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3 OS DIREITOS DAS MULHERES SÃO DIREITOS HUMANOS

3.4 O sistema normativo regional de proteção aos Direitos Humanos e as

Violência Contra a Mulher

O sistema regional de proteção aos direitos humanos, de acordo com o já apontado, é integrado pelos sistemas americano, europeu, africano e asiático. Cada um desses subsistemas apresenta caráter internacional, baseados que são em tratados bi ou multilaterais. Cumprem como funções principais: definir parâmetros mínimos de direitos humanos, mediante a adoção de tratados e convenções, a serem observados pelos Estados-Partes; difundir tais parâmetros; e realizar o monitoramento da observância dos mesmos. Apresenta- se adiante o principal documento regional relacionado à temática da violência contra a mulher em face dos direitos humanos.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 6 de junho de 1994, é o principal documento regional relacionado à temática da violência contra a mulher em face dos direitos humanos. É também chamada de Convenção de Belém do Pará, em razão de o 24.o período de sessões ordinárias da OEA ter sido, naquela data, realizado no Brasil, na cidade de Belém (PA). Foi ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1995 e precedida por outros importantes documentos regionais:

No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), antes da edição da Convenção de Belém do Pará, alguns documentos importantes a respeito da violência contra a mulher a precederam. A consulta Interamericana sobre a Mulher e a Violência de 1990 e a Declaração sobre a Erradicação da Violência contra a Mulher, aprovada nesse mesmo ano pela Vigésima Quinta Assembléia de Delegadas e a Resolução AG/RES n. 1.128 (XXI-O/91), "Proteção da Mulher contra a Violência" foram documentos precursores na área da violência da mulher, embora sem a mesma força do tratado internacional que foi o ponto culminante daquele processo (FARIA; MELO, 1998, p. 12).

A Convenção de Belém do Pará representa o esforço do movimento feminista para dar visibilidade à existência da violência contra a mulher e demandar seu repúdio pelos Estados que integram a Organização de Estados Americanos. Assemelha-se à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, apresentando, contudo, uma característica única e diferente, a saber: define a violência contra a mulher e as formas que ela pode assumir, bem como a responsabilidade dos Estados americanos em sua erradicação. Dessa forma:

La Convención, a diferencia de las legislaciones nacionales de América Latina y el Caribe que se referien a esta temática, ha rechazado la utilización de un lenguaje neutral en términos de género y determinó claramente quienes son las víctimas que requieren protección, así como las causas sociales de la violencia contra las mujeres, partiendo de la realidad social de desigualdad de poder entre varones y mujeres (RODRÍGUEZ, 1996, p.108)10.

Reconhecendo que a violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais, a qual limita, total ou parcialmente, a observância, o gozo e exercício de tais direitos e liberdades, que ofende a dignidade humana e que manifesta as relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, a Convenção de Belém do Pará define violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (artigo 1.o). Essa violência abrange, segundo a Convenção, as formas física, sexual e psicológica:

(a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus tratos e abuso sexual; (b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e (c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (BRASIL, 1996, p. 14471). A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher reconhece o direito da mulher a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada, direito esse que compreende, entre outros:

(a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação; e (b) o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de

10

A Convenção, diferentemente das legislações nacionais da América Latina e do Caribe que se referem a esta temática, repeliu a utilização de uma linguagem neutra em termos de gênero e determinou claramente quem são as vítimas que demandam proteção, assim como as causas sociais da violência contra as mulheres, partindo da realidade social de desigualdade de poder entre homens e mulheres (tradução nossa).

comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação (BRASIL, 1996, p. 14471).

Portanto, a Convenção de Belém do Pará reconhece o dever dos Estados-Partes de proteção aos direitos das mulheres, independentemente do contexto no qual os mesmos tenham sido violados, transpondo o véu que encobria o espaço doméstico. Admite que a violação dos direitos humanos da mulher, ainda que ocorra no espaço doméstico ou no âmbito familiar, é um problema que diz respeito a toda a sociedade e ao Poder Público. E, embora a definição por ela trazida não abranja todas as formas possíveis de violência contra a mulher, avança ao incluir, ao lado da violência física, a sexual e a psicológica. Além disso, amplia a concepção tradicional de responsabilidade do Estado ao fazê-lo assumir seus deveres enquanto garante dos direitos humanos das mulheres e responsabilizá-lo, inclusive, por possíveis omissões. Em outras palavras, as disposições da Convenção são aplicáveis não apenas a particulares que violem os direitos humanos das mulheres, mas também à violência perpetrada ou tolerada pelo Estado e/ou seus agentes (RODRÍGUEZ, 1996). De acordo com a Convenção de Belém do Pará:

Art. 4.o - Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos, dentre os quais: (a) direito a que se respeite sua vida; (b) direito a que se respeite sua integridade física, mental e moral; (c) direito à liberdade e à segurança pessoais; (d) direito a não ser submetida a tortura; (e) direito a que se respeite a dignidade da sua pessoa e a que se proteja sua família; (f) direito a igual proteção perante a lei e da lei; (g) direito a recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que violem seus direitos; (h) direito de livre associação; (i) direito à liberdade de professar a própria religião e as próprias crenças, de acordo com a lei; e (j) direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões (BRASIL, 1996, p. 14471).

A Convenção estatui, para os Estados-Partes, o dever de adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e empenhar-se em:

Art. 7.o – [...] (a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicas, ajam de conformidade com essa obrigação; (b) agir com devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; (c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis; (d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade; (e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher; (f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher

sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos; (g) estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso à restituição, reparação do dão e outros meios de compensação justos e eficazes; (h) adotar medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência da Convenção (artigo 7.o).

