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3 OS DIREITOS DAS MULHERES SÃO DIREITOS HUMANOS

3.1 Antecedentes históricos dos direitos humanos: a exclusão das mulheres

A história dos direitos humanos pode ser analisada a partir de diversos pontos de vista. Sob o ponto de vista filosófico, por exemplo, ter-se-ia que recuar à Antigüidade Clássica, até o estoicismo grego. Adotando-se o religioso, principiaríamos com o Sermão da Montanha. Em se preferindo o político, retrocederíamos à Magna Charta Libertatum, que o rei inglês João Sem Terra foi obrigado a acatar em 1.215 (TRINDADE, 1998).

Pode, ainda, ser compreendida a partir de uma história social (perspectiva aqui adotada), a qual procura “compreender como, e por quais motivos reais ou velados, as diversas forças sociais interferiram, em cada momento, no sentido de impulsionar, retardar ou, de algum modo, modificar o desenvolvimento e a efetividade prática dos Direitos Humanos na sociedade” (TRINDADE, 1998, p.1).

Nesse sentido, a noção de direitos humanos é recente, nascida com a promulgação das declarações de direitos no final do século XVIII, tais como a Declaração Americana de Virgínia (de 1776) e a Declaração Francesa (de 1789). Surgiu com os movimentos revolucionários de questionamento do poder absoluto dos reis, que decidiam sozinhos e arbitrariamente sobre a vida e a morte dos súditos (TELES, 2006). Teles (2006, p.28) diz que:

Inicialmente, direitos humanos significam a afirmação da dignidade da pessoa humana diante do Estado. O poder público deve estar a serviço dos seres humanos. Não pode ofender os direitos inerentes das pessoas. Deve ser um instrumento para que os cidadãos possam viver em sociedade em condições de realizar direitos e respeitar os dos demais segmentos sociais.

Durante o século XVIII, ocorreram diversos movimentos revolucionários que impuseram a nova ordem social e possibilitaram a reunião de condições histórico-sociais concretas que induziram ao surgimento dos direitos humanos. Na França, com a Revolução Francesa, a burguesia, na condição de detentora do poderio econômico, rompeu com o absolutismo para se firmar como classe social em ascensão, arrebatando o poder político dos senhores feudais. Para tanto, anunciou a igualdade como um princípio geral a orientar a participação política e a representação legal (SCOTT, 2005). Para Trindade (1998, p. 6):

Decididamente, a sociedade feudal não combinava com as possibilidades que os burgueses viam diante de si. Os laços senhoriais e a ideologia que os legitimavam eram camisas de força para a expansão do mercado, crescimento do trabalho assalariado, florescimento da produção de mercadorias — enfim, para o maior enriquecimento desses empreendedores plebeus das cidades. Essa nova classe social tinha, pois, boas razões para ver com olhos de interesse as reivindicações dos camponeses, porque também sentia, a seu modo, as amarras do feudalismo — embora, por conveniência de seus negócios, adotasse sempre a cautelosa posição de manter-se à distância dessas agitações sociais (mais tarde, a mesma conveniência dos negócios a induziria a mudar de atitude).

Esse conjunto de contradições internas ao modo de produção feudal foi seu elemento dinâmico de transformação. Os camponeses continuaram se rebelando, o comércio seguiu se desenvolvendo, as cidades crescendo, conquistando autonomia e se diversificando socialmente, a burguesia se fortalecendo, a nobreza e o clero perdendo terreno (ao menos no plano econômico).

