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Etologia e Videovigilância

No documento Conservação ex situ do lince ibérico (páginas 101-108)

4. Estágio no CNRLI

4.2. Etologia e Videovigilância

Durante o estágio fiz parte da equipa de etologia e videovigilância do CNRLI, que está organizada em turnos de 8 horas, com rotações três vezes ao dia (7H, 15H, 23H), todos os dias do ano, com o objectivo de observar os linces, monitorizando e registando os seus comportamentos em fichas etológicas específicas para cada fase do seu ciclo de vida anual (Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019). Para isso, a equipa tem à sua

disposição diversas câmaras nos cercados onde eles se encontram. A minha função, como membro integrante da equipa, consistiu em observar e registar os comportamentos de todos os animais (sempre que possível), preenchendo as respectivas fichas de etograma.

i. Etologia

Etologia é a ciência que estuda o comportamento animal (biologia do comportamento; Tinbergen, 1963). Esta centra o seu estudo em 4 problemas fundamentais, que se debruçam sobre as origens e causas dos comportamentos, tanto a nível individual como de grupo (Tinbergen, 1963):

- função - consequências imediatas do comportamento no animal, noutros animais e no meio; significado e valor adaptativo do mesmo e como este é mantido por selecção natural;

- causalidade/mecanismo - estímulos externos e internos que desencadeiam o comportamento e mecanismos que lhe são inerentes;

- ontogenia - modo como um comportamento se desenvolve no indivíduo

(componentes ambiental e genética) e processos importantes no seu desenvolvimento, como a aprendizagem;

- filogenia/evolução - forma como uma espécie desenvolveu um determinado comportamento e estudo filogenético comparativo.

Comportamento pode ser definido como "respostas internamente coordenadas (acções ou inacções) de organismos vivos inteiros (indivíduos ou grupos) a estímulos internos e/ou externos" (Levitis, Lidicker, e Freund, 2009; tradução livre pela autora). Por sua vez, este pode ser descrito em termos de 6 questões que lhe são inerentes e que abrangem as suas várias dimensões (Lehner, 1998):

- o quê (a descrição do comportamento propriamente dito),

- quem (o sujeito, quem está presente, a quem o comportamento foi direccionado, a relação entre esses indivíduos, etc.; o comportamento varia consoante as espécies, sexos, idades, hierarquia e a nível individual, isto é, a personalidade),

- quando (contextualizar a dimensão temporal do comportamento na fase do

desenvolvimento do animal (ontogenia), estação do ano (fenologia/sazonalidade), hora do dia (ritmo circadiano), posição numa sequência e contabilizar a duração do comportamento),

- onde (componente espacial relativa à posição geográfica do indivíduo e desse em relação a outros indivíduos e elementos do seu entorno, e ao ambiente externo, biótico e

abiótico, como o habitat em que se encontra),

- como (parâmetros anatómicos e mecanismos fisiológicos de um comportamento), - porquê (tanto do ponto de vista da adaptação ecológica, como da motivação,

incluindo estímulos externos e internos que lhe são inerentes e resultados que desejem obter, que é também baseado na experiência).

ii. Comportamentos e categorias de etograma

Qualquer estudo etológico tem como ponto de partida a questão “o quê”, ou seja, o comportamento. Todos os animais possuem um determinado repertório comportamental, isto é, o conjunto total de comportamentos que cada um deles é capaz de manifestar. A partir da observação do animal é possível elaborar um inventário, mais ou menos exaustivo, desses comportamentos, designado por catálogo. Quando este se aproxima do repertório é denominado etograma, que consiste numa lista de comportamentos específicos da espécie e a descrição dos respectivos elementos e funções, sendo construído mediante a observação sistemática de vários indivíduos dessa espécie. Cada descrição deve ser clara e concisa, mas também completa e detalhada, incluindo critérios que definam o comportamento, de forma a reconhecer e ter em conta variações individuais (intra-específicas e temporais) e que possibilitem, também, estabelecer o seu início e fim. Isto permite reduzir o erro, intra- observador e entre diferentes observadores, gerando assim dados mais fidedignos e, portanto, mais válidos. Para isso, deve também permitir facilidade de registo e, por conseguinte, os comportamentos podem ser mutuamente exclusivos, apesar de o animal conseguir realizar mais do que um comportamento simultaneamente. De entre os diferentes comportamentos observados, aqueles que sejam do nosso interesse devem ter definições que esclareçam quando devem ser registados, por comparação com os restantes. Do mesmo modo, a dimensão das categorias comportamentais a registar deve ser a mesma, uma vez que elas só são comparáveis a níveis similares de detalhe de observação (Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019). Outro aspecto fundamental da etologia, além do reconhecimento dos diferentes comportamentos, é a identificação e distinção dos indivíduos, particularmente relevante quando há partilha de espaço por dois ou mais animais. Para esse fim, é necessário identificar e registar os elementos distintivos de cada um ou, se necessário, recorrer a métodos de marcação (Lehner, 1998, pág. 221 e seguintes).

