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nalmente todos, e entre todos mais lastimosamente os inocentes, porque nem a esses

perdorará (como em outras ocasiões não perdoou) a desumanidade herética.” Padre António Vieira, “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Ho- landa”, in, M. Ema Tarracha Ferreira, Textos Literários – Séculos XVII/XVIII, Lis- boa, Editora Aster, 1966, p. 333.

9“Indeed no two authorities seem to agree on even the most basic issues of defini-

tion. Perhaps they never will, for the subject is so highly charged with political pas- sion and emotion. That can make the historical study of empires frustrating, but is also part of what makes it ever–mobile and exciting.” Stephen Howe, Empire – A

very short Introduction, Oxford, Oxford Univesity Press, 2002, p. 34.

10 Padre António Vieira, “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as

de Holanda”, in M. Ema Tarracha Ferreira, op. cit., p. 331.

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Luís de Camões, Os Lusiadas, Canto I, estância VIII.

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Recorde-se as efígies filipinas cunhadas em 1583 onde, rodeando a esfera, se es- creve NON SVFFICIT ORBIS. Cf. Geoffrey Parker, The World is not Enough:

parenética reconstrói-se uma ideia de “Portugal Restaurado” onde os con- tornos messiânicos corporizam a palavra dita.

O próprio Vieira reinterpretará o messianismo que atravessa, em Portugal, a ideia imperial, consubstanciada no século XVI no desígnio da Respublica Christana: a aspiração de uma unificação política do univer- so, sob o ceptro de um único imperador, propagador da verdadeira fé so- bre toda a terra, a partir da qual se estabeleceria uma Idade de Ouro esca- tológica, a dos primores de Quinhentos.

Logo após a Restauração, no ano de 1641, o padre António Vieira integrará a delegação de colonos que vem a Lisboa apresentar a sua ade- são ao movimento, e ao Rei, D. João IV. Ao chegar à capital do reino, inicia a pregação na Igreja de S. Roque, sendo convidado a pregar na ca- pela Real dos Paços da Ribeira. No sermão aí proferido, no dia do Ano Bom de 1642, transparece a vertente auguratória e visionária vieirina que marcará a sua escrita posterior 13.

As silogísticas Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, a inacabada História do Futuro (começada em 1659), por ele considerada o libelo de defesa contra a acusação inquisitorial, ou a Clavis prophetarum (1663) serão continuados instantes da construção de uma ideia prospecti- va de um utópico Portugal Restaurado.

Tomando o carácter providencial que marcaria o sucesso aclamató- rio de 1640, Vieira acompanharia os que pareneticamente evocavam a efectivação de um novo Império. Recorde-se, a título de exemplo, o ser- mão de António Ardizione Spínola quando, na Sé Primacial de Goa, num outro espaço do Império, que não o da sua capital, Lisboa, prega a 15 de Setembro de 1641 as Felicidades de Portugal de Baixo do Dominio de seus reys naturais. Aí afirmando que: “Quãdo [Deus] escolheo entre as Naçoens do Mundo aos Hebreos na ley escrita, lhes chamou povo (…) Mas quando entre os Christãos escolheo a Nação Portugueza, como a mais favorecida, & amada, lhe não quis dar nome de Povo, mas de Impe-

13 Atente-se na seguinte passagem: “(...) Não quero referir profecias do bem que

gozamos, porque as suponho mui pregadas neste lugar e mui sabidas de todos; re- parar sim, e ponderar o intento delas quisera. Digo que ordenou Deus que fosse a liberdade de Portugal como os venturosos sucessos dela, tanto tempo antes e por tão repetidos oráculos profetizada, para que, quando víssemos estas maravilhas humanas, entendêssemos que eram disposições e obras divinas, e para que nos alumiasse e confirmasse a fé onde a mesma admiração nos embaraçasse.” Padre António Vieira, “Sermão dos Bons Anos” in, M. Ema Tarracha Ferreira, op. cit., pp. 338-339.

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rio (…)”.14 A necessariamente emergente reconfiguração imperial, nestes

inícios de um “Portugal Restaurado”, flui nos sermões gratulatórios. Como refere João Francisco Marques, as perorações eram o espaço de referência desta crença futura. Os pregadores restauracionistas subli- nhavam o destino messiânico de Portugal, como elemento nobilitário do império. Portugal elevar-se-ia, deste modo, no contexto dos estados cris- tãos da Europa. Aliava-se a dimensão universalista do império, ao missi- onarismo evangelizador. Contudo, como assinala este mesmo autor na sua Parenética Portuguesa e a Restauração (1640-1668): “De tão fre- quentes e vulgares na sua expressividade, não merece a maioria dessas referências que nela se insista para além de se anotar que elas constituem uma espécie de obrigatório refrão, o que revela bem a mentalidade que as enformava e as manipulações ideológicas a que se prestavam. Algumas de tais alusões obedecem, todavia, a uma intenção que ultrapassa esse mero convencionalismo.

O P.e António Vieira – um dos grandes arquitectos e apologistas do

visionarismo do Quinto Império – é um dos que mais se aproveita das partes finais das pregações para alusões imbuídas de um intencionalismo marcante.”15

Através de uma arguta argumentação, Vieira justifica habilmente a acção política. É no sermão proferido no primeiro dia de Janeiro de 1642, onde, como acima referi, transparece a vertente auguratória e visionária, que se espelha a defesa da razão de Estado. Na Restauração de Portugal, como escreve Vieira: “(...) foi de tanta importância esperar pela oportuni- dade do tempo, que por esta dilação [40 anos] se veio a lograr aquela primeira máxima de toda a razão de estado, assim da Providência divina, como da providência humana, que é saber concordar estes dous extremos: conseguir o intento e evitar o perigo (...)”16.

