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CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO

1.2 A prática de análise linguística no ensino de língua materna

1.2.1 Afinal, o que constitui a prática de análise linguística?

A ideia de uma atividade de „análise linguística‟ parte da compreensão de que todo indivíduo, falante de determinada língua, possui uma capacidade intuitiva de refletir sobre a própria linguagem, de analisar os efeitos produzidos pelas formas linguísticas utilizadas em determinada situação interativa.

Tal entendimento pode ser observado a partir das contribuições de Geraldi (2006), que ao conceituar a prática de análise linguística explica que esta consiste na “recuperação, sistemática e assistemática, da capacidade intuitiva de todo falante de comparar, selecionar e avaliar formas linguísticas” (p. 91), as quais, entendemos, se materializam em textos organizados nos diversos gêneros textuais.

Na mesma direção, Santos, Albuquerque e Mendonça (2007) ratificam o exposto, quando afirmam que a reflexão sobre a linguagem é uma atividade que praticamos em qualquer ambiente interativo, indicando, nesse sentido, uma característica humana.

De posse desses argumentos, entendemos que a proposta de AL baseia-se na capacidade comum a todos os indivíduos de poder refletir sobre a linguagem, de avaliar a atuação verbal e o impacto desta nas relações interativas. Sendo assim, “ponderar se fomos muito ofensivos, se vamos dizer isso ou aquilo, se de fato entendemos o trecho daquele livro,

se uma palavra tem este ou aquele sentido, tudo isso é AL, ainda que assistemática e sem os objetivos escolares” (MENDONÇA, 2006, p. 225).

Entendendo a escola como espaço de comunicação e de aprendizagem, esta teria como objetivo propiciar aos alunos as condições necessárias para que os mesmos pudessem ampliar a capacidade de refletir sobre o que dizem e como dizem, estimulando, assim, a prática de AL de forma sistemática, em vez da memorização de nomenclaturas gramaticais. Nesse sentido, a AL a ser desenvolvida na escola poderia ser entendida como

alternativa complementar às práticas de leitura e produção de texto,

dado que possibilitaria a reflexão consciente sobre fenômenos gramaticais e textual-discursivos que perpassam os usos linguísticos, seja no momento de ler/escutar, de produzir textos ou de refletir sobre esses mesmos usos da língua. (MENDONÇA, 2006, p.204. Grifo da autora)

Tendo isso em vista, a escola constitui-se como “lugar privilegiado para se desenvolver habilidades conscientes e sistemáticas de análise linguística” (SANTOS; ALBUQUERQUE; MENDONÇA, 2007, p. 123), o que justifica a realização de propostas de ensino pautadas na reflexão dos usos linguísticos reais, de modo que seja assegurada a articulação da leitura, produção e AL nas atividades didáticas.

Os PCN para o ensino de língua portuguesa, por exemplo, já trazem em seu bojo a orientação de que os conteúdos deste ensino sejam organizados em torno de dois eixos, o do uso da língua, na modalidade oral e escrita, e o eixo da reflexão sobre esses usos. Dito de outra maneira, tal documento orienta a consideração dos textos orais e escritos como unidades de ensino, a partir dos quais pode acontecer o trabalho de análise linguística, que contribuiria para o desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma boa participação social. Assim, segundo os PCN:

Ainda que a reflexão seja constitutiva da atividade discursiva, no espaço escolar reveste-se de maior importância, pois é na prática de reflexão sobre a língua e a linguagem que pode se dar a construção de instrumentos que permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência discursiva para falar, escutar, ler e escrever nas diversas situações de interação. (BRASIL, 1998, p. 34).

Nesse sentido, podemos dizer que essas ideias tornaram-se, de certa forma, uma bandeira para o ensino de língua materna, sendo, então, amplamente divulgadas por diversos autores e em orientações curriculares, como vimos no PCN de língua portuguesa.

Entretanto, cumpre salientar que a realização da AL em sala de aula implica um necessário processo de transposição didática6, isto é, um movimento de transformações, adaptações para que tais ideias, construídas teoricamente, possam configurar-se, de fato, em objeto de conhecimento a ser efetivamente ensinado. Em outras palavras, os saberes teóricos, saberes de referência, sofrem alterações para que possam ser transformados em objetos de ensino.

Nesse contexto, há dois aspectos que precisam ser compreendidos: o nível das teorizações em que a prática de AL foi construída, o que muda a antiga concepção de gramática e de ensino de língua, por exemplo; e o nível das didatizações, da transposição didática desse conceito para a sala de aula e para os livros didáticos, visando, assim, compreender como a AL pode ser contemplada nas situações de ensino, a fim de consolidar uma prática a serviço da competência discursiva.

