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3. Lince Ibérico

3.1. Distribuição geográfica histórica e actual e evolução das populações

3.1.1. Ameaças

É possível constatar que a redução da população na segunda metade do séc. XX foi drástica e acelerada. Este extremo declínio ocorreu como resultado de vários factores, nomeadamente actividades humanas (todos os que compõem o "quarteto do mal", vide supra) que actuaram, directa e indirectamente, em simultâneo nas populações de Lince Ibérico. Os principais agentes responsáveis por este processo foram, sobretudo, caça e outras causas humanas directas, diminuição das populações de coelho-bravo, perda e fragmentação de habitat e causas de morte naturais como doenças infecciosas do lince.

Desde a antiguidade até aos anos 50, a caça era provavelmente a causa mais importante do seu desaparecimento (Palomares et al., 1995). Este era caçado pela sua pele e carne (Delibes, 1979a), como animal daninho (de forma a proteger espécies de interesse económico e cinegético) e como espécie cinegética de troféu (Delibes, 1979a; Valverde, 1963). Em Espanha, há centenas de anos que eram atribuídos incentivos monetários pela matança de determinadas espécies consideradas nocivas. Os alvos eram sobretudo carnívoros como lobos, raposas e linces, uma vez que eram considerados uma ameaça às espécies domésticas e, portanto, fonte de prejuízos económicos (Calzada, 2010; Escuer, 2008; Jiménez et al., 2018). Além disso, também era objecto de exploração económica para fornecer o mercado de peles (Ferreras et al., 2010; Simón et al., 2012, pág. 62; Temminck, 1824). No virar do século XX, foi publicado em Espanha o regulamento da Lei da Caça de 16 de Maio de 1902 que estabelecia recompensas para a eliminação de espécies consideradas daninhas, incluindo o lince (Calzada, 2010). Mais tarde, o decreto de 11 de Agosto de 1953 declara obrigatória a criação de Juntas Provinciales de Extinción de Animales Dañinos y Protección de la Caza que não só permitiam, como premiavam a sua eliminação em qualquer época do ano e com qualquer tipo de meios, incluindo batidas, laços e envenenamentos (Calzada, 2010; López, 2014; Simón et al., 2012, pág. 62; Rodr guez e Delibes, 2004). Estas resultaram num número oficial de 152 linces mortos no período entre 1953 e 1961 (Iberlince, n.d.c; López, 2014; Paulos, n.d.). Durante essas décadas e mesmo após ser declarada espécie protegida nos anos 70, foi sujeito a caça sistemática (também com armas de fogo), tal como acontecia com outros carnívoros noutras partes do mundo (Ferreras et al., 2010; Garc a-Perea, 2000; Prugh et al., 2009; Rodr guez e Delibes, 2004). Além disso, sofriam também de elevados valores de mortalidade como resultado do uso indiscriminado de armadilhas não selectivas, usadas tendo também como alvo outras espécies como o coelho-bravo (Delibes et al., 2000; Rodr guez e Delibes, 2004). Hoje em dia, tanto esta como a caça furtiva (com recurso a venenos e armas de fogo) continuam a ser causas significativas de mortalidade não natural e, com a contínua expansão do seu território resultado das medidas de conservação implementadas nos últimos anos, surgiram novamente conflitos gerados pela predação de espécies domésticas (Garrote et al., 2013; Garrote et al., 2015; Planelles e Sánchez, 2019; Rodr guez e Delibes, 2004).

Aliado a esta, o Lince Ibérico sofreu gravemente com a escassez da sua presa principal, o coelho-bravo. Esta espécie foi afectada por um acentuado declínio populacional causado por sucessivas epidemias víricas (mixomatose e doença hemorrágica viral), perda e fragmentação de habitat e perseguição directa pelo homem (está sujeita a uma forte pressão cinegética e de

controlo populacional pelos agricultores), que actuaram concomitantemente (Cabezas-Díaz et al., 2009; Palomares et al., 1995; Ward, 2005). Além disso, sendo uma espécie-chave do ecossistema mediterrânico, é naturalmente alvo de predação por parte de muitas espécies (Delibes et al., 2000; Ward, 2005). Previamente, já estava em curso um processo de declínio decorrente da perda de habitat e da elevada pressão cinegética, que tornaram as suas populações mais vulneráveis (Delibes et al., 2000; Ward, 2005). De seguida, o vírus da mixomatose (Poxviridae), originário da América do Sul e introduzido em França, chegou à península Ibérica em 1953 (Ward, 2005). Aqui, causou mortalidade de coelho-bravo na ordem dos 90%, tanto directamente pelo vírus como indirectamente por aumento da sua susceptibilidade à predação (Ward, 2005). Esta epidemia exacerbou o seu declínio, tornando- os ainda mais vulneráveis e impedindo a sua recuperação (Delibes et al., 2000; Ward, 2005). Esta foi também prejudicial ao Lince Ibérico uma vez que, após este surto, os gestores das coutadas e zonas de caça menor reforçaram os métodos não selectivos de controlo de predadores de forma a colmatar a sua escassez (Delibes et al., 2000; Villafuerte, Calvete, Blanco, e Lucientes, 1995; cf. Rodr guez e Delibes, 2004). Uma segunda vaga de elevada mortalidade nas populações selvagens ocorreu posteriormente, com o surgimento do vírus da doença hemorrágica do coelho (RHDV), provocada por um Lagovirus da família Caliciviridae, com surtos que deflagraram em Espanha e Portugal continental em 1988 e 1989, respectivamente (Abrantes, van der Loo, Le Pendu, e Esteves, 2012). Mais tarde, foram assolados por uma nova variante deste mesmo vírus (RHDV2) que surgiu em França, tendo sido registado pela primeira vez na península Ibérica em 2011-2012, onde rapidamente se espalhou, dizimando novamente esta espécie (Abrantes et al., 2013). O surgimento destes vírus e consequente colapso das populações de coelho-bravo continua, desde então e até ao presente, a causar um forte impacto negativo no Lince Ibérico, sendo um factor limitativo do crescimento das suas populações (Simón, 2018; cf. Iberlince, n.d.b). A falta de alimento deixou-as também mais vulneráveis a outras agressões que ocorreram simultaneamente (Rodriguez e Delibes, 2002).

