5. Medicina Veterinária na conservação do Lince Ibérico
5.2. Actuação in situ no âmbito do projecto de Conservação do Lince Ibérico
Os primeiros estudos sobre o Lince Ibérico começaram por ser descritivos e, por isso, o conhecimento sobre a espécie cingia-se essencialmente à sua distribuição geográfica e ao seu aspecto físico exterior (comparado com outras espécies), obtidos através da observação directa de exemplares selvagens (sobretudo por caçadores), das peles disponíveis no mercado e de colecções de taxidermia em museus (Temminck, 1824; Graells, 1897). Posteriormente, foi feita a descrição da sua anatomia e morfometria (Cabrera, 1914). Só mais tarde, a partir de meados do séc. XX, são conhecidos outros aspectos como habitat, alimentação, comportamento predatório, reprodução, interacção com outros predadores, distribuição geográfica e territorialidade, que foram progressivamente melhorando até aos dias de hoje. Esta progressão acompanhou também as mudanças de valores sociais, reflexo duma maior preocupação, interesse e respeito pelo mundo animal e pela Natureza, que se verificou nesse período.
O seguimento dos exemplares selvagens foi e continua a ser essencial para o trabalho das equipas veterinárias e para o progresso do respectivo conhecimento científico sobre o Lince Ibérico em diferentes áreas. Este, com recurso a dispositivos de telemetria/GPS, foto- armadilhagem e observação directa, foi fundamental para estudar a sua biologia, ecologia, repertório comportamental, recolha de dados biométricos e parâmetros fisiológicos que nos permitiram compreender os seus padrões naturais em termos etológicos, nutricionais, ritmo circadiano, reprodução, ontogenia, organização social, interações com outras espécies, necessidades e distribuição espacial e de habitat, dispersões, morfologia e peso (condição corporal e dimorfismo sexual), entre outros. Estes conhecimentos também são essenciais para criar as melhores condições de cativeiro de modo a responder a essas necessidades, que são imprescindíveis para garantir o bem-estar do efectivo ex situ. Este, por sua vez, é fundamental na preparação de crias para reintrodução, de forma a criar indivíduos comportamental e fisicamente aptos à vida selvagem (O‟Regan e Kitchener, 2005; Reading, Miller, e Shepherdson, 2013; Wisely et al., 2005).
No que diz respeito à actuação in situ, é da responsabilidade dos Médicos Veterinários da equipa levar a cabo a vigilância médica e sanitária dos indivíduos e respectivas populações, feita através da monitorização de animais vivos (observação da condição corporal e de sinais de doença ou lesões) e da necropsia de exemplares cujo cadáver seja encontrado, mesmo que
a causa primária de morte seja evidente (por exemplo, atropelamento). A natureza e extensão das lesões ou sinais clínicos são avaliados em cada caso e vão ditar a necessidade de intervir. Há indivíduos que sofrem lesões graves, como fracturas e até perda de membros, mas que conseguem recuperar, sobreviver e reproduzir-se nessas condições, podendo, portanto, ser devolvidos à natureza após diagnóstico imagiológico, tratamento médico-cirúrgico ou mesmo sem qualquer intervenção (Garc a-Perea, 2000; GMSLI, 2014). Alternativamente, podem ser incorporados no projecto num dos centros de reprodução.
A nossa intervenção adquire especial relevância no rastreio contínuo e exaustivo de agentes patogénicos presentes na sua área de distribuição, tendo em conta a vulnerabilidade imunitária da espécie e os efeitos catastróficos que uma epidemia poderia causar nas suas populações (Meli et al., 2010a; Peña et al., 2006). Aqueles agentes que já foram detectados e/ou que são monitorizados no Lince Ibérico estão listados na seguinte tabela (Tabela 3). Caso algum dos exemplares seja positivo, não se procede à sua libertação e permanece em isolamento (Meli et al., 2010a).
Tabela 3 - Agentes infecciosos (vírus, bactérias e fungos) e parasitários.