Todavia, uma vez conquistado o poder político, a burguesia francesa ignorou o lema de sua luta, “igualdade, liberdade e fraternidade”, desconsiderando a principal característica dos direitos humanos, que é a universalidade, restringindo-os aos homens brancos e proprietários. A cidadania foi negada aos pobres (pois a dependência econômica impediria o pensamento autônomo), aos escravos (pois eram propriedade de outros) e às mulheres (porque os deveres domésticos e os cuidados com as crianças obstaculizariam a participação política) (SCOTT, 2005). Trindade (1998, p. 20) enfatiza:

Há uma ausência memorável: a igualdade não figurou entre os direitos "naturais e imprescindíveis" proclamados no artigo 2°, muito menos foi elevada ao patamar de "sagrada e inviolável" como fizeram com a propriedade. Além disso, quando mencionada depois, o foi com um certo sentido: os homens são iguais — mas "em direitos" (art. 1°), perante a lei (art. 6°) e perante o fisco (art. 13). Assim, a igualdade de que cuida a Declaração é a igualdade civil (fim da distinção jurídica baseada no status de nascimento). Nenhum propósito de estendê-la ao terreno social, ou de condenar a desigualdade econômica real que aumentava a olhos vistos no país. O indivíduo era uma abstração. O homem era considerado sem levar em conta a sua inserção em grupos, na família ou na vida econômica. Surgia, assim, o cidadão como um ente desvinculado da realidade da vida. Estabelecia-se igualdade abstrata entre os homens, visto que deles se despojavam as circunstâncias que marcam suas diferenças no plano social e vital. Por isso, o Estado teria de abster-se. Apenas deveria vigiar, ser simples gendarme.

No documento revolucionário “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, a burguesia francesa formulou que a igualdade pretendida era a de direitos, e não a de recursos. Aquele era, portanto, um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios de nascimento, e não uma declaração em favor de uma sociedade democrática e igualitária.

Na mesma direção, o projeto constitucional burguês de 1795, redigido por Boissy d´Anglas, afirmava que a igualdade absoluta era uma quimera, sendo necessário para a sua existência que todos os homens fossem iguais no espírito, na virtude, na força física, na educação e na fortuna (TELES, 2006).

“Assim, tão importantes quanto as idéias que a Declaração contém, são as idéias que ela não contém” (TRINDADE, 1998, p. 21). A igualdade entre homens e mulheres, por exemplo, foi ignorada pela apontada Declaração (TELES, 2006), tendo início, já em 1789, a luta pelo reconhecimento dos direitos das mulheres como direitos humanos. Nesse sentido:

As mulheres não tiveram seus direitos reconhecidos. Olympe de Gouges, revolucionária francesa articulada com milhares de mulheres, decidiu por fazer a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Por isso, foi condenada à morte na guilhotina. A sentença que proferiu sua condenação dizia que ela “(...) se imiscuiu nos assuntos da República, esquecendo-se das virtudes de seu sexo (...)”. Nascida no interior da França, em 1748, aos dezesseis anos já se encontrava viúva e mãe de uma criança. Foi para Paris e participou ativamente da Revolução Francesa. Mobilizou mulheres, montou “clubes femininos”, que propugnaram a defesa da igualdade de direitos das mulheres com os homens, o acesso à educação e o direito ao divórcio. Apesar de sua participação intensa nas ações revolucionárias, foi ridicularizada, contestada e reprimida. Determinada e inconformada, manteve seus protestos contra o modelo de cidadania criado pelos homens. Negavam a cidadania das mulheres e as excluíam da humanidade racional, bem como as crianças e os loucos. Perseguida por sua rebeldia, foi julgada pelo tribunal revolucionário e guilhotinada em 7 de novembro de 1793 (TELES, 2006, p.19-20).

“Assim é que a construção dos direitos humanos carrega em seu âmago os germes de um processo de profundas e contraditórias mudanças sociais e políticas” (TELES, 2006, p. 20). No período da Restauração, sob a batuta da Santa Aliança, monarquias reacionárias retornaram ao poder, promovendo a caça sistemática aos militantes revolucionários, colocando a imprensa sob censura e se esforçando por expurgar do ambiente cultural europeu as perigosas idéias de liberdade e igualdade (TRINDADE, 1998).

“Nesse ambiente de conservadorismo, os Direitos Humanos, sofreram retrocesso generalizado, despontando contra eles uma agressiva crítica promovida pelos governos e pela Igreja Católica” (TRINDADE, 1998, p. 32). A idéia dos direitos humanos é retomada apenas por ocasião do holocausto ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial.