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4 A LEI MARIA DA PENHA: advento e principais inovações

4.5 Principais inovações trazidas pela Lei Maria da Penha

4.5.2 Definição de violência doméstica e familiar contra a mulher

Na definição legal do que se deva entender como violência doméstica e familiar contra a mulher reside também uma das principais inovações da Lei Maria da Penha, uma vez que a falta de consciência social conduz este tipo de delito à invisibilidade. Essa definição tem claro propósito pedagógico na medida em que, incorporando a perspectiva de gênero, introduz na ordem jurídica um instrumento para a compreensão desse fenômeno e, conseqüentemente, para a garantia e concretização de princípios e direitos.

Nesse sentido, a Lei n.o 11.340/06 define a violência doméstica e familiar contra a mulher como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Essa violência, de

acordo com a lei, pode ocorrer em três âmbitos: doméstico, familiar e/ou afetivo. O âmbito doméstico é tomado como “o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas” (art. 5.o, inc. I). O âmbito da família é compreendido “como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (art. 5.o, inc. II). A violência pode ocorrer, ainda, “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida independentemente de coabitação” (art. 5.o, inc. III). Acerca da importância dessas definições, Santos (2008, p.27) redige:

Conforme estabelecido no Art. 5, “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. A violência pode ocorrer no “âmbito da unidade doméstica” (Art. 5, Inciso I), no “âmbito da família” (Art. 5, Inciso II) ou “em qualquer relação íntima de afeto” (Art. 5, Inciso III). Esta definição é importante por considerar “violência doméstica e familiar” situações de violência que ocorrem não apenas no espaço doméstico, desde que a violência tenha por base as relações de gênero. Além disso, as formas de violência doméstica e familiar previstas na Lei 11.340/2006 não se restringem à violência física, sexual e psicológica: incluem também o dano moral e o dano patrimonial (Art. 5 e Art. 7).

Assim, constitui violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer atividade positiva (um fazer) ou conduta negativa (um abster-se de atividade juridicamente exigida) que, baseada no gênero, entendido como a construção sociocultural do feminino e do masculino, com base na qual se estabelecem papéis distintos e hierarquizados para as diferentes categorias de sexo, cause à mulher, em seu ambiente doméstico, familiar ou de intimidade, uma das seguintes conseqüências: morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher. A lei elege uma vítima certa (sujeito passivo) – a mulher –, à semelhança das Convenções internacionais que a inspiraram, e estabelece os âmbitos – elemento espacial do objeto tutelado – em que pode ocorrer a violência (doméstico, familiar ou de intimidade). Izumino (2007, p.7, grifo nosso) enxerga aí a introdução pelo legislador da perspectiva de gênero:

As mudanças introduzidas pela Lei Maria da Penha revelam várias marcas dos embates políticos travados pelos movimentos de mulheres e feministas a partir dos anos 1970, na luta pela cidadania com respeito pelas diferenças de gênero. Além do reconhecimento de que o combate da violência se fará por meio de políticas intersetoriais, a lei introduz outras novidades no debate jurídico nacional, entre as quais se destacam a formalização do compromisso do governo brasileiro em prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, fazendo cumprir a Constituição Nacional e os acordos internacionais assinados e ratificados pelo Estado brasileiro – Convenção de Belém do Pará e a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – CEDAW (artigos 1ª a 4ª da Lei n. 11.340/2006). Têm relevo, também, a definição da violência

doméstica e familiar contra a mulher como aquela que se baseia no gênero (artigo 5º), classificando-a ainda como violação dos direitos das mulheres (artigo 6º). Como, por ambiente doméstico, a lei entende ser aquele espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, estão protegidas pelo manto legal mesmo aquelas mulheres que, encontradas no ambiente doméstico ou caseiro, não possuam vínculo familiar com o agressor. Por sua vez, o âmbito familiar compreende:

A violência no âmbito da família engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, parentesco (em linha reta ou por afinidade), ou por vontade expressa (adoção) (CUNHA; PINTO, 2007, p.30).

