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4 A LEI MARIA DA PENHA: advento e principais inovações

4.1 O caso emblemático de Maria da Penha Maia Fernandes

A Lei n.o 11.340/2006 é, conforme analisaremos, uma norma avançada e inovadora em muitos sentidos. O próprio fato de ter sido batizada com o nome de uma mulher

vítima da violência doméstica e familiar – Maria da Penha – é algo sem precedente no ordenamento jurídico pátrio (no qual, em regra, as leis são alcunhadas com os nomes daqueles que as propõem, como, por exemplo, a Lei Afonso Arinos – Lei n.o 1.390/51), traduzindo a inserção, nos campos do direito e da justiça penal, de uma maior preocupação com a vítima, e não apenas com o réu.

Em 29 de maio de 1983, enquanto dormia, a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi atingida por um tiro de espingarda, que a deixou paraplégica, começando aí o seu calvário. A relação tumultuada entre Maria da Penha e o seu marido, o economista e professor universitário Marco Antônio Heredia Viveiros, atingira o seu ápice: as investigações demonstrariam que Maria da Penha fora vítima da primeira tentativa de homicídio por parte de seu marido.

Viveiros tentaria mais uma vez contra a vida de sua esposa. Após retornar para casa, ainda se recuperando do primeiro ataque e sem desconfiar de que o próprio marido era o seu algoz, Maria da Penha receberia uma forte descarga elétrica durante o banho, sobrevivendo por pura sorte, quando então compreenderia o motivo pelo qual, há algum tempo, o marido utilizava o banheiro das filhas para banhar-se. Era, agora, manifesto que ele era o responsável pela segunda agressão.

Mas nada aconteceu de repente. Durante todo o tempo em que ficou casada, Maria da Penha sofreu repetidas agressões e intimidações, sem reagir, temendo uma represália ainda maior contra ela e as três filhas. Depois de ter sido quase assassinada, por duas vezes, tomou coragem e decidiu fazer uma denúncia pública (CORTÊS; MATOS, 2007, p. 6).

E apesar de Viveiros atribuir a primeira agressão a um suposto assalto à residência do casal durante o repouso noturno, restaria provado, no inquérito policial, que ele era o autor da primeira agressão também: conquanto negasse possuir qualquer arma de fogo, a espingarda utilizada no crime foi encontrada com Marco Antônio. Além disso, o testemunho dos empregados do casal apontava para o gênio violento do patrão.

E o crime, conforme ficaria demonstrado, foi premeditado. Dias antes do primeiro ataque, Marco Antonio havia convencido Maria da Penha a celebrar um seguro de vida, do qual ele seria o beneficiário, além de tê-la feito assinar um recibo de venda do veículo de que era proprietária. O Ministério Público, com base nas provas colhidas, ofereceu denúncia contra Marco Antônio perante a 1.a Vara Criminal de Fortaleza em 28 de setembro de 1984, aí tendo início a luta de Maria da Penha por justiça.

Viveiros foi pronunciado em 31 de outubro de 1986. Porém, foi levado a júri apenas em 4 de maio de 1991, quando foi condenado a 10 anos de prisão. A defesa apelou no

mesmo dia, alegando nulidade decorrente de falha na elaboração dos quesitos. Como o recurso foi acolhido pelo Tribunal de Justiça do Ceará, o réu foi submetido a novo julgamento, em 15 de março de 1996, sendo condenado a pena de 10 anos e 6 meses de prisão. Novos recursos foram, então, interpostos pela defesa contra a decisão. Resultado: Marco Antônio somente foi preso em setembro de 2002 – dezenove anos após a prática do crime.

Nesse ínterim, Maria da Penha não se manteve inerte. Ao contrário. Publicou o livro “Posso contar, sobrevivi” em 1994, contando a sua história. Em 1998, quinze anos após o crime, embora já condenado duas vezes pelo Tribunal do Júri do Estado do Ceará (em 1991 e 1996), o seu agressor permanecia em liberdade e não havia uma decisão definitiva no processo. Maria da Penha reuniu forças para brigar contra a omissão da justiça brasileira em executar medidas investigativas e punitivas contra o seu agressor.

Em 20 de agosto daquele ano, com o apoio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), entidade não-governamental que luta pela defesa e promoção dos direitos humanos junto a OEA, e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), um grupo de mulheres que atua na defesa dos direitos das mulheres da América Latina e do Caribe, com escritório sediado em Porto Alegre (RS), formalizou uma denúncia contra o Brasil (caso n.o 12.051/OEA), que foi recebida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington (EUA), analisa denúncias de violações aos direitos humanos, assim considerados aqueles relacionados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que lhes são apresentadas por qualquer indivíduo (a própria vítima ou terceira pessoa, com ou sem o conhecimento daquela primeira), grupo ou ONG legalmente reconhecida por pelo menos um Estado-membro da Organização dos Estados Americanos.