No geral, os comportamentos podem ser classificados em duas categorias distintas: eventos (comportamentos momentâneos) e estados (comportamentos prolongados no tempo,

cuja duração é mensurável) (Altmann, 1974), no entanto, há quem considere que todos os comportamentos são estados de maior ou menor duração (Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019). Os comportamentos podem ser organizados de forma mais específica em categorias ou unidades, claramente definidas e descritas, nas quais estes se dividem ou agregam. Assim, com base no etograma da espécie, pode ser elaborado um etograma funcional, usando as categorias relevantes sobre as quais se pode debruçar um estudo etológico. Os respectivos registos podem ser efectuados de diferentes formas, consoante: o objectivo do mesmo, o objecto de estudo, o tipo de dados a analisar (qualitativos ou quantitativos) e as condições existentes (humanas, técnicas), sendo que estes factores irão ditar o melhor método de amostragem. Assim, a amostragem pode ser focal (centrada num indivíduo, um par ou um grupo) ou geral (feita a todos os indivíduos do estudo). Por sua vez, o método de recolha de dados pode ser de tipo:

→ ad libitum, isto é, observações oportunistas efectuadas sempre que se proporcione, adequadas sobretudo numa fase inicial de reconhecimento ou em estudos descritivos da espécie, incluindo comportamentos raros, mas significativos;

→ registo contínuo, incluindo todas as ocorrências de um ou um número limitado de comportamentos, e de sequências (cadeias) de comportamentos de um animal ou interações (geralmente focal), permitindo assim medir a duração, frequência, intensidade e latência dos comportamentos;

→ amostragem temporal, na qual o tempo é dividido em intervalos amostrais:

- “um-zero”, quando o observador regista se um comportamento ocorreu (1, um) ou não (0, zero) durante períodos de tempo (intervalos amostrais) sucessivos que precedem os pontos amostrais determinados, em um ou mais indivíduos;

- amostragem instantânea, na qual o estado de um animal (amostragem focal) é registado em momentos predeterminados (pontos amostrais) ao longo de um período de tempo (intervalo amostral); inclui scan, isto é, quando são recolhidos registos instantâneos do estado de cada um dos indivíduos de um grupo de animais (amostragem geral), observados durante um intervalo amostral.

iii. Videovigilância

A videovigilância é uma ferramenta fundamental de auxílio à etologia e, neste caso concreto, ao projecto de conservação ex situ do Lince Ibérico. Esta permite realizar o seguimento exaustivo dos linces e monitorizar os seus comportamentos naturais, de forma não

invasiva, sem interferência provocadas pela presença humana e os seus estímulos, eliminando assim o efeito do observador no comportamento (Lehner, 1998). Cada cercado está equipado com duas câmaras Domo, ambas no campeio. A estas acrescem câmaras fixas, munidas de luz infravermelha, instaladas no interior das caixas parideiras (CPC, CPMG e CPEP) e no EP. Todas elas estão associadas a um programa informático de videovigilância, o Multieye® (Artec technologies AG, Alemanha). Este sistema permite a sua observação e registo de forma detalhada e mais eficaz, dada a possibilidade de gravar e, assim, analisar comportamentos que possam ter passado inobservados e repetir a observação posteriormente e a diferentes velocidades. O sistema possibilita, através do ajuste da luminosidade e de luz infravermelha, a observação dos animais também em condições nocturnas. Os objectivos principais do uso de videovigilância nos centros de reprodução são (Rivas et al., 2016):

- seguimento e observação: assiste, no geral, no maneio diário e no bem-estar dos animais e, em particular, auxilia no seguimento de determinados momentos preponderantes no programa de reprodução, como acompanhar e avaliar interações entre indivíduos, nomeadamente no que diz respeito à sua compatibilidade, confrontos (evitando lesões que deles possam resultar), condutas sexuais, documentar cópulas para determinar o momento do parto, realizar o seguimento pós-parto da mãe e respectivas crias, avaliar a preparação dos exemplares para reintrodução.

- monitorização da saúde dos linces, relevante em actuações de captura, intervenção clínica (vide infra), enriquecimento ambiental (vide Rivas et al., 2016, pág. 115).

- estudos etológicos: aumentar o conhecimento da espécie em diversas vertentes como interação entre indivíduos (comportamento social), comportamento reprodutor, comportamento maternal, ontogenia, ritmos circadiano e fenológico, entre outros. Neste caso, a gravação das imagens é particularmente relevante visto que permite a sua distribuição entre os diversos especialistas das diferentes áreas.

- sensibilização: permite a difusão e observação por parte do público geral de imagens seleccionadas, assistindo na sua consciencialização e educação no que diz respeito ao Lince Ibérico e ao seu programa de conservação.

