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2 DESIGUALDADE DE GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

2.3 Políticas públicas e violência doméstica e familiar contra a mulher

2.3.1 Os movimentos sociais enquanto sujeitos do processo das políticas públicas

2.3.1.3 O feminismo no Maranhão, violência de gênero e políticas públicas

Nos anos de 1980, período em que se processava uma série de mudanças com a redemocratização, o clima era propício à organização de grupos de defesa dos valores democráticos e de luta pelos direitos fundamentais. Nesse contexto, no Maranhão, são organizados diversos grupos feministas, tendo sido pioneiro o Grupo de Mulheres da Ilha.

A formação do Grupo de Mulheres da Ilha “está intimamente relacionada à expansão dos estudos sobre as mulheres nos meios acadêmicos brasileiros” (ARAÚJO, 2007, p. 62). Organizou-se em julho de 1980 (FERREIRA, 2007a). Começou como um grupo de

reflexão (SOUSA, 2007), sendo que suas integrantes eram estudantes e/ou professoras universitárias que tiveram contato com as idéias feministas após um curso oferecido pelo Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Maranhão, intitulado “Mulher na Sociedade Brasileira”, o qual foi ministrado pela professora Mariza Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (ARAÚJO, 2007; FERREIRA, 2007a).

O referido grupo empenhou-se em denunciar as estruturas sociais desiguais, chamando atenção para a desigualdade de gênero, arraigada na sociedade maranhense. Sobre o caráter inovador do Grupo de Mulheres da Ilha, Ferreira (2007a, p. 30) destaca:

A perspectiva feminista estabeleceu princípios, valores e linha política diferentes dos encontrados em outros grupos que também tinham a mulher como sujeito. As polêmicas levantadas pelo Grupo de Mulheres da Ilha geraram amplos debates, na medida que eram veiculados pelas imprensa e serviram de norte para a criação de outros grupos, com pensamentos e diretrizes, às vezes, divergentes, foram, porém, fundamentais para que a mulher passasse a ser vista como sujeito histórico.

Após a organização do Grupo de Mulheres da Ilha, surgem outros grupos, tais como o Espaço Mulher, o Viva Maria, o Comitê Oito de Março, o Grupo de Mulheres Negras “Mãe Andrezza”, a União de Mulheres, dentre outros. Esses grupos, num primeiro momento, reuniam-se informalmente nas residências das integrantes, divulgando suas atividades através de notas nos jornais maranhenses (tais como “O Imparcial”, “O Estado do Maranhão”, “Jornal Hoje”, etc.) (ARAÚJO, 2007). Porém, com a repercussão de suas ações, não tardou para que os mesmos organizassem eventos formais.

Destaque-se que, à época, a imprensa escrita maranhense franqueava a difusão dos ideais feministas, ora fazendo referência à atuação do feminismo em outros estados, ora publicando entrevistas de estudiosas nacionalmente reconhecidas, ora divulgando as ações e as críticas dos movimentos feministas maranhenses. Nesse sentido, Araújo (2007, p.63) diz:

Quase sempre esses artigos e notícias considerados tabus tinham maior visibilidade nos jornais, com direito a imagens, um título com letras em negrito e um espaço maior. Contudo, no que se refere à abordagem pelo movimento de temáticas menos polêmicas, os matutinos concediam espaços de pouca visualização, quase sempre anunciados nas últimas páginas, em letras miúdas e sem ilustração, o que não deixa de indicar que as idéias feministas existiam e circulavam na sociedade maranhense. Dentre os primeiros eventos formais organizados pelos movimentos feministas maranhenses, sobressaiu-se o debate, organizado pelo Grupo de Mulheres da Ilha, denominado “A mulher e a violência”, o qual abordou a questão da violência contra a mulher e foi realizado, em 14 de novembro de 1980, no Colégio Marista. “Participaram cerca de 300 pessoas, 90% (noventa por cento) mulheres, que debateram a violência em três diferentes aspectos: violência geral, violência no trabalho e violência sexual” (FERREIRA, 2007a, p.

93), o que denotou que as mulheres ludovicenses não eram indiferentes à temática. Ademais, o citado debate foi precedido pela realização de um estudo junto às delegacias de polícia de São Luís, cujos dados subsidiaram o debate público sobre a violência contra a mulher e a elaboração de brochura distribuída no evento:

O panfleto distribuído pelo grupo neste primeiro evento denunciava que num período de três meses (agosto a outubro de 1980) 3 mulheres foram assassinadas, 30 sofreram tentativas de homicídio, 56 foram espancadas, 7 estupradas e 34 foram seduzidas (FERREIRA, 2007b, p. 29).