Essa Comissão solicitou, então, informações ao Brasil, que não se manifestou. Em 04 de agosto de 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos advertiu o governo brasileiro sobre a possibilidade de aplicação da “revelia”. O Brasil, mais uma vez, manteve-se silente. A Comissão, à vista disso, acolheu as denúncias, tornando público o Relatório 54, de 04 de abril de 2001, no qual recomendou providências por parte do governo brasileiro com vistas a dar efetividade às Convenções de combate à violência contra a mulher.

Quanto ao fundo da questão denunciada, a Comissão conclui neste relatório, elaborado segundo o disposto no artigo 51 da Convenção, que o Estado violou, em prejuízo da Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1(1) do referido instrumento e nos artigos II e XVII da Declaração, bem como no artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. Conclui também que essa violação segue um padrão discriminatório com respeito a tolerância da violência doméstica contra mulheres no Brasil por ineficácia da ação judicial. A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres (OEA, 2001).

O Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA impôs o pagamento de uma indenização de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, como reparação simbólica e material pelos prejuízos decorrentes do sentimento de impunidade experimentado por mais de 15 anos, e recomendou ao Estado brasileiro: (a) o completo, rápido e efetivo processamento penal do responsável pela agressão e tentativa de homicídio contra a mesma; (b) a realização de uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar as responsabilidades pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do agressor, bem como a tomada das medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes; (c) a adoção de medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; (d) a simplificação dos procedimentos judiciais penais a fim de reduzir o tempo processual (sem afetar os direitos e garantias do devido processo); (e) o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera; (f) multiplicação do número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotação das mesmas dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica; e (g) inclusão nos planos pedagógicos de unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares (OEA, 2001).

É possível, assim, inferir o quão simbólico foi o Caso Maria da Penha, pois: (a) pela primeira vez, a Convenção de Belém do Pará foi utilizada para a responsabilização de um Estado pela violência doméstica praticada por um particular; (b) foi reconhecida a existência

de um padrão sistemático de violência doméstica contra as mulheres no Brasil; (c) foi identificada a ineficácia do sistema judicial brasileiro ao nível nacional. De acordo com a Agende (2007, p. 7):

Devido ao uso efetivo do sistema internacional de proteção aos direitos humanos - regional e global - em ações de litígio e monitoramento, e por pressão política internacional e nacional, finalmente, em março de 2002 o processo criminal foi concluído no âmbito interno e, em outubro do mesmo ano, o agressor foi preso (embora já se encontre cumprindo pena em regime semi-aberto, de acordo com a lei nacional).

Conforme consignado alhures, Marco Antonio Heredia Viveiros foi preso somente em setembro de 2002 (portanto, após a divulgação do relatório), faltando pouco tempo para a prescrição do crime. Cumpriu, em regime fechado, menos de um terço da pena, sendo colocado em regime aberto em 2004, quando retornou para o Rio Grande do Norte, onde fora preso. Destarte, o Relatório 54/01 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos teve o condão de reacender, no Brasil, as discussões sobre a necessidade de uma legislação específica destinada a prevenir e a coibir a violência doméstica contra a mulher. Ao lado das recomendações do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação da Mulher (da Organização das Nações Unidas) e das pressões dos movimentos feministas, o Relatório 54/01 da Organização dos Estados Americanos conseguiu acelerar o processo de elaboração e de aprovação da Lei Maria da Penha.

4.2 O caso de Márcia Cristina Leopoldi

Outro caso que também contribuiu para abreviar o processo de elaboração da Lei Maria da Penha foi o de Márcia Cristina Leopoldi. Em 1984, na cidade de Santos (SP), Márcia Leopoldi foi torturada e assassinada pelo ex-namorado, José Antônio Brandão do Lago, que, inconformado com o rompimento do namoro, estrangulou a vítima no apartamento desta. Márcia, uma estudante de arquitetura de 24 anos, namorou Lago por apenas três meses, durante os quais eram constantes as crises violentas de ciúme do rapaz, razão pela qual romperam o relacionamento. Mais tarde, descobrir-se-ia que, contra Lago, antes do homicídio em comento, já haviam sido registrados seis boletins de ocorrência em decorrência de outras agressões contra mulheres.