No caso concreto do programa ex situ do Lince Ibérico, foi usado o método de scan para recolha dos comportamentos de cada animal do centro, manifestados de forma natural e espontânea. Estes são registados a intervalos amostrais de uma hora, ao longo de vinte e quatro horas diárias de amostragem, numa ficha de etograma elaborada especificamente para

o projecto. O intervalo de tempo usado é atipicamente longo para maximizar a probabilidade de observação de todos os linces do CNRLI, tornando esta ferramenta útil não só para estudos comportamentais como para a monitorização exigente dos linces (Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019). O scan contempla igualmente um repertório comportamental extenso e abrangente, o que, aliado ao número elevado de linces, torna necessária a adaptação do método de amostragem. Desta forma, não obtemos nem frequências nem durações reais, mas temos registos permanentes dos linces, comparáveis por meses, fase e anos (Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019). Assim, o comportamento registado para cada amostragem deve constar do etograma da espécie e ser aquele que é identificado, sempre que possível, imediatamente aquando da observação do indivíduo. Este deve ser observado durante 10 segundos, apenas para compreender o contexto do mesmo. A excepção são aqueles comportamentos em que há deslocamento, sendo, nesse caso, necessário observá-los durante 60 segundos no máximo. É atribuída uma sigla aos vários elementos da ficha de etograma, de forma a facilitar o seu preenchimento. A ficha inclui informação relevante para registo do comportamento, nomeadamente:

- data, - hora do dia, - observador(es), - tempo meteorológico,

- agente externo, isto é, factores de interferência como tratadores ou outros presentes nos cercados, ruídos, etc.,

- lince,

- minuto do registo,

- actividade (activo ou inactivo), - comportamento,

- localização,

- elementos do espaço com os quais interage, como agente activo ou passivo, se for o caso,

- cercado em que se encontra o lince (numerados de 1 a 16),

- área(s) do cercado a que o lince tem acesso, isto é, campeio, MG, MP e EP. - observações que se considerem oportunas.

Figura 16 - Cabeçalho da ficha de etograma.

Como se pode observar na Figura 16, os comportamentos estão agrupados em unidades funcionais, nomeadamente:

- manutenção: grooming/higiene (a), defecar (d), urinar (o), purga (pu), coçar-se (ras), vomitar (vo).

- alimentação: beber (b), comer (c), mamar (m).

- locomoção e vigilância: deslocar-se (mov), explorar (ex), trepar (tr), saltar (s), enterrar (en), escavar (es), evitar (ev), observar (obs).

- predatório: caçar (cz).

- sedentário: descansar (des), dormir (d).

- social: interacção negativa (i-; que inclui sinais agonísticos como bufido, grunhido, patada, barbas abertas para a frente, pêlo eriçado e luta), positiva (i+; sinais afiliativos como vocalização, mostrar genitais, marcação mútua com urina, rebolar na frente do outro lince, cabeçada, esfregar cara e/ou corpo, jogo de perseguição) ou neutra (i; cabeçada, barbas abertas, passeio paralelo, farejar, e na ausência de outros sinais corporais agonísticos ou afiliativos); allogrooming (alo), jogo social (js), jogo locomotor (jl), jogo com objectos (jo), jogo com presa (jp); marcar com urina (xo), com patas dianteiras (xpd) ou traseiras (xpt), com barbas (xb), com corpo (xc).

- materno-filial: amamentar (am), allogrooming (alo), devendo, neste caso, especificar-se na coluna "cria" se é activo (aa), passivo (apas) ou mútuo (amut) e, nas observações, com quem realizou o comportamento.

- anómalo: esta categoria abrange comportamentos desviados (estratégias comportamentais para lidar com situações externas percebidas como negativas ou exigências internas; Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019; Mason e Latham, 2004) como mamar parte do corpo (mc), estereotipias (condutas repetitivas) como deslocação repetitiva sem estímulo, que pode ser longa (rsl) ou curta (rsc), ou com estímulo de presa (rp), de tratador (rc), de lince (rl), de fuga (rh), e comportamentos possíveis indiciadores de doença, como pica (pi), diarreia, claudicação, tremor, convulsão, poliúria/polidipsia, espirro, tosse, tenesmo (GMSLI, 2014, pág. 27).

- eventualmente, o animal pode estar fora de vista (fv), sem câmara (sc; falha técnica) ou a realizar um comportamento não identificado (ni), circunstâncias essas que estão categorizadas para registo alternativo ao comportamento não visualizado (Grancho, A.M., comunicação pessoal, 21 de Junho, 2019).

Os linces podem interagir com elementos físicos estruturais ou de enriquecimento e, como tal, é oportuno registar esses elementos, sempre que se verifique. Podem ainda interagir com animais que, inevitavelmente, entrem no seu espaço (aves, por exemplo). Tendo em conta que é um estudo que envolve vários observadores e que as fichas são preenchidas por um elevado número de diversas pessoas ao longo do tempo (com diferentes níveis de experiência e competências) nos diferentes centros, a ficha de etograma está feita de forma a reduzir ao máximo os erros inter-observador, inerentes ao processo de recolha de dados etológicos. O objectivo é permitir a recolha de dados mais fidedignos (sem espaço para ambiguidade), que possam ser usados para análise, de forma independente, por investigadores tanto internos como externos.

Além do scan geral para preenchimento da ficha de etograma, a equipa está ainda incumbida do preenchimento de fichas adicionais que dizem respeito às diferentes fases da reprodução e ontogenia do Lince Ibérico que seguidamente serão abordadas de forma mais detalhada em cada fase correspondente.

No documento Conservação ex situ do lince ibérico (páginas 101-108)