhia cultivavam a vida austera, tinham uma conduta irre- preensível, gosto pelo sacrifício, adaptação aos costumes locais, pratica- vam a pregação pública, educavam as crianças e as pessoas analfabetas no cristianismo e procuravam ser eficazes na acção.

Todas as características faziam parte do ideário da Companhia de Je- sus. Na eficácia inclui-se, se necessário, a condução da guerra, o que fi- cou demonstrado pelo papel que os Jesuítas tiveram na luta contra os ho- landeses, na Baía4.

3 O Padre José Anchieta entrou na Companhia de Jesus aos 17 anos, tendo desenvol-

vido a sua acção no Brasil na segunda metade do século XVI. Faleceu em 1597 com fama de santidade e foram-lhe atribuídos muitos milagres. O próprio António Vieira refere na carta um episódio interpretado como um milagre do P. Anchieta.

4

Em 1609 a Espanha negociou umas tréguas de 12 anos com os holandeses. Termi- nadas as tréguas em 1621, a Holanda intensificou as hostilidades com Espanha, ten- do fundado nesse ano a Companhia das Índias Ocidentais, nos mesmos moldes que em 1602 tinha criado a Companhia das Índias Orientais. Defensores das teorias do célebre Hugo Grotius do mare liberum, a Companhia das Índias preparou uma es- quadra de 23 navios com 1 600 marinheiros e 1 700 soldados de desembarque que,

Carta do P.e António Vieira ao Geral da Companhia de Jesus 185

A invasão holandesa da Baía é descrita em pormenor por Vieira, que tinha nessa altura 16 anos.

Os holandeses chegam à Baia em 8 de Maio de 1624 e Vieira narra como o Bispo D. Marques Teixeira, que tinha pertencido ao Conselho Geral do Santo Ofício, comandou uma companhia de eclesiásticos arma- dos “não só para animar a gente, mas para com a espada na mão se de- fender, e ofender, se fosse necessário, ao inimigo” (p. 13).

Segundo Vieira, os jesuítas desempenharam um papel primordial, confessando os defensores e incitando-os à luta. Para além da iniciativa do bispo,

Saíram com a mesma pressa os nossos padres pelas ruas, casas e fortalezas a animar e confessar os soldados, e o mesmo fizeram muitos outros religiosos. Prepararam-se com não menor cuidado as almas para a morte que os corpos para a guerra” (p. 19).

Mas lamenta a atitude dos colonos que mostraram estar “esquecidos daquele nome português que ainda em nossos tempos fez tremer e fugir exércitos inteiros” (p. 15).

Vieira enaltece os valores antigos da honra que não vê entre os de- fensores, os quais entram em pânico e abandonam a cidade, tendo fugido cerca de 10 a 12 mil portugueses para o interior.

Em contraste com o comportamento que considera pouco honroso, Vieira apresenta o comportamento dos escravos e dos índios que deram provas de lealdade aos padres da Companhia.

Na análise da invasão holandesa há também uma crítica às classes abastadas que não souberam defender a cidade, pois “as cidades com fer- ro se defendem e não com ouro” (p. 21).

Neste simples episódio é possível ver a génese do que haveria de acontecer no século seguinte em que se agravou o relacionamento entre os colonos e os jesuítas, que haveria de culminar com a expulsão destes do Brasil pelo Marquês de Pombal.

Tomada a cidade pelos holandeses, e como o Governador (Diogo de Mendonça Furtado) tinha sido feito prisioneiro, é constituído um governo provisório promovido pelo Bispo, que se faz nomear capitão-mor para organizar a resistência.