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2 DESIGUALDADE DE GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

2.3 Políticas públicas e violência doméstica e familiar contra a mulher

2.3.1 Os movimentos sociais enquanto sujeitos do processo das políticas públicas

2.3.1.1 O movimento feminista:as mulheres como atrizes do processo de políticas

Uma vez que a ideologia patriarcal dominante, que é veiculada inclusive através do aparato estatal e da ciência, não se reproduz de forma simples e mecânica, propiciando o cotidiano das relações sociais a emergência das contradições, conflitos e tensões que elas comportam, aos movimentos feministas, apoiados em “uma postura científico-política acidamente crítica” (SAFFIOTI, 2000, p. 72), couberam as tarefas de desmistificar a visão da família como locus do sagrado, revelando que esta pode ser, na verdade, uma instituição violenta, e de denunciar que as esferas pública e privada não se encontram cindidas, dentro de uma perspectiva de luta pelo reconhecimento estatal e societal da opressão de gênero e pelo efetivo respeito aos direitos humanos das mulheres.

Denunciando o sistema de exploração-dominação das mulheres pelos homens, os movimentos feministas promoveram um aprofundamento do nível de consciência e obtiveram significativos avanços democráticos, muito embora o gozo dos mesmos reste, ainda, em grande medida, circunscrito às mulheres da burguesia e pequena burguesia (BENOIT, 2000, pp. 76-88), tendo conseguido dar visibilidade ao problema da violência de gênero:

Ao afirmar que “o pessoal é político”, o feminismo traz para o espaço da discussão política as questões até então vistas e tratadas como específicas do privado, quebrando a dicotomia público-privado, base de todo o pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político. Para o pensamento liberal, o conceito de público diz respeito ao Estado e às suas instituições, à economia e a tudo mais identificado com o político. Já o privado se relaciona com a vida doméstica, familiar e sexual, identificado com o pessoal, alheio à política.

Ao utilizar essa bandeira de luta, o movimento feminista chama a atenção das mulheres sobre o caráter político da sua opressão, vivenciada de forma isolada e individualizada no mundo do privado, identificada como meramente pessoal (COSTA, 2006, p. 53).

Ressalte-se, inicialmente, que o movimento feminista é extremamente variado, razão pela qual muitos(as) estudiosos(as) a ele se referem no plural – movimentos feministas. De acordo com as diferentes abordagens do tema mulher e de seus respectivos rebatimentos, podem ser identificados cinco movimentos: o conservantista, o liberal, o marxista-dogmático, o feminista radical e o feminista socialista (SILVA, 1992). O conservantista se “ocupa das tensões existentes nas relações entre as categorias de gênero, desvinculando-as do contexto histórico, econômico, social, político e cultural” (SILVA, 1992, p. 20), concebendo a assimetria entre homens e mulheres como natural. O liberal, ao partir de um sistema de idéias prevalecentes nas democracias liberal-burguesas, reivindica a igualdade de direitos legais entre homens e mulheres, circunscrevendo a questão da igualdade entre homens e mulheres ao plano formal (SILVA, 1992). O marxista-dogmático enxerga a questão feminina como um tema subordinado às relações sociais de produção, isto é, “o conceito de relações de gênero não goza do mesmo estatuto teórico que o conceito de relações entre as classes sociais” (SILVA, 1992, p. 21). O feminista radical não apenas privilegia a questão específica da mulher, como pretende alcançar total autonomia em relação ao homem. O feminista socialista, por sua vez, lida, simultaneamente, com as contradições básicas que permeiam as relações sociais, a saber, as relações de gênero, de classe e de raça/etnia, entendendo-as como categorias históricas que gozam do mesmo estatuto teórico (SILVA, 1992).

O movimento feminista contemporâneo4, como sinônimo da luta coletiva contra todas as causas da opressão feminina, surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 60 e na Europa no início da década de 70, não tardando, porém, em se difundir pelo mundo inteiro nas décadas seguintes. No plano internacional, nos anos de 1930 e 1940, formalmente, as reivindicações das mulheres haviam sido atendidas: podiam votar e ser votadas, ingressar em instituições escolares, participar do mercado de trabalho. Nesse momento, observou-se um refluxo na organização das mulheres. Foi um período marcado pela ascensão do nazi-fascismo e pela preparação e eclosão de uma nova guerra mundial. A afirmação da igualdade entre os sexos convergiu com as necessidades econômicas daquele momento histórico, no qual a participação da mulher no mercado de trabalho era necessária em razão do emprego da mão- de-obra masculina nas frentes de batalha (ALVES, 2003, p.50). Porém, com o final da guerra e o retorno da força de trabalho masculina, a ideologia que valoriza a diferenciação dos papéis por sexo, atribuindo à condição feminina o espaço doméstico, é reativada, no sentido de retirar a mulher do mercado de trabalho para ceder lugar aos homens. De tal sorte:

As mensagens veiculadas pelos meios de comunicação enfatizam a imagem da “rainha do lar”, exarcebando-se a mistificação do papel da dona-de-casa, esposa e mãe. Novamente o trabalho externo da mulher é desvalorizado, tido como suplementar ao do homem (ALVES, 2003, p. 50).

