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Enquadramento da importância dos Médicos Veterinários na Conservação

No documento Conservação ex situ do lince ibérico (páginas 127-131)

5. Medicina Veterinária na conservação do Lince Ibérico

5.1. Enquadramento da importância dos Médicos Veterinários na Conservação

Aquando da fundação da Biologia da Conservação, a Medicina Veterinária foi, desde logo, considerada uma das áreas basilares que constituem os alicerces da sua identidade (Soulé, 1985). Esta ênfase na saúde como factor prevalecente e essencial da conservação foi ganhando adeptos, juntando profissionais das diferentes áreas da medicina (veterinária, humana, saúde pública, entre outras) em cooperação com profissionais da biologia da conservação, unidos numa disciplina coesa, interdisciplinar e com uma linguagem comum (Deem, Fiorello, Cunningham, e the sub-committee of the committee on wildlife health and conservation, 2009; Meffe, 1999; Reading, Kenny, e Fitzgerald, 2013; Tabor, 2002). A então denominada "Medicina da Conservação" visa a promoção da saúde no contexto da Uma Só Saúde (OIE, n.d.a) aplicada à conservação da biodiversidade (Cunningham, Daszak, e Wood, 2017). Esta é uma abordagem holística que transcende o foco no indivíduo, abrangendo também um estudo ao nível de populações, espécies e ecossistemas (interações entre diferentes espécies) e a relação destes com a saúde humana, reconhecendo assim a sua absoluta interdependência (Deem et al., 2009; Tabor, 2002).

A contribuição dos conhecimentos médico-veterinários é essencial em todas as vertentes da conservação e em todas as suas fases de planeamento, implementação, monitorização e análise dos dados obtidos (Kock, Soorae, e Mohammed, 2007). O nosso papel é profundamente enriquecedor por introduzir uma perspectiva diferente, inerente à nossa formação profissional, contribuindo terminantemente para o sucesso da conservação da biodiversidade (Aguirre e Gómez, 2009; Osofsky, Karesh, e Deem, 2000; Kock et al., 2007; Whilde, Martindale, e Duffy, 2017). A actuação primária do médico veterinário é garantir a saúde e bem-estar dos animais, quer aqueles que se encontrem directamente sob o seu cuidado, quer aqueles que, indirectamente, sofram as consequências das suas intervenções (Kock, Soorae, e Mohammed, 2007; Reading, Kenny, e Fitzgerald, 2013). Assim, e sobretudo no que toca a determinadas especializações aplicadas ao estudo das espécies selvagens, como anatomia, fisiologia, reprodução, epidemiologia, microbiologia, parasitologia, imunologia ou

farmacologia, permite-nos ter um papel decisivo em cada projecto, tanto nas suas componentes in como ex situ, fazendo uma abordagem integrada de ambos. Esta vasta gama de conhecimentos vai reflectir-se em pareceres de natureza técnico-científica, mas também ética e legal. Assim, a sua participação materializa-se nas seguintes competências e actuações (Deem et al., 2009; Kock, Soorae, e Mohammed, 2007; Meltzer, 1995; Reading, Kenny, e Fitzgerald, 2013):

- reabilitação de fauna selvagem, incluindo tratamento médico, cirúrgico, quarentena e triagem;

- implante cirúrgico de dispositivos de rádio-seguimento, nas espécies em que se considere necessário;

- actuação médico-cirúrgica em situações de emergência;

- análise de risco de medidas de conservação na fase de planeamento do projecto, inter alia, na identificação de potenciais ameaças que possam comprometer a saúde e bem-estar dos animais (o nosso dever ético é em primeiro lugar para com os animais) e, consequentemente, o seu sucesso e na avaliação de medidas propostas;

- captura e manipulação de animais, tanto em liberdade como em cativeiro, para efectuar procedimentos que se considerem oportunos, como recolha de material biológico, colocação de dispositivos de telemetria, vacinação e desparasitação, procedimentos médicos ou cirúrgicos, etc., e, estando presentes, podemos actuar de imediato caso ocorram complicações;

- monitorização remota da saúde de indivíduos ou populações através da medição e recolha de parâmetros fisiológicos e etológicos;

- translocação de animais selvagens, nomeadamente na captura, tranquilização, manipulação, transporte e libertação;

- participação em estudos de genética de espécies (O‟Brien et al., 1985);

- aspectos farmacológicos relevantes, sobretudo no que diz respeito à captura e tranquilização de animais selvagens e na redução de resistências a antibióticos e antiparasitários;