Segundo Luiz Antônio de Souza e Vitor Kümpel (2007), o legislador introduziu, dessa maneira, a noção de família de fato, compreendendo pessoas que não têm vínculo jurídico familiar, mas que se consideram aparentadas, como amigos muito próximos e até pessoas que se agregam para fins outros, como o caso de repúblicas, casas de abrigo e albergues. Para esses estudiosos, o legislador teria avançado ao estabelecer, no parágrafo único, do artigo 5.o, que essas relações pessoais, para fins de proteção legal, independem da orientação sexual. Nessa mesma direção, Maria Berenice Dias (2007) destaca a coragem do legislador ao definir família, trazendo um conceito que corresponde ao formato atual dos vínculos afetivos, falando em indivíduos, e não em homem e mulher:

Também não se limita a reconhecer como família a união constituída pelo casamento. Aliás, não poderia fazê-lo porque a Constituição Federal esgarçou o conceito de família e de forma exemplificativa refere-se ao casamento, à união estável e à família monoparental, sem, no entanto, deixar ao desabrigo outros modelos familiares ao usar a expressão “entende-se também como entidade familiar” (CF, art. 226, §4º ). Assim, as famílias anaparentais (formadas entre irmãos), as homoafetivas e as famílias paralelas (quando o homem mantém duas famílias), igualmente estão albergadas no conceito constitucional de entidade familiar como merecedoras da especial tutela do Estado (DIAS, 2007, p.43).

Por fim, de acordo com a Lei, a violência doméstica e familiar contra a mulher pode ocorrer, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Portanto, aqui, são abrangidos os relacionamentos fundados no amor, na confiança, na camaradagem, etc. Portanto, qualquer relacionamento afetivo e íntimo, como o casamento, a convivência heterossexual ou homoafetiva, o namoro, entre outros. Assim, pela dicção legal, infere-se que a violência contra a mulher pode ocorrer fora do âmbito doméstico ou familiar, desde que decorra do

vínculo de afetividade. Dessa forma, protege-se a mulher que nunca tenha convivido, mas que mantenha ou tenha mantido uma relação íntima com o agressor. Para Dias (2007, p.45):

Diante desta nova realidade não há como restringir o alcance da previsão legal. Vínculos afetivos que refogem ao conceito de família e de entidade familiar nem por isso deixam de ser marcados pela violência. Assim, namorados e noivos, mesmo que não vivam sob o mesmo teto, mas resultando a situação de violência do relacionamento, faz com que a mulher mereça o abrigo da Lei Maria da Penha. Para a configuração de violência doméstica é necessário um nexo entre a agressão e a situação que a gerou, ou seja, a relação íntima de afeto deve ser a causa da violência. As principais formas em que pode se apresentar a violência doméstica e familiar contra a mulher, segundo a lei, são as seguintes: I – física; II – psicológica; III – sexual; IV – patrimonial; e V – moral. O rol da lei, entretanto, não é exaustivo. Da leitura do seu artigo 7.o, infere-se que podem existir outras modalidades desse gênero de violência (tanto que o legislador utiliza a expressão “entre outras”), o que possibilita ao operador do direito uma interpretação de maneira aberta, conforme os fins sociais a que se destina a lei.

A Lei Maria da Penha não criou tipos penais próprios, apenas exemplificando condutas tidas como violência doméstica e familiar contra a mulher. A tutela penal incide se a ação (ou omissão), considerada como violência doméstica e familiar contra a mulher, estiver tipificada pelo Código Penal (ou por lei especial). Mas, para efetivar o princípio da proteção integral (à mulher), ainda que não tipificada sob a ótica penal, nada impede que se faça o uso da tutela civil permitida pela lei, tais como a ação de natureza civil indenizatória ou de obrigação de fazer ou não fazer, aplicando-se os artigos 186 e 187 do Código Civil e o artigo 461 do Código de Processo Civil. Nessa esteira, são as palavras de Souza (2006, p.53):

