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ALGUMAS NOTAS SOBRE O TEMPO E A VIDA DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA

António Borges Coelho

(Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)

A vida do padre António Vieira cobre todo um século, o século dos génios e da Física; das guerras de religião, pelos direitos de sucessão, pe- los direitos históricos; das guerras do Turco, do Veneziano, do Tártaro, do Polaco. O político sobrepõe-se ao religioso. A teoria e a prática do método experimental fazem o seu caminho. Newton e Leibniz descobrem o cálculo infinitesimal, e Espinosa ensina-nos o modo de ler.

As ideias de tolerância e da liberdade de consciência emergem no horizonte. Em Londres, Amesterdão e noutras cidades a vida económica é marcada pelas Bolsas e as Companhias por acções. As notícias, as merca- dorias e os humanos partiam e chegavam pela rota mediterrânica do Le- vante, pela do Mar do Norte e pelas rotas atlânticas, indicas e do Pacífico por onde navegavam as frotas do Brasil e da Índia, acometidas pelos cor- sários europeus e de Argel. Nas palavras do padre António Vieira: de Lisboa partiam por terra todos os sábados os correios com “grande cópia de mentiras por todo o Reino”,1 mas Portugal expulsava os holandeses de

Pernambuco, avançava na colonização do Maranhão e sustinha no Amei- xial e em Montes Claros as armas espanholas.

Os conflitos envolviam o militar, o ideológico, o comercial e o polí- tico. Havia fome de capital, e nos países ibéricos e nas suas colónias fome de negros e de índios para as plantações do açúcar e do tabaco.

1 P.e António Vieira, Obras Escolhidas, Sermões II, Prefácio e notas de António Sér- gio e Hernâni Cidade, Lisboa, Sá da Costa, 1954, vol. XI, p. 155.

A Escravatura dos Negros

O domingo passado, falando na linguagem da terra, celebraram os brancos a sua festa do rosário; e hoje, em dia e acto apartado, feste- jam a sua os pretos, e só os pretos. Até nas coisas sagradas, e que pertencem ao culto do mesmo Deus, que fez a todos iguais, primei- ro buscam os homens a distinção que a piedade.

O orador sagrado está acima; no púlpito ombreia com as imagens dos santos. É um homem singular, mas revestido da autoridade e do po- der colectivo, identificado pela cor da veste sob a estola e a sobrepeliz branca. As palavras soam por cima das cabeças. Narram exemplos da história sagrada em resposta às angústias do presente. Prometem a salva- ção ou ameaçam com as labaredas do inferno. Designam o que se deve ter e crer. O padre António Vieira inflama os ouvintes na Capela Real, na Baía, no Maranhão, na Corte de Roma. Mas pese bem cada uma das pa- lavras, há ouvidos que as pesarão por ele.

O domingo passado (…) celebraram os brancos a sua festa do rosá- rio; e hoje, em dia e acto apartado, festejam a sua os pretos, e só os pretos.

O padre António Vieira desafiava os limites. Censurava a segrega- ção dos pretos na esfera religiosa; atacava as tiranias dos peixes grandes que devoram os pequenos; increpava o próprio Deus por favorecer as ar- mas dos holandeses.

Uma das grandes cousas que se vêm hoje no Mundo, e só pelo cos- tume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gen- tes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América… Os Israelitas atravessaram o Mar Vermelho e pas- saram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessaram o Mar oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos…2.

A escravatura constituía um dos alicerces da vida social no mundo ibérico, colonial e continental, e a pedra angular da construção do Brasil.

Com mais ou menos subtilezas jurídicas e teológicas – foram cativa- dos em guerra justa? Baptizaram-nos antes de os embarcarem nos porões

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das naus? Etc. O afluxo de escravos negros para as Américas, no qual se envolveram os próprios jesuítas, constituíram uma verdadeira transmigra- ção dos corpos.

Segundo alguns cálculos, durante o século XVI, entraram no Brasil cem mil escravos da Guiné e de Angola, mas ao longo do século XVII o ritmo de entrada acelerou. Os colonos utilizavam-nos nas suas casas, nos engenhos, nas plantações e vacarias. Os Jesuítas faziam o mesmo. No seu engenho de Sergipe do Conde morriam cada ano cinco dos seus oitenta escravos jovens.

Vieira ouviu os seus gemidos.

Quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas…; as labaredas que estão saindo a borbutões de cada uma pelas duas bo- cas ou ventas por onde respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes, banhados em suor, tão negros como robustos…; as caldeiras ou la- gos ferventes com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomi- tando espumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo…; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente e gemendo, tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem descanso”, quem poderá du- vidar que “é uma semelhança de Inferno?3

Integrado na sociedade colonial onde a Ordem dos Jesuítas ocupava um lugar eminente, António Vieira tinha consciência da violação do di- reito natural, mas não considerava possível outra solução.

Em sermões que, em tempos diferentes, pregou aos negros da Baía, Vieira não combate a escravatura dos negros como negócio e como orga- nização da sociedade e do trabalho, preocupa-se tão só com a salvação das suas almas e com os maus tratos que os senhores brancos lhes infligi- am.

Do ponto de vista teológico, não lhe faltavam autoridades que fun- damentassem a legitimidade da escravatura. Desde logo as narrativas do Velho Testamento, depois Santo Agostinho que a justificava como casti- go divino pelo pecado de Adão.

Num dos sermões pregados aos negros da Baía, António Vieira re- correu a São Paulo: “escravos, obedecei aos vossos senhores carnais”. Exortava-os à paciência, confortava-os com a crença de que a Irmandade

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da Senhora do Rosário lhes prometia, a todos, carta de alforria no outro mundo.

Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre e grande milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasce- ram nas trevas da Gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da Fé nem conhecimento de Deus, aonde vão depois de mor- tos? Todos, como já credes e confessais, vão ao Inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade.4

As barreiras que nos prendem no tempo são inultrapassáveis? No Norte e no Centro da Europa, na Holanda, a escravatura não estava na base da organização do trabalho como acontecia nas colónias ibéricas. Um século antes, na Arte da Guerra do Mar, Fernando Oliveira criticara severamente a escravatura praticada pelos portugueses.

No tempo de Vieira, os Jesuítas convertiam os negros à nova fé, promoviam alguns ao sacerdócio, destinando-lhes a integração dos seus irmãos no Evangelho e na sua condição de escravos. Os próprios Jesuítas compraram e venderam escravos de Angola e usaram-nos, em Angola e no Brasil, nas casas, nas plantações e nos engenhos.

Mas para boa parte da “gente preta tirada das brenhas da Etiópia”, havia afinal outro caminho, que não o de viver e morrer cativos: o da fuga e organização livre no interior dos palmares, as repúblicas dos Quilom- bos.

Numa carta de 1691, dirigida da Baía a Roque Monteiro Paim, o pa- dre António Vieira dá conta de uma consulta sobre o caminho a seguir para submeter os negros fugidos e organizados nos Palmares.

Propunham o envio de padres naturais de Angola. Os fugitivos con- fiavam neles, por serem da mesma pátria e língua, mas logo reconhece- ram que os negros libertos suspeitariam que seriam espias dos governado- res para lhes indicarem o modo de os conquistar. E à menor suspeita, os matariam com peçonha.

Vieira encontra nesta solução uma objecção fortíssima e total. Sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e actual, de que não podem ser absoltos …sem se restituírem ao

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serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão- -de fazer.

Só haveria um meio, dar-lhes a mesma liberdade que se dá aos ín- dios e estabelecer-lhes padres como párocos.

Porém esta liberdade, assim considerada, seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que, por este meio, ti- nham conseguido o ficar livre, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e pas- sando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo.5

A agro-indústria do açúcar alimentava o comércio atlântico e a ex- pansão do capital europeu, mas assentava no inferno do trabalho escravo. A iniquidade estava à vista de todos, por mais que lhes deitassem água benta nos cais de embarque. Mas, na repetição dos dias, os olhos olhavam e não viam, embora Vieira fosse acusado de dizer num sermão que o rei D. Sebastião estava no inferno por ter admitido a escravatura dos negros.

A verdade é que a consciência do real subverteu a consciência ética. A Inquisição e os Cristãos-Novos

Em Abril de 1641, chegou a Lisboa o padre António Vieira, integra- do na delegação que declarava a obediência do Brasil a D. João IV. Ora- dores sagrados de todas as ordens exaltavam nos seus sermões a legitimi- dade do rei Restaurador. Vieira tornou-se a estrela dos pregadores da Ca- pela Real.

A propaganda e a fé faziam de D. João IV, o “Encoberto”. Logo em Dezembro de 1640, a imagem do crucifixo da Sé Patriarcal despregou o braço direito da cruz para apontar aos portugueses o caminho restaurador. No ano seguinte, na procissão do primeiro aniversário, um busto do Ban- darra, exposto na mesma Sé, sugeria que D. João IV era o Encoberto das profecias do sapateiro de Trancoso.

Na verdade, a restauração de Portugal precisava de um Mahdi ou imã oculto, dum Messias ou de um Encoberto, como se depreende da Proposta a D. João IV de 1643, apresentada pelo padre António Vieira.

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A conservação de Portugal era duvidosa e arriscada. O Papa não re- cebia os nossos embaixadores; a Dinamarca não admitia Portugal na con- federação dos Estados que lutavam contra a Espanha; a Suécia não conti- nuava o comércio; a Holanda não nos guardava amizade; a França, a mais obrigada, não nos enviava embaixador. E se a França proporcionava a diversão das forças de Espanha, não era uma aliada segura, pois projecta- va instalar-se na “nossa” ilha de Madagáscar e recuperar o Rio de Janeiro.

Quanto às forças do reino, a Índia revelava-se mais estorvo que pro- veito. “O Brasil é só o que sustenta o nosso comércio e alfândegas e cha- ma aos nossos portos os poucos navios estrangeiros”. Mas o mesmo Bra- sil, quebrada a união com o Rio da Prata, tinha falta da moeda de prata, os “reales”, e também de escravos de Angola, tomada pelos Holandeses.

Os homens de negócio, “cujos juízos, como se fundam no próprio in- teresse, são sempre os mais seguros”, passam os capitais a outras partes. Até os mercadores estrangeiros receiam meter as suas fazendas no país.

Onde estava o remédio? Em favorecer os homens de negócio portu- gueses. Estão espalhados por todos os reinos e províncias de Europa, pos- suem grandíssimos capitais e trazem em suas mãos a maior parte do co- mércio e riquezas do Mundo.

Favorecer os homens da nação não é contra nenhuma lei divina nem humana. Pelo contrário, poder-se-ão invocar exemplos a seu favor na Sa- grada Escritura e na doutrina do Evangelho. Da nação hebreia houve mui- tos homens santos e doutos. E não foram desta nação os Apóstolos e a Virgem Santíssima? Não foi este o sangue que o Filho de Deus se dignou tomar para preço de nossa redenção e união de sua divindade?

Como é possível que um reino fundado todo no comércio lance os seus mercadores para os reinos estranhos, e aos estranhos admita dentro de si mesmo?

A divisão social e cultural entre cristãos-novos e cristãos-velhos roía por dentro as estruturas e o desenvolvimento da sociedade portuguesa. Os capitais eram essencialmente cristãos-novos. Incrementavam no Brasil a agro-indústria do açúcar, dominavam o comércio e o crédito, expandiam- -se no espaço global.