Nos passos das lições de Simone de Beauvoir, que, durante esse período de transição, constituiu-se uma voz isolada na denúncia da alienação da mulher, treinada para ser mero apêndice do homem, para exercer o papel de “segundo sexo”, é, somente nos anos 1960, nos Estados Unidos, que surge um movimento que questiona o “papel tradicional da mulher”, dando os primeiros passos para a construção de uma teoria feminista, sobressaindo-se a militância de Betty Friedman (ALVES, 2003). Alambert (1986, p. 82) escreve:

Nos Estados Unidos em 1966, Betty Friedan fundou o NOW (National Organization of Women) depois de ter despertado três anos antes, com seu livro Feminine Mystique (A Mística da Mulher) os sentimentos feministas das norte-americanas, ao descrever o cotidiano amargo das mulheres que residem nos subúrbios. [...] Cerca de 10 mil mulheres ingressaram nas fileiras do NOW, em 1971. Eram sobretudo mulheres casadas e com filhos. E o movimento se defina como grupo de pressão política para alcançar objetivos claros: reciclagem das mães de família pelo acesso à formação e pelo direito ao emprego, igualdade dos salários masculinos e femininos, igualdade nos direitos de família, abolição da publicidade sexista etc. [...] Na verdade, o que as mulheres americanas repeliam era a idéia de serem limitadas ao papel de esposa, mãe, educadora etc. juntamente com o papel de vamp ou de

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De acordo com Gohn (2007), o feminismo ocidental tem sido dividido em três grandes ondas: a primeira é relacionada ao reconhecimento legal da igualdade de direitos (de voto, ao trabalho, etc.); na segunda, a preocupação volta-se à problemática das diferenças e a noção de igualdade amplia-se para os costumes, passando-se a discutir temas como sexualidade, violência, mercado de trabalho, etc.; na atualidade, o debate e a produção teórica feminista apresentam múltiplos recortes, tendo lugar central o tema da discriminação.

prostituta, apresentados pelos mass media e pela cultural, a partir do término da Segunda Guerra Mundial.

Debruçando-se sobre a análise histórica das relações entre os sexos, a teoria feminista afirmará que “o sistema patriarcal é um sistema universal de dominação prevalente em todas as culturas, e que penetra as religiões, leis, costumes de todas as civilizações” (ALVES, 2003, p. 53). Proposta estava, então, a análise política das relações de sexo: o patriarcalismo, uma das estruturas sobre as quais se assentam as sociedades contemporâneas, caracterizando-se pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre a mulher e os filhos no âmbito familiar, autoridade essa somente possível de ser exercida pelo fato de que esse mesmo patriarcalismo permeia a organização da sociedade, passa a ser questionado (CASTELLS, 2006, p.170). Castells (2006, p. 170) afirma:

A família patriarcal, base fundamental do patriarcalismo, vem sendo contestada neste fim de milênio pelos processos, inseparáveis, de transformação do trabalho feminino e da conscientização da mulher. As forças propulsoras desses processos são o crescimento de uma economia informacional global, mudanças tecnológicas no processo de reprodução da espécie e o impulso poderoso promovido pelas lutas da mulher e por um movimento feminista multifacetado, três tendências observadas a partir do final da década de 60. A incorporação maciça da mulher na força de trabalho remunerado aumentou o seu poder de barganha vis-à-vis o homem, abalando a legitimidade da dominação deste em sua condição de provedor da família. Além disso, colocou um peso insuportável sobre os ombros das mulheres com suas quádruplas jornadas diárias (trabalho remunerado, organização do lar, criação dos filhos e a jornada noturna em benefício do marido). Primeiro, os anticoncepcionais, depois, a fertilização in vitro e a manipulação genética que se aprimora a cada dia são fatores que permitem à mulher e à sociedade controle cada vez maior sobre a ocasião e a freqüência das gestações. Quanto às suas reivindicações, as mulheres não esperaram o fim do milênio para se manifestarem. (...) Tenho, porém, de admitir que foi apenas nos últimos 25 anos que observamos uma insurreição maciça e global das mulheres contra sua opressão, embora com diferente intensidade dependendo da cultura e do país (CASTELLS, 2006, p. 170). Sob forte influência desse movimento norte-americano e do europeu, os organismos internacionais voltaram-se para o problema da discriminação da mulher, tendo o período compreendido entre 1976 e 1985 sido declarado pelas Nações Unidas como a Década da Mulher. Inaugurou-se, então, uma nova política de desenvolvimento, que propunha o atendimento às necessidades específicas do segmento feminino da população e que exigia a proteção dos direitos humanos da mulher pela comunidade internacional. A Organização das Nações Unidas oficializou, em 1975, o Dia Internacional da Mulher. Já nessa época, o Conselho das Nações Unidas sobre o Status da Mulher propôs a criação de órgãos nacionais de políticas públicas para as mulheres, sobretudo na área da segurança pública e de enfrentamento da violência de gênero. No entanto, a própria Comissão de Direitos Humanos

da ONU, apenas na Reunião de Viena de 1993, incluiu um capítulo de denúncia e propôs medidas para coibir a violência de gênero (BLAY, 2003, p.87).