Observa-se que a Lei 11.340/06 não tem tipos penais próprios, apenas se refere aos tipos comuns já existentes no ordenamento, acrescendo-lhes circunstâncias qualificadoras ou agravantes e alterando penas, além de acrescer os requisitos insertos no seu art. 1º, que se refere à existência, entre agente e vítima, de relação doméstica, familiar ou afetiva (ou homoafetiva), além do que, estabelece no artigo sob comento, de forma exemplificativa, as classes de condutas que se enquadram como violência doméstica e familiar contra a mulher. Portanto, a conformação típica e as penas respectivas devem ser encontradas no Código Penal ou em outra lei da mesma natureza, podendo se afirmar que há semelhança com o sistema adotado nos chamados crimes remetidos (SOUZA, 2006, p. 53).

Considera a lei como violência física qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher. Em vista disso, a violência física é aquela da qual resulta morte, lesão ou sofrimento físico para a mulher; é a ofensa à integridade anatômica e fisiológica da mulher. É a forma mais facilmente percebida, pois a vítima é alvo de surras, socos, tapas, chutes, empurrões, etc. Mas, ainda que não deixe marcas aparentes, constitui violência física o uso da força que ofenda a integridade corporal da mulher (vis corporalis).

São exemplos dessa espécie de violência a contravenção de vias de fato, os crimes de lesão corporal, homicídio, aborto, os crimes contra a liberdade sexual mediante violência física, etc. Incluem-se nesse rol as formas tentadas desses crimes.

Violência psicológica é entendida como: Art. 7.o – omissis

II - qualquer conduta que cause à mulher dano emocional e diminuição da auto- estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006, p.1).

Quis o legislador proteger a auto-estima e a saúde psicológica da mulher. É, assim, aquela que causa sofrimento psicológico à vítima, verdadeira agressão emocional, em que o agente deseja ver a vítima se sentir inferiorizada, diminuída (vis compulsiva). Configuram violência psicológica os crimes de constrangimento ilegal (art. 146), ameaça (art. 147), seqüestro e cárcere privado (art. 148), violação de domicílio (art. 150), violação de correspondência (art. 151), crimes contra a liberdade sexual mediante grave ameaça (arts. 213) e por força de constrangimento (art. 216-A). Sobre a violência psicológica, Dias (2007, p.48) informa:

Para a configuração do dano psicológico não é necessária a elaboração de laudo técnico ou realização de perícia. Reconhecida pelo juiz sua ocorrência, cabível a concessão de medida protetiva de urgência. Praticado algum delito mediante violência psicológica, a majoração da pena se impõe (CP, art. 61, II, f).

Violência sexual é qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. A importância do reconhecimento da violência sexual pela Lei 11.340/2006 está na ruptura com a tendência de se “identificar o exercício da sexualidade como um dos deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem, como se estivesse ele a exercer um direito” (DIAS, 2007, p.49). Essa violência brange os crimes contra a dignidade sexual, sendo que, nos delitos sexuais praticados com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, a ação penal é pública incondicionada.

A violência patrimonial consiste em qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos da mulher, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Abrange, portanto, os crimes contra o patrimônio de maneira geral e os crimes contra a assistência familiar. Acerca dessa forma de violência, Saffioti e Almeida (1995, p. 91) comentam que a interrupção propositadamente provocada do numerário para suprir as necessidades alimentares da família é uma afirmação do poder masculino.

Violência moral é qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Ou seja, abrange os crimes contra a honra previstos na legislação comum e especial, inclusive a denunciação caluniosa (art. 339 do CP). Calúnia é a imputação à vítima da prática de determinado fato criminoso sabidamente falso. Difamação é a imputação à vítima de fato ofensivo à sua reputação, da prática de determinado fato desonroso. Injúria é a ofensa à dignidade ou ao decoro, é a atribuição à vítima de qualidades negativas.