A partir de então, esses eventos tornaram-se mais freqüentes, através da organização de passeatas, manifestações, seminários, etc. As comemorações do dia oito de março, o Dia Internacional da Mulher, converteram-se, ainda, em momentos-chave para as organizações de mulheres, que se reuniam (e continuam a fazê-lo) para debater a condição feminina e reivindicar direitos. Nessa direção, Ferreira registra (2007a, p. 94):

Nos anos seguintes, o Grupo organizou, juntamente com as demais organizações femininas, além de debates em auditórios, passeatas pelas ruas de São Luís. As passeatas tinham sempre clima festivo e, em geral, geravam polêmicas, fosse pelos panfletos distribuídos, fosse pelas palavras de ordem difundidas ao longo do percurso. Nessa data, era comum a imprensa abrir espaços para o Grupo expor suas idéias.

Embora privilegiassem as questões relativas à condição feminina, os movimentos feministas maranhenses não foram indiferentes às condições socioeconômicas da população em geral, abordando, ao lado dos problemas específicos às mulheres (referentes ao corpo, à sexualidade, à saúde feminina, etc.), outros direitos elementares à sobrevivência humana, tais como o direito à moradia, à saúde, etc. Exemplo dessa atuação foi a promovida pelo Grupo de Mulheres da Ilha, a convite do padre Marcos Passerine, nos anos de 1981 e 1982, junto aos moradores e às moradoras do bairro do São Bernardo, os quais, à época, estavam mobilizados na luta pela moradia:

A primeira reunião do Grupo com as mulheres de São Bernardo realizou-se num domingo, dia 4 de julho de 1981, na pequena sede do Clube de Mães [...] passou-se a discutir sobre quais questões as participantes desejam conversar, trocar idéias, debater. Os temas sugeridos foram: participação política, dupla jornada de trabalho, saúde, sexualidade, maternidade, dentre outros (FERREIRA, 2007a, p.96).

Cada grupo enfocava um aspecto da realidade feminina. O Grupo de Mulheres Negras “Mãe Andrezza”, por exemplo, centrava a atenção na discussão sobre a questão da mulher negra. O Comitê Oito de Março, coordenado por Maria Aragão, era um grupo identificado com as idéias marxistas e a favor de uma luta mais ampla, dando ênfase à luta de classes e relegando ao segundo plano a luta pela emancipação feminina. O Espaço Mulher,

por sua vez, assemelhava-se mais a um grupo de estudos, um espaço teórico de discussão, embora participasse das ações promovidas pelos demais (ARAÚJO, 2007).

Dentre as várias conquistas dos movimentos feministas maranhenses, podemos citar: a criação e instalação de delegacias especializadas de atendimento às mulheres em dezenove municípios; a criação e instalação de casas-abrigo em São Luís e em Imperatriz; a criação do Conselho Municipal da Condição Feminina (Lei n.o 3.355, de 17.08.1994); a criação do Fórum Permanente de Defesa da Mulher (Lei Estadual n.o 7.502, de 05.01.200); a criação do Conselho Estadual da Mulher (Lei n.o 7.604, de 11.06.2001); a Lei Estadual n.o 7.716 (de 26.12.2001), que dá prioridade de tramitação aos processos judiciais em que figure como parte mulher vítima de violência doméstica; as Leis Municipal n.o 4.393 (de 09.09.2004) e Estadual n.o 8.279 (de 26.07.2005), que dispõem sobre a notificação compulsória de violência contra a mulher atendida em serviços de emergência públicos e privados; a criação da Secretaria de Estado da Mulher (Lei n.o 8.559, de 28.12.2006); a criação da Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (Lei Complementar n.o 104, de 26.12.2006); a criação do Hospital da Mulher (Lei n.o 4.787, de 28.05.2007) e do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência “Casa da Mulher” (Convênio n.o 128/07).

Além disso, em 2005, São Luís aderiu ao I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, o qual tinha por objetivos, dentre outros, a implantação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra a mulher e a garantia do atendimento integral, humanizado e de qualidade à mulher em situação de violência (BRASIL, 2004). Posteriormente, em 2007, o Maranhão renovou esse compromisso mediante a assinatura do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e convocou a II Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres, a qual foi precedida de conferências regionais e municipais e que culminou na elaboração do Plano Estadual de Políticas para as Mulheres (ROCHA, 2007).

Percebe-se, assim, que o movimento feminista maranhense permanece atuante, buscando um permanente diálogo com o Estado, de maneira a assegurar canais de interlocução eficazes que garantam a concretização dos direitos humanos das mulheres, bem como a atenção da sociedade para o problema da violência contra a mulher, instigando-a a discutir e repensar as relações de gênero. No próximo capítulo, abordar-se-á a luta do movimento de mulheres e feminista no âmbito internacional em prol do reconhecimento dos direitos das mulheres enquanto direitos humanos e da violência contra a mulher enquanto uma violação a esses direitos. Examinar-se-ão, ainda, as Convenções Internacionais que inspiram a Lei Maria da Penha.