No primeiro julgamento, realizado em 1992, Lago foi condenado pelo Tribunal do Júri de Santos a cinco anos de reclusão. No mesmo ano, a irmã da vítima, Deise Leopoldi, procurou a União de Mulheres de São Paulo e filiou-se à entidade, a qual passou a mobilizar- se em torno do caso em diversos espaços de luta, mormente junto a organizações de direitos humanos, nos âmbitos local, nacional e internacional. A União de Mulheres, em parceria com a Casa de Cultura da Mulher Negra, promoveu, dentre outras, a campanha “A impunidade é cúmplice da violência”, em 1992, que teve como foco o caso de Márcia Leopoldi.

No mesmo ano, o agressor foi submetido a um segundo julgamento, sendo condenado a 15 anos de reclusão. Foi preso por dois meses na penitenciária de Santos, mas obteve habeas corpus para aguardar em liberdade a decisão do recurso que interpusera perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. E, embora sua condenação tenha sido confirmada em 1993, Lago já estava foragido. Somente seria capturado doze anos mais tarde, em 2005, após Deise Leopoldi ter levado o caso ao programa de televisão “Mais Você” (da Rede Globo).

Em 1996, nove anos antes da prisão de Lago, a União de Mulheres de São Paulo, em parceria com o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Human Rights Watch, com fundamento na Convenção Americana dos Direitos Humanos e na Convenção de Belém do Pará, denunciou o caso Márcia Leopoldi perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A Comissão, sob o número 11.996, protocolou o pedido apenas em 1998. Naquele ano, o governo brasileiro respondeu ao pedido de informação da CIDH, alegando, entre outras coisas, que a fuga do réu não era conseqüência do habeas corpus e que as autoridades brasileiras continuavam procurando o seu paradeiro.

Em 2004, a Comissão solicitou, então, informações atualizadas aos autores da denúncia para decidir sobre a admissibilidade do caso. Os peticionários precisavam provar, concretamente, a ineficácia do sistema de Segurança Pública do Estado de São Paulo em capturar o fugitivo. Mesmo diante do receio de prosseguir no pedido perante a referida Comissão, decorrente da dúvida acerca da capacidade de vencer a disputa, os peticionários consideravam que não deveriam desistir. E assim prosseguiram, buscando a condenação do Estado brasileiro por sua negligência e ineficácia. Desejavam que fossem dele exigidas a formulação e a implementação de políticas públicas de combate, de enfrentamento e de prevenção à violência contra a mulher.

Quando Lago foi preso, em 2005, no Maranhão, os peticionários conseguiram reunir as provas que necessitavam. Foi comprovado que, durante o tempo em que permaneceu

foragido, Lago, utilizando-se de seu nome verdadeiro, vendeu uma propriedade, abriu empresas e manteve contato com a família, restando patente a inércia das autoridades brasileiras. Ademais, já havia o mesmo sido acusado de uma nova agressão contra uma ex- noiva maranhense. Os novos fatos enrijeceram a tese de que o Estado brasileiro é leniente em relação aos autores de violência doméstica, dando a esse fenômeno tratamento de excepcionalidade, abordando suas manifestações como fatos isolados, e desconsiderando a sua gravidade. O caso ainda tramita perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

4.3 As recomendações do Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher

Conforme exposto no capítulo anterior, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), em seu artigo 17, criou um Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, encarregado de fiscalizar o cumprimento daquela Convenção pelos países que a ratificaram, examinando os progressos alcançados.

É ele composto por 23 especialistas nas áreas abarcadas pela Convenção, os quais são eleitos por votação secreta na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, dentre uma lista de pessoas indicadas pelos Estados-Partes, levando-se em consideração uma repartição geográfica eqüitativa e a representação das diversas formas de civilização, bem como dos principais sistemas jurídicos. Frise-se que, “embora essas pessoas sejam indicadas pelos governos, elas não trabalham como representantes de seus países” (LIBARDONI, 2002, p. 55), exercendo suas funções a título pessoal, com autonomia.

De acordo com o artigo 18 da Convenção, os Estados-Partes têm o dever de submeter ao Secretário-Geral das Nações Unidas, para exame daquele Comitê, relatórios sobre as medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou outras que adotarem para tornarem efetivas as disposições da CEDAW e sobre os progressos alcançados a esse respeito: a) no prazo de um ano a partir da entrada em vigor da Convenção para o Estado interessado; e b) posteriormente, pelo menos a cada quatro anos (e toda vez que o Comitê solicitar). Esses relatórios poderão indicar os fatores e as dificuldades que influam no grau de cumprimento das obrigações estabelecidas pela CEDAW. Uma vez que, até 1999 (momento da adoção do

Protocolo Facultativo à CEDAW pela ONU), inexistiam sanções para o descumprimento dos referidos prazos, muitos países não os observavam. Nesse lastro, quando da submissão do primeiro relatório pelo governo brasileiro ao supracitado Comitê, Libardoni (2002, p.56) observa:

A forma que a Convenção previu para que o Comitê possa fiscalizar seu cumprimento pelos países é o exame de relatórios enviados pelos próprios países. O Brasil ratificou essa Convenção em 1984. Teria de ter enviado o primeiro relatório em 1985 e, se tivesse obedecido a Convenção nessa parte, já teria enviado mais quatro relatórios. Acontece que somente agora no final de 2002 o Brasil está enviando seu primeiro relatório. Esse documento foi feito em parceria com a sociedade civil, com o movimento de mulheres, que organizou-se para desenhar o quadro da situação das mulheres no país.