A logicidade racional é esclarecida pela exposição retórica: “Se Por- tugal se levantara em quanto Castela estava vitoriosa ou quando menos, em quanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos ti- nham posto, era a empresa mui arriscada, eram os dias críticos e perigo- sos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente de nos-

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João Francisco Marques, A Parenética Portuguesa e a Restauração-1640-1668, Lisboa, INIC, 1989, II, p. 168.

15 Ibidem, p. 169.

16 Padre António Vieira, “Sermão dos Bons Anos” in, M. Ema Tarracha Ferreira, op. cit., pp. 342.

so bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo.”17

Os seus textos presentificam as orientações políticas do momento, apoiando as posições de uma burguesia mercantil que poderia ajudar a suportar a guerra pela defesa da independência. Não será assim de estra- nhar que, para além de pregador régio, o padre António Vieira fosse no- meado conselheiro do monarca e educador e confessor do príncipe her- deiro D. Teodósio. Intervirá nas questões do seu tempo, nomeadamente procurando reconfigurar a situação dos cristão-novos em Portugal, e até o sistema inquisitorial18. Recorde-se que o próprio António Vieira experi- mentará os cárceres da Inquisição anos mais tarde.

A situação política restauracionista exigia o reforço de alianças. No sentido de fortalecer os laços entre a monarquia portuguesa e a francesa, D. João IV dispõe-se a negociar. O padre António Vieira intervém neste processo, deslocando-se a Paris por duas vezes; em 1646, procurando o apoio do cardeal Mazarino para o resgate do Brasil da ocupação holande- sa, e em 1647, como porta-voz da proposta de celebração do casamento entre D. Teodósio e a filha do duque de Orleães. Mediante este acordo, D. Teodósio reinaria em Portugal e D. João IV seria rei do Brasil. Mazarino não se interessa, contudo, por estas propostas.

Procurando a paz com a Holanda, D. João IV envia a Haia o prega- dor que aí permanece durante nove meses. A par do apoio das comunida- des judaicas de Ruão e de Amesterdão à causa portuguesa (1646-1647), é emissário da proposta portuguesa da cedência definitiva de Pernambuco a troco da celebração da paz entre os dois estados. Contudo, as negociações fracassaram.

Os insucessos diplomáticos e as quezílias na corte levam-no a re- gressar ao Brasil para dirigir as missões jesuítas do Maranhão. Em terras brasílicas desenvolve uma intensa actividade missionária, usando, seja oralmente seja na escrita, sete idiomas nativos, perpetuando a Palavra. O

17 Ibidem.

18 Nomeadamente quando estala um conflito entre a Inquisição de Évora e a Univer-

sidade, Vieira defendeu a posição dos cristãos-novos, chegando a solicitar a Roma um perdão geral das heresias, advogando que nos interrogatórios do Santo Ofício não fossem utilizados processos tão cruéis como os até então praticados.

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pregador continua a ser um interventor directo na sociedade brasileira, servindo-se da sua pungente e eficaz oratória.

Uma última e necessária nota. É certo que, como assinalou Margari- da Vieira Mendes, o sermonário vieirino parte dos processos da predica- ção medieval, nos quais a acomodação analógica, a busca do sentido ana- gógico, a simetria e a circularidade de estilo se transfiguram num espaço pontuado pela teatralidade barroca. Expõe-se o que Vítor Serrão tão cla- ramente sistematizou ser «essa intensa apropriação do pictoral, onde os conceitos de “realismo”, “decoro”, e de “visualidade imagética “transpa- recem». A precisão, a elegância e sedução do registo perpetuam a palavra de Vieira. Recorrendo à metáfora e à alegoria esgrimem-se argumentos, postulando-se e defendendo a ideia.

Veja-se como no Sermão de Santo António19, pregado em S. Luís do Maranhão, em 1654, se entretecem os sentidos e se expõe pela imagem “uma realidade”. A exímia palavra vieirina impõe-se: “Olhai, peixes, lá do mar para a terra. (...) Cuidai que só os tapuias se comem uns aos ou- tros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vede todo aquele andar, vedes aquele con- correr às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de co- mer.”20

Observe-se a eficácia do argumento o qual ele tenta concretizar pela acção directa do homem. É certo que estas são as palavras de Vieira es- critor. Contudo, Vieira, o pregador, não se distanciaria do apelo21. A sua acção por terras do Brasil prossegue num exercício da palavra dita e es- crita até ao seu falecimento, em 1697, no espaço onde fizera os seus estu- dos, o Colégio da Baía. O Homem que afirmara que a ele não lhe fazia

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Sermão de Santo António pregado em S. Luís do Maranhão, em 1654, três dias antes de embarcar incognitamente para Lisboa, a fim de pedir a protecção régia para os índios.

20 Padre António Vieira, “Sermão de Santo António”, in M. Ema Tarracha Ferreira, op. cit., pp. 381.

21 A acção do homem concretiza-se quando três dias depois de ter pronunciado do

púlpito esta sua peroração viaja secretamente para Lisboa, procurando a interven- ção régia, conseguindo que a 9 de Abril de 1655 seja publicada uma provisão ré- gia onde se proibia que fosse feita guerra às populações ameríndias sem ordem do monarca e que as comunidades de convertidos fossem governadas pelos seus che- fes, ainda que orientadas pelos Jesuítas.

medo o pó que havia de ser; fazia-lhe medo o que havia de ser pó. O Homem, que afirmara que não temia a morte, temia a imortalidade, per- manece para sempre nessa sua condição, a de estar para sempre presente nas nossas palavras, a de ser o nosso “Imperador da Língua da Portugue- sa”.

A PRODUÇÃO LITERÁRIA FEMININA