Mas quase século e meio decorrido sobre a conversão forçada, a lei vedava-lhes o acesso às ordens religiosas militares, à Universidade, ao clero e ao exercício de certas profissões como a de médico, piloto e ad- vogado. Em suma, a lei negava-lhes as honras e o bom nome e permitia o assalto aos seus bens e à sua vida.

A mudança de política não era fácil. Dos quadros da Inquisição saí- am boa parte dos bispos, dos membros da Mesa da Consciência e Ordens,

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da reitoria da Universidade de Coimbra e do próprio Conselho de Estado. Daí a oposição implacável a que cessasse a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos e a suspeição permanente que dava de comer a muitos quadros, e as perseguições, os sequestros e a morte a que submetiam os cristãos-novos.

Nesta matéria António Vieira pisou todos os riscos. A 21 de Agosto de 1644, na igreja de S. Roque, propôs a criação de duas companhias mercantis, Oriental uma e outra Ocidental, cujas frotas poderosamente armadas, tragam seguras contra a Holanda as drogas da Índia e do Brasil. Não há que ter medo de misturar dinheiro menos cristão com o cató- lico. Nas armas de Portugal, mandadas por Deus a D. Afonso Henriques, não estavam as chagas de Cristo e os trinta dinheiros de Judas?

Em 1 de Fevereiro de 1646 partiu de Lisboa para Paris por La Ro- chelle. Daí seguiu para Haia por Ruão e Calais. Em Ruão procura o apoio dos cristãos-novos portugueses. Conta com os bons ofícios do capitão, mercador, tipógrafo, jornalista e escritor Manuel Fernandes Vila Real, cristão-novo, também ele nascido em Lisboa no ano de 1608.

Quando regressa no verão de 1646, Vieira apresenta ao rei a “Pro- posta… a favor da gente de nação sobre a mudança dos estilos do Santo Ofício e do Fisco”. Não leva nome.

Os estilos da Inquisição “quase despovoaram lugares inteiros. Com o confisco dos bens, muitas mulheres ficaram sem maridos, muitos filhos sem pais e todos sem remédio. O secreto modo de operar do Santo Ofício até conseguira convencer de judeus muitos cristãos-velhos.

Os homens de nação, a quem o castigo ou o medo lançou de Portu- gal, levaram-nos consigo o dinheiro, o comércio e parte de nossas conquistas, conquistando-nos somente o nome e a opinião de Ju- deus, que temos os Portugueses nas quatro partes do Mundo, por sermos singulares em desterrar de nós, sendo nossos, uns homens que todas as outras nações admitem, sendo alheios e estranhos.

A luta política subiu de tom no Paço e nos conventos. Deveria o rei criar Companhias ao modo das da Holanda e isentar do confisco os capi- tais aplicados em mercadoria?

A Universidade de Coimbra, os bispos, o clero, o “povo” em Cortes votaram contra, só a Universidade de Évora votou a favor. E a Inquisição Portuguesa, em 23 de Junho de 1647, entregava ao rei o seu parecer sobre a Proposta anónima de Vieira: o monarca não tinha poderes para se in- trometer em matérias “espirituais”. E a supressão de pena canónica, como

era a do confisco, “poderia amotinar a Cristandade contra o rei de Portu- gal”, tanto mais que circulavam livros acusando-o de favorecer os judeus.

A 13 de Agosto de 1647, Vieira embarcou de novo, rumo ao Havre e daí a Paris e Holanda. Apresado o navio por um corsário, desembarca em Dover, seguindo depois para Londres. Só chegou a Paris em 11 de Outu- bro.

Na sua ausência, em reuniões no noviciado de São Roque, ocorridas entre 31 de Agosto e 15 de Setembro de 1647, foi finalmente aprovado um parecer favorável a que se não confiscassem os capitais aplicados no comércio. O redactor do parecer era o jesuíta Francisco Pinheiro, doutor e lente de Teologia, ex-preso do Santo Ofício de Évora.