- conhecimentos de toxicologia respeitantes a venenos ou substâncias poluentes nocivas, que possam afectar a saúde e/ou levar à morte de animais (por exemplo, metais pesados, antibióticos e outros fármacos, insecticidas, fertilizantes agrícolas, disruptores endócrinos, carcinogéneos, etc.) e respectivo estudo epidemiológico;

prazo, tratamento e, se possível, erradicação de agentes patogénicos (cf. Schulte-Hostedde e Mastromonaco, 2015), tanto de espécies selvagens (vivos ou mortos e suas partes, incluindo aqueles que são comercializados legalmente ou confiscados) como de animais de produção, de trabalho, de interesse cinegético e de companhia, dando particular atenção ao reconhecimento de espécies ou indivíduos sentinela, portadores que ajam como reservatórios destes agentes e espécies que possam fazer zooprofilaxia (Dobson et al., 2006);

- intervenção em questões de saúde pública, incluindo implementação de cordões sanitários, quarentena e eutanásia, sempre que se considere necessário;

- aspectos de patologia e medicina forense na identificação da causa de morte, permitindo-nos agir em conformidade com o resultado;

- medidas de controlo de populações, por exemplo, pelo uso de métodos contraceptivos;

- maneio de animais mantidos em condições de cativeiro e semi-liberdade, como etologia, nutrição, reprodução (incluindo técnicas de reprodução assistida);

- aspectos éticos, de particular relevância na promoção do bem-estar animal (animais selvagens em cativeiro, translocações, eutanásia de espécies invasoras, controlo de população, etc.) tal como definido pela Organização Mundial de Saúde Animal, OIE (OIE, n.d.b) e de acordo com o Código de Conduta delineado pela Federação dos Veterinários da Europa (FVE) (FVE, 2018);

- contribuição para o progresso científico através de investigação médica de novos métodos e tecnologias de estudo, prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças (Jameson e Longo, 2015; Whilde, Martindale, e Duffy, 2017);

- formação e treino de outros profissionais, tanto de medicina veterinária como de outras áreas (por exemplo, em assepsia, recolha de amostras);

- comunicação com os diferentes intervenientes, directos e indirectos, cientistas e leigos, tanto no processo de recolha de dados como na comunicação dos resultados (incluindo através de meios de comunicação social);

- acções de sensibilização e educação ambiental.

Em particular, o seu contributo no âmbito do controlo sanitário e epidemiológico é preponderante, uma vez que a introdução de um agente patogénico pode dizimar uma população ou colocar em risco uma espécie (Hess, 1996; Holdo et al., 2009; Kock et al., 2007; McCallum, 2008), preocupante sobretudo em populações ameaçadas, que são as mais

vulneráveis. Com o aumento da população humana e consequente expansão, aumenta o seu contacto com animais selvagens e destes com animais domésticos de companhia e de produção. Além disso, a disseminação de agentes patogénicos é propiciada pelo movimento humano que ocorre por todo o globo (elevado número de pessoas e mercadorias, com as distâncias a serem transpostas em menor tempo) e do transporte e introdução de espécies para fora da sua área de distribuição através da comercialização legal ou ilegal de animais ou suas partes. A implementação de medidas de conservação contribui para este fenómeno, nomeadamente quando há translocações de animais (entre locais in situ, entre in e ex situ ou entre diferentes instalações ex situ) e com o aumento do movimento natural de animais entre populações que resulta da criação de corredores ecológicos (por exemplo, Ryan e Thompson, 2001). De particular relevância é a detecção precoce de doenças infecciosas emergentes e reemergentes (sobretudo com origem em animais selvagens; Jones et al., 2008), que podem resultar de alterações ecológicas nos ecossistemas que advêm das acções antropogénicas e que são agravadas pelas alterações climáticas (Aguirre e Gómez, 2009; Reading, Kenny, e Fitzgerald, 2013; Rhyan e Spraker, 2010; Tabor, 2002). Portanto, o seu suporte é indispensável na análise do risco, feita como parte do planeamento de projectos de conservação (Hess, 1996; Kock, Soorae, e Mohammed, 2007), e na monitorização do mesmo a longo prazo, sendo que a preservação das espécies vai contribuir para manter a funcionalidade desse serviço nos respectivos ecossistemas. Além disso, somos um elo determinante na salvaguarda da saúde no âmbito da Uma Só Saúde, uma vez que temos o ónus da detecção e monitorização da prevalência de agentes patogénicos, na implementação de medidas profilácticas e estratégias de controlo da sua transmissão em espécies, tanto selvagens como domésticas, e de colocar em prática protocolos de contenção epidemiológica sempre que um surto seja detectado (Rhyan e Spraker, 2010). Estas medidas não devem centrar-se apenas nas doenças transmissíveis ao homem e a espécies de interesse económico, como acontecia tradicionalmente, sendo fundamental também investir no conhecimento e pôr em evidência a importância de doenças que assolem espécies selvagens e que possam comprometer a sua sobrevivência (Cunningham, Daszak, e Wood, 2017; Whilde et al., 2017).

O trabalho dos médicos veterinários tem sido preponderante na conservação do Lince Ibérico e reveste-se da máxima importância em ambas as componentes in e ex situ.

5.2. Actuação in situ no âmbito do projecto de Conservação do

No documento Conservação ex situ do lince ibérico (páginas 127-131)