A perda e fragmentação de habitat começou a ser uma ameaça significativa sobretudo a partir da segunda metade do séc. XX, que correspondeu a um período de rápido desenvolvimento económico e tecnológico e de expansão demográfica, pelo que regiões previamente desertas começaram a ser populadas e exploradas de forma intensiva (Clavero e Delibes, 2013; Palomares et al., 1995; Rodriguez e Delibes, 2002; Simón et al., 2012, pág. 55). A paisagem começou a ser modificada, com substituição do bosque mediterrânico por

extensas áreas de exploração agrícola, silvicultura (sobretudo plantações de pinheiro e eucalipto) e pecuária, urbanização, construção de infraestruturas como estradas, caminhos-de- ferro, barragens, etc., aliada à exploração intensiva pela indústria cinegética e turística de áreas onde habita (Delibes et al., 2000; Ferreras et al., 2010; Neca, 2000; Palomares et al., 1995; Rodriguez e Delibes, 2002; Simón et al., 2012, pág. 55). Este fenómeno teve como consequência a perda de habitat adequado tanto para o Lince Ibérico como para o coelho- bravo, resultando em populações pequenas, fragmentadas e isoladas (ilhas continentais), mais vulneráveis a efeitos estocásticos (Delibes et al., 2000; Palomares et al., 1995; Rodriguez e Delibes, 2002). Por sua vez, estas levam à perda de variabilidade genética e aumento da consanguinidade, que têm vários efeitos nefastos (como descrito anteriormente), por exemplo, tornando-os mais susceptíveis a doenças, reduzindo a fertilidade e favorecendo a expressão de alelos deletérios (Simón et al., 2012, pág. 67). Além disso, esta humanização do meio resultou noutras causas antropogénicas de mortalidade, como afogamento em poços de rega ou a que é, actualmente, a principal causa de mortalidade do lince - o atropelamento nas estradas (Figura 7) (Delibes et al., 2000; Iberlince, n.d.b; Planelles e Sánchez, 2019) - que aumentou exponencialmente desde os anos 80 (Guzmán, 2004 apud Alda et al., 2008).

Há também indivíduos cuja morte é provocada por causas naturais, tais como doenças (infecciosas, parasitárias, hereditárias, neoplásicas), interações agonísticas (intra e interespecíficas) ou predação (Abascal et al., 2016; López et al., 2014; Peña et al., 2006; Simón et al., 2012, pág. 66). Os agentes infecciosos e parasitários são mais frequentemente transmitidos, não entre linces devido à sua baixa densidade populacional, mas por via interespecífica, facto justificado pela sua natureza agressiva, nomeadamente direccionada a outros carnívoros de espécies simpátricas selvagens, domésticas ou assilvestradas (León et al., 2017; Millán et al., 2009). Estas representam um importante reservatório de agentes patogénicos, aumentando assim o seu risco de exposição aos mesmos. É fundamental ter também em consideração outras espécies por eles predadas, que possam ser fonte destes agentes, como por exemplo, ungulados, que podem transmitir Mycobacterium bovis (Millán et al., 2009; Peña et al., 2006; Perez et al., 2001). A transmissão intra-específica ocorre aquando de interacções agonísticas, sobretudo entre machos, e durante a época reprodutiva (Meli et al., 2010a). O impacto destas doenças pode ser significativo no Lince Ibérico e uma séria ameaça à sua conservação (Meli et al., 2010a), principalmente quando surgem em populações pequenas e tendo em conta a baixa variabilidade genética da espécie. Esta, por sua vez, pode ser a causa da imunodeficiência primária (por diminuição das subpopulações de linfócitos T e

B nos órgãos linfáticos, sobretudo no baço; Jiménez et al., 2009; Peña et al., 2006) e dificuldade em desenvolver resposta imunitária adquirida (Meli et al., 2010a; Millán et al., 2009; O‟Brien et al., 1985; Peña et al., 2006; Simón et al., 2012, pág. 66) que se verificam na espécie. A componente veterinária será desenvolvida em mais detalhe adiante neste trabalho.

Figura 7 - Principais causas de mortalidade do Lince Ibérico. Fonte: adaptado de Planelles e Sánchez, 2019.

No documento Conservação ex situ do lince ibérico (páginas 78-82)