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4 A LEI MARIA DA PENHA: advento e principais inovações

4.5 Principais inovações trazidas pela Lei Maria da Penha

4.5.1 Adoção de um novo paradigma jurídico

Talvez, a principal inovação da Lei 11.340/06 tenha sido a adoção de um novo paradigma jurídico, com a perspectiva de gênero. Destarte, o art. 4.o da estabelece que, na interpretação da aludida lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. É de conhecimento do operador do direito que o ordenamento jurídico, principalmente na era do pós-positivismo, assenta como técnica de aplicação do direito a sociológica, à luz do contexto social. O processo sociológico conduz à investigação dos motivos e dos efeitos sociais da lei, culminando na sua aplicação de acordo com as necessidades contemporâneas, com os olhos postos no futuro. Atende às conseqüências econômicas, políticas e sociais da exegese, porque enxerga o sistema jurídico como subsistema do sistema social, e não como um sistema autônomo (HERKENHOFF, 2002, p. 27).

Assim, exige-se dos profissionais jurídicos uma postura menos tecnocrata, menos comprometida com a manutenção do status quo, e mais voltada para o compromisso com a transformação e a justiça social. O artigo em comento é um claro exemplo disso: quer um operador do direito coadunado com a realidade social e sensível aos abusos que ameaçam a dignidade humana da mulher em situação de violência doméstica e familiar. A lei exige um intérprete que não se satisfaça apenas com uma igualdade formal, mas sim alguém que busque estabelecer o equilíbrio das relações de gênero. Desafiando a tradição jurídico-legal que tolerava a violência doméstica e familiar contra a mulher, negando-lhe o reconhecimento enquanto violação de direitos humanos ao conferir à mesma o estatuto de “infração penal de menor potencial ofensivo”, a Lei Maria da Penha dispõe que família, sociedade e poder público deverão promover as condições adequadas para o exercício efetivo pelas mulheres dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (art. 3.o, caput e § 2.o). Não é outra a razão de os movimentos feministas terem concentrado esforços em torno da elaboração e aprovação da referida lei: a abordagem jurídica do problema estabelece obrigações para o Estado e para a sociedade, legitimando a luta das mulheres por uma sociedade mais justa e igual. Nessa perspectiva:

Por outro lado, há uma consciência avançada da situação capaz de definir os direitos humanos no feminino, como, aliás, vem sendo feito nos campos da saúde, da educação, da violência, jurídico, etc. Os portadores desta consciência lutam por sua difusão, assim como pela concretização de uma cidadania ampliada, isto é, de direitos humanos também para pobres, negros, mulheres. O respeito ao outro constitui o ponto nuclear desta nova concepção da vida em sociedade. Como afirma Saramago, enquanto a religião exige que os seres humanos se amem uns aos outros, o que depende de convivência, uma vez que nem mesmo o amor materno é instintivo (Badinter, 1980), a compreensão dos direitos humanos impõe que cada um respeite os demais. Amar o outro não constitui uma obrigação, mesmo porque o amor não nasce da imposição. Respeitar o outro, sim, constitui um dever do cidadão, seja este outro mulher, negro, pobre (SAFFIOTI, 1999, p. 85, grifo nosso). Ao demandar que a resposta estatal frente aos casos concretos de violência doméstica e familiar contra a mulher leve em consideração o paradigma dos direitos humanos, a lei exige dos agentes políticos e dos servidores públicos, além do conhecimento técnico- jurídico, a sensibilização para os fenômenos da discriminação e da violência de gênero. Reconhecendo o ciclo da violência doméstica, representado pelas inúmeras tentativas de recomposição da relação conjugal realizadas pelas mulheres, por sua dinâmica diferenciada e pela potencialidade de causar um dano irreversível (tal como o femicídio), a legislação faz uma opção político-criminal de gênero, afastando o uso do tecnicismo jurídico apenas

aparentemente neutro, o qual negava às mulheres a condição de sujeitos de direitos e de proteção pela lei penal (CAMPOS, 2009). Admite, assim, que a violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto expressão da violência de gênero, é estrutural, sendo necessárias medidas específicas para combatê-la. E, ao fazê-lo, abarcando essa violência numa dimensão mais ampla, revela-nos o seu maior desafio: a mudança de olhar e de atitude. Nessa esteira:

O tecnicismo jurídico reveste com aparência de argumento técnico o que é, na verdade, um discurso misógeno ou sexista. No que se refere à Lei Maria da Penha, somente o não-entendimento da violência doméstica como um mecanismo de poder e controle sobre as mulheres e dos objetivos da Lei podem explicar porque alguns tribunais e juízes ainda negam aplicação integral e efetividade a alguns de seus dispositivos (CAMPOS, 2009, p. 29).

Sem ignorar as relações sociais, a submissão histórica das mulheres, o uso da violência como forma de controle sobre o feminino, a banalização do tratamento da violência contra a mulher operada pelo Poder Judiciário e a negação das relações de gênero como estruturantes da desigualdade entre homens e mulheres, a Lei Maria da Penha elege proteger exclusivamente as mulheres, lançando mão de um amplo catálogo de medidas de caráter extrapenal, voltadas à prevenção da violência e à proteção das vítimas, e de outras de caráter repressivo (como o agravamento da pena nos crimes de lesão corporal de natureza leve e o afastamento da Lei n.o 9.099/95) (CAMPOS, 2009). Nessa direção, a lei constitui verdadeira ação afirmativa, buscando reposicionar a mulher na sociedade brasileira mediante estratégias que lhe assegurem a igualdade constitucionalmente proclamada.