Como se pode perceber, esse sistema de fiscalização apresenta dificuldades, já que o Comitê fica esperando o país apresentar seu relatório. Se o país não apresenta, nada acontece, e o Comitê não tem como saber se o país está ou não cumprindo a Convenção. Por outro lado, é o governo quem faz o relatório, o que não garante que será sincero e contará todas as dificuldades, principalmente se não estiverem cumprindo o que foi determinado.

Em decorrência das referidas dificuldades, nada impede que organizações não- governamentais e/ou grupos da sociedade civil organizada apresentem relatórios-sombra (ou relatórios-alternativos) que ajudem o Comitê a avaliar os relatórios governamentais, inclusive, mediante a denúncia dos casos de omissão ou discriminação praticados pelo próprio governo. Os relatórios recebidos são analisados pelo Comitê CEDAW, que poderá encaminhar perguntas ao Estado-Parte e/ou chamar o representante do país para uma sessão de diálogo construtivo.

Com base no exame dos relatórios e nas demais informações recebidas dos Estados-Partes, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher, através do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, informará anualmente suas atividades à Assembléia Geral da ONU e apresentará sugestões e recomendações de caráter geral, as quais serão incluídas no relatório do Comitê, juntamente com as observações que os Estados-Partes tenham porventura formulado. O Secretário-Geral das Nações Unidas transmitirá os relatórios do Comitê à Comissão sobre a Condição da Mulher (artigo 21).

Em 2002, o Brasil apresentou o primeiro relatório ao referido Comitê, o qual abrangeu um período de dezessete anos, apontando as principais medidas adotadas pelo Governo brasileiro, com a finalidade de dar cumprimento à CEDAW, a partir de 1985. O mencionado relatório foi resultado do esforço coletivo de organizações feministas11

11 As organizações Advocaci, Agende, Cepia, Cfêmea, Cladem/Ipê, Geledes, Nev e Themis atuaram sob a coordenação das especialistas em direitos humanos Flávia Piovesan e Silvia Pimentel.

especialistas em direitos humanos e dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, estes representados através do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Embasado nesse relatório, o Comitê reconheceu, no documento intitulado “Consideration of reports submitted by States parties under article 18 of the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women: combined initial, second, third, fourth and fifth periodic reports of State parties - Brazil”, que, no Brasil, não obstante os importantes avanços constitucionais e legislativos, os preconceitos e as atitudes sexistas contra as mulheres persistiam.

O Comitê expressou preocupação com relação ao fosso que separa as garantias constitucionais de eqüidade entre homens e mulheres e a situação de fato das mulheres (em especial, das afrodescendentes e das indígenas) nas áreas social, econômica, cultural e política. Recomendou a adoção de mecanismos que garantissem a completa implementação das leis e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Opinou pela necessidade de reforma urgente dos Códigos Civil de 1916 e Penal de 1940, de modo a eliminar os dispositivos baseados numa perspectiva discriminatória das mulheres.

Ademais, observou a persistência de uma jurisprudência discriminatória calcada numa moral dual, que aplica diferentes medidas ao comportamento dos homens e ao das mulheres, constituindo, por isso, uma necessidade urgente a promoção de uma doutrina jurídica assentada nos parâmetros internacionais e constitucionais de proteção dos direitos humanos das mulheres, fundados numa perspectiva democrática e igualitária no que respeita às questões de gênero.

O Comitê lastimou a persistência da violência contra mulheres e meninas (inclusive, doméstica e sexual) e das punições brandas aplicadas aos agressores. Lamentou, ainda, o fato de o Brasil carecer de uma legislação específica sobre a violência de gênero, em particular sobre a violência doméstica, destacando que todos os projetos de lei, até então submetidos à Câmara dos Deputados, eram rechaçados sob o argumento de não se circunscreverem ao direito penal, abarcando diversas esferas jurídicas12.

12

Ironicamente, a Lei n.o 11.340 (Lei Maria da Penha), de 07 de agosto de 2006, é uma lei que extrapola a esfera penal, contemplando tanto medidas de natureza cível quanto criminal.

4.4 O processo de elaboração da proposta de lei de combate à violência doméstica contra