Agente Doença Referência bibliográfica
Vírus
FeLV Leucemia felina León et al., 2017; Luaces et al., 2008; Meli et al., 2009; Meli et al., 2010a
FIV Imunodeficiência felina López et al., 2019; Meli et al., 2009 Herpesvírus suíno Doença de
Aujeszky/pseudo-raiva Masot et al., 2017 FCoV (Coronavírus
felino)
Coronavirose entérica e peritonite infecciosa felina
Meli et al., 2009; Peña et al., 2006; Roelke et al., 2008 FCV
(Calicivírus felino)
Martínez, Manteca, e Pastor, 2013; Meli et al., 2009; Peña
et al., 2006; Roelke et al., 2008
FHV1 (Herpesvírus
felino) Rinotraqueíte felina Meli et al., 2009; Roelke et al., 2008 FPV
(Parvovírus felino) Panleucopenia
León et al., 2017; Meli et al., 2009; Millán et al., 2009; Roelke et al., 2008
CAV-1
(Adenovírus canino) Hepatite infecciosa Millán et al., 2009
CDV Esgana Meli et al., 2009; Meli et al., 2010b Papilomavírus GMSLI, 2014
Bactérias
Mycobacterium bovis Tuberculose Briones et al., 2000; Martín-Atance et al., 2006; Millán et
al., 2009; Peña et al., 2006
Chlamydophila felis
Coriza felina/ Broncopneumonia intersticial
Meli et al., 2009; Millán et al., 2009; Peña et al., 2006
Leptospira interrogans - Millán et al., 2009
Ehrlichia spp. - Millán et al., 2009
Anaplasma
phagocytophilum - Meli et al., 2009
Bartonella henselae - Meli et al., 2009
Micoplasmas hemotrópicos (Mycoplasma haemofelis, Candidatus Mycoplasma haemominutum e C. M. turicensis)
- GMSLI, 2014; Meli et al., 2009; Meli et al., 2010ª
Streptoccocus canis - Nájera et al., 2018
Salmonella entérica - GMSLI, 2014; Martínez, Manteca, e Pastor, 2013
Pasteurella spp. - GMSLI, 2014
Outras (Escherichia coli,
Pseudomonas sp.) - Martínez et al., 2013
Parasitas
Felicola isidoroi e
outros ectoparasitas -
Millán et al., 2007; Oleaga et al., 2019; Pérez e Palma, 2001; Pérez, Sánchez, e Palma, 2013
Cytauxzoon felis - Luaces et al., 2005; Meli et al., 2009; Millán et al., 2007;
Millán et al., 2009
Toxoplasma gondii - García-Bocanegra et al., 2010; Millán et al., 2009; Peña et
al., 2006; Roelke et al., 2008
Neospora caninum - Millán et al., 2009
Leishmania infantum - GMSLI, 2014
Encephalitozoon cuniculi - GMSLI, 2014 Helmintes (vários: Ancylostoma, Toxocara spp. e Toxascaris leonina) -
Acosta, León-Quinto, Bornay-Llinares, Simón, e Esteban, 2011; Millán e Blasco-Costa, 2012; Millán e Casanova, 2007; Vicente, Palomares, Ruiz de Ibañez, e Ortiz, 2004
Fungos (Dermatofitoses)
Trichophyton
mentagrophytes - Martínez et al., 2013
Além disso, também é feita a monitorização destes e doutros agentes noutras espécies, quer selvagens (raposas, texugos, gatos selvagens, etc.), quer de interesse cinegético, de produção, assilvestrados ou de companhia (Nájera et al., 2019), com as quais haja contacto, directo ou indirecto, possível ou efectivo. Uma espécie em particular, o coelho-bravo, também tem sido alvo de especial atenção posto que, como previamente referido, a sua principal causa de declínio são os níveis elevados de mortalidade provocados por doenças víricas (mixomatose e doença hemorrágica viral).
Outros aspectos da saúde dos linces de populações selvagens, que foram investigados e que são do nosso interesse, incluem a detecção de poluentes ambientais e o seu impacto nos animais (Mateo et al., 2012), a presença de bactérias de estirpes resistentes a antibióticos (Sousa et al., 2014, e respectivas referências), detecção de neoplasias e doenças hereditárias (Peña et al., 2006; GMSLI, 2014). Além disso, a actuação médico-veterinária é essencial para a realização de procedimentos rotineiros de campo ou supervisão dos mesmos, como captura e anestesia/tranquilização, transporte, colheita de amostras biológicas e dados biométricos, colocação de coleira de rádio-seguimento e/ou microchip identificativo, check-up de crias selvagens, vacinação (não é feita desparasitação), realização de necropsia completa (em sede própria) (GMSLI, 2014). Poderá também ser necessária a sua intervenção atempada em situações de emergência, como caquexia e desidratação (actuando também numa eventual causa subjacente), traumatismos, intoxicações/envenenamentos, remoção cirúrgica de tumores ou eutanásia.
Com base nestes dados foram sendo criados progressivamente protocolos específicos para a espécie (exame físico completo, necropsia, recolha de amostras biológicas, quarentena, criação artificial, capturas) e, como tal, a respectiva informação será sempre a base de actuação de toda e qualquer intervenção médico-veterinária. As amostras recolhidas, quer dos animais in como ex situ, devem constar de sangue, fezes frescas (rectais), urina, pêlo, zaragatoas de recto, conjuntiva e orofaringe e biopsia de epiderme, que são fundamentais tanto para avaliar o estado sanitário dos exemplares como para armazenamento das amostras em bancos de recursos biológicos e para genotipagem (GMSLI, 2014). Este investimento, mesmo sendo a nível individual em cada animal, é importante uma vez que a sobrevivência e reprodução de cada exemplar são cruciais para o futuro da espécie, e tendo em conta que é uma espécie "em perigo", esta informação é vital para a sua conservação a longo-prazo.