Em observância aos preceitos da Convenção, os Estados-Partes devem, portanto, o mais cedo possível, elaborar leis, enunciar políticas e programas destinados à prevenção e repressão da violência contra a mulher e à proteção das mulheres em situação de violência, criando maneiras de reparar os danos sofridos (LIBARDONI, 2004). Assim:

A Convenção confere importantes responsabilidades aos Estados na missão de proteger a mulher da violência no âmbito privado e público. O enfoque da Convenção é a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher. Os Estados têm que tomar medidas para prevenir a violência, investigar diligentemente qualquer violação perseguindo a responsabilização dos violadores e assegurar a existência de recursos adequados e efetivos para a devida compensação para as vítimas das violações (FARIA; MELO, 1998, p. 14, grifo das autoras).

Os Estados-Partes, por meio da Convenção, comprometem-se, ainda, a adotar medidas específicas, inclusive programas destinados a:

Art. 8.o – [...] (a) promover o conhecimento e a observância do direito da mulher a uma vida livre de violência e o direito da mulher a que se respeitem e protejam seus direitos humanos; (b) modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher; (c) promover a educação e o treinamento de todo o pessoal judiciário e policial e demais funcionários responsáveis pela aplicação da lei, bem como do pessoal encarregado da implementação de políticas de prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher; (d) prestar serviços especializados apropriados à mulher sujeitada a violência, por intermédio de entidades dos setores público e privado, inclusive abrigos, serviços de orientação familiar, quando for o caso, e atendimento e custódia dos menores afetados; (e) promover e apoiar programas de educação governamentais e privados, destinados a conscientizar o público para os problemas da violência contra a mulher, recursos jurídicos e reparação relacionados com essa violência; (f) proporcionar à mulher sujeitada a violência acesso a programas eficazes de recuperação e treinamento que lhe permitam participar plenamente da vida pública, privada e social; (g) incentivar os meios de comunicação a que formulem diretrizes adequadas de divulgação, que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e enalteçam o respeito pela dignidade da mulher; (h) assegurar a pesquisa e coleta de estatísticas e outras informações relevantes concernentes às causas, conseqüências e freqüência da violência contra a mulher, a fim de avaliar a eficiência das medidas tomadas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como formular e implementar as mudanças necessárias; e (i) promover a cooperação internacional para o intercâmbio de idéias e experiências, bem como a execução de programas destinados à proteção da mulher sujeitada a violência (BRASIL, 1996, p.14471). Diversamente do sistema global de proteção aos direitos humanos, que não dispõe de um órgão jurisdicional competente para julgar casos individuais de violação aos direitos

internacionalmente assegurados, o sistema interamericano possui a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões têm força jurídica vinculante e obrigatória, e com competência, dentre outras, para receber e analisar, através de uma de suas Comissões, petições individuais que contenham denúncias de violação aos direitos humanos contra os Estados-partes, nos termos estabelecidos pelos instrumentos internacionais que integram o sistema interamericano de direitos humanos. Nesse sentido, os Estados-Partes apresentarão, de acordo com o artigo 10, relatórios nacionais à Comissão Interamericana de Mulheres com as informações sobre as medidas adotadas para prevenir e erradicar a violência contra a mulher, para prestar assistência à mulher afetada pela violência, bem como sobre as dificuldades que observarem na aplicação das mesmas e os fatores que contribuem para a violência contra a mulher.

Além disso, qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer entidade não- governamental juridicamente reconhecida em um ou mais Estados-Membros da Organização, poderá apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições referentes a denúncias ou queixas de violação do artigo 7.o da Convenção por um Estado-Parte, devendo a Comissão considerar tais petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e Regulamentação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de petições.

Desse modo, para efetuar denúncias individuais de violações à Convenção de Belém do Pará contra um Estado-parte, deve-se submeter uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, após avaliá-la, emitirá um informe final no qual determinará a existência ou não de responsabilidade do Estado acusado, sendo certo que as decisões dessa Comissão, ao contrário daquelas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não possuem força jurídica vinculante e obrigatória, apenas política e moral. Se o Estado não cumpre a determinação da Comissão, o caso é então remetido à Corte Interamericana para julgamento.

Frise-se, por fim, que as medidas previstas no artigo 7.o da Convenção representam deveres dos Estados-Partes exigíveis de imediato. E aquelas elencadas no artigo 8.o, por sua vez, assumem feições programáticas, podendo ser adotadas pelos Estados-Partes progressivamente. São medidas de caráter preventivo, que carecem de justiciabilidade imediata junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, embora os Estados devam reportar-se a elas em seus relatórios nacionais (FARIA; MELO, 1998). Faria e Melo (1998, p.14) advertem:

Ponderamos, entretanto, que os Estados Membros não podem esconder-se sob o manto da "progressividade", para nada fazer em relação as medidas de caráter preventivo e educativo. Se nenhum passo é dado no sentido da realização destas medidas não se pode falar em adoção progressiva, mas sim em omissão total do Estado. Pensamos que tal comportamento não só pode, como deve ser submetido à Comissão de Direitos Humanos na forma do artigo 12 para declarar a omissão do Estado-parte na implementação da Convenção.

Dessa forma, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher representa um avanço em termos de proteção dos direitos humanos das mulheres, na medida em que compreende a desigualdade de poder entre homens e mulheres como causa da violência contra estas últimas. Reconhece a dimensão social desta temática, conferindo-lhe visibilidade, e repele o tratamento baseado na excepcionalidade (o qual se pauta na errônea concepção de que a violência contra a mulher é resultado tão- somente de problemas individuais, familiares ou privados).