Entretanto a Inquisição subia a parada. Em Dezembro de 1647 pren- dia em Lisboa o financeiro Duarte Silva e queimava em auto de fé na mesma cidade o jovem Isaac de Castro Tartás, educado em Amesterdão e missionário judeu no Brasil.

Além de negociações de ordem política, a missão de Vieira era, na Holanda, a de comprar navios e trigo. Mas mal chegou de Lisboa a notí- cia da prisão do banqueiro cristão-novo Duarte Silva, cessou o crédito e subiu o preço do dinheiro.

Nesta segunda viagem à Europa, Vieira demorou-se quinze a dezoito meses em Amesterdão, com estadias prolongadas em Paris. Liberto da roupa preta e das paredes da cela, atreveu-se a visitar a sinagoga dos ju- deus portugueses. Declararia mais tarde aos inquisidores que ouvira a pregação de Manasseh ben Israel (Manuel Dias Soeiro). E que o visitou depois e o convenceu, perante muitos judeus, de erros que dissera na pre- gação, tocantes à lei de Cristo. Apelaram para outro teólogo judeu, o ita- liano Gagão Morteira, que se teria recusado a prosseguir o diálogo. É quase certo que Bento de Espinosa, então com dezasseis anos, aluno de Manasseh, ouviu as palavras ou pelo menos o estrondo provocado pelo sucesso de Vieira.

O encontro com os judeus e com Manasseh ben Israel pode ter sido bem mais intenso do que se depreende destas palavras. Entusiastas das trovas de Bandarra, muito provavelmente editadas em Ruão, falsamente em Nantes, por Manuel Fernandes Vila Real, ambos acreditavam que, depois do aparecimento das dez tribos perdidas de Israel, haveria um pe- ríodo de paz universal. Reduzido todo o mundo à fé de Cristo, o Quinto Império havia de durar mil anos. Deus amarrava o diabo e no mundo flo- resceria “universalmente a justiça, inocência e santidade em todos os Es- tados e se hão-de salvar pela maior parte todos os homens, e se há-de en-

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cher então o número dos predestinados.” “A cabeça deste império tempo- ral há-de ser Lisboa e os reis de Portugal, os imperadores supremos.

A atmosfera de Paris, Haia e Amesterdão marcou profundamente o nosso jesuíta. “Nas quais partes tratava com toda a sorte de gente que se lhe oferecia ou fossem judeus ou hereges, mormente ateus ou gentios, argumentando e convencendo a muitos deles”. O cepticismo, as ideias da necessidade de controvérsia e a defesa da liberdade de consciência esta- vam no horizonte. Ele próprio defendeu que os judeus portugueses tives- sem liberdade de consciência. E inebriado, tal como o conde da Vidiguei- ra e Manuel Fernandes Vila Real, entrou na onda e adquiriu um caixote de livros proibidos, que guardou na livraria do rei. Já no Brasil, pediu a um companheiro que os fizesse desaparecer.

A 15 de Outubro de 1648 desembarcava em Alcântara vestido de grã escarlate e ouro, espada cinta, a tonsura cheia, o bigode à d’Artagnan. Neste preparo se apresentou em Alcântara a D. João IV e se veio sentar com escândalo no refeitório de Santo Antão.

A 6 de Fevereiro de 1649, D. João IV publicou finalmente o alvará que isentava do confisco os capitais aplicados em mercadoria e criava a Companhia do Comércio do Brasil. E a 10 de Dezembro de 1649, autori- zava os homens da nação hebreia a recorrerem ao Sumo Pontífice nas matérias que pertenciam ao Santo Ofício. Era a guerra contra a fortaleza do Rossio.

No sermão da Primeira Sexta Feira da Quaresma de 1649, Vieira de- clarava: “ter inimigos parece um género de desgraça, mas não os ter é indício certo de outra maior”. E em Outubro, na Sé, visava directamente os inquisidores: “Ó Pilatos! que há tantos anos estás no inferno! Ó julga- dores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras e cuidais, cegos e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sen-