Assim, no nível das teorizações, Morais (2002), ao analisar textos e currículos referentes ao ensino de língua materna, chama atenção para dois aspectos relativos à constituição da análise linguística: a utilização da noção de adequação, em vez de correção, e a ampliação do conceito de AL, conceito que não se restringe aos aspectos gramaticais.

Em relação ao conceito de adequação linguística, esse autor argumenta que, a partir da ampliação do que se considera “linguisticamente correto”, seria papel da escola não somente ensinar a norma linguística de prestígio social, mas propiciar aos alunos o contato com variadas formas de atuar linguisticamente, de acordo com os interlocutores e a situação comunicativa.

Quanto ao conceito dessa prática, o autor explica que, ao se tomar o texto como unidade didática, o eixo denominado, então, como AL passa a corresponder, não somente àqueles aspectos normativos mais tradicionais – a ortografia, por exemplo –, mas também a conhecimentos ligados à textualidade, tais como fatores de coesão e de coerência7.

Neste contexto, tal prática inclui, de um lado, uma nova concepção de norma, a qual não corresponde aos usos linguísticos descritos na gramática normativa tradicional, que era, então, baseada “em exemplos da literatura, como modelo de bom uso da língua”

6 A esse respeito, ler Yves Chevelard (1991), indicado nas referências. 7

Aqui não tratamos norma e textualidade como conceitos excludentes, pois reconhecemos que ambos os conceitos podem apresentar uma dimensão normativa e uma dimensão textual. A paragrafação, por exemplo, constitui um importante recurso para os textos e não podemos dizer que não haja regras para isso. Nessa mesma direção, podemos mencionar também a pontuação, a qual se encontra na interface entre a textualidade e a norma.

(SUASSUNA; MELO; COELHO, 2006), e, por outro, o direcionamento para que o trabalho com os conhecimentos linguísticos seja voltado também para os textos, para o campo da textualidade (SILVA, J., 2008, p. 52).

Adentrando o nível das didatizações, Silva, J., (2008) alerta para a necessidade de refletir sobre como esse trabalho será realizado em sala de aula, pois deve ser garantida a articulação com questões centradas na reflexão da textualidade, sem perder de vista o trabalho e “o papel da norma em contextos situacionais de interação comunicativa” (SILVA, J., 2008, p. 62). Nesse sentido, na perspectiva de trabalho de AL é preciso entender e conciliar estas duas noções: a norma e a textualidade.

Todavia, nem sempre se observa uma adequada relação entre o saber de referência e sua transposição para a sala de aula, de forma que a didatização dos saberes traz, às vezes, algumas imprecisões, indefinições. Isso é o que Morais (2002) observou em relação à didatização da AL para o terreno da sala de aula. Entre outros aspectos, o autor ressalta que a ênfase dada ao texto

parece alimentar uma secundarização de outras dimensões do objeto língua, criando-se um preconceito com situações que privilegiem a reflexão sobre aspectos ortográficos, morfológicos, sintáticos, etc. porque remeteriam, supostamente, ao que alguns especialistas interpretam como uma concepção de língua como “sistema em si” (MORAIS, 2002, p. 4. Grifo do autor). Pelo exposto, a ênfase no texto parece ter provocado uma rejeição a outros aspectos linguísticos, talvez por estes aparecerem mais associados ao antigo ensino de gramática, como a ortografia, por exemplo. Entretanto, acreditamos que tais objetos apresentam sua relevância dentro do ensino de língua e precisam ser sistematicamente ensinados, mas com um foco diferenciado, pautado, agora, na análise e reflexão, em vez de, por exemplo, exercícios de cópia e identificação.

Uma segunda dificuldade apontada pelo autor supracitado diz respeito ao pequeno espaço que estaria sendo reservado para o estudo da norma linguística de uso real. Assim, Morais (2002, p. 5) salienta: “se em diferentes cenários pedagógicos falta clareza sobre o que se entende como „norma linguística‟, no discurso que vários especialistas estariam transmitindo aos professores o trabalho voltado à apropriação da norma ficaria confinado às ocasiões de „revisão textual‟”.

Acreditamos que pode ter contribuído para esses entendimentos o fato de que, na proposta inicial de AL divulgada por Geraldi, a prática de AL se desenvolveria a partir dos

textos dos educandos, isto é, da produção textual, e, sendo assim, o estudo da norma seria realizado apenas do ponto de vista da produção e revisão de textos.

Nesse caso, entendemos que, ao considerar como objeto da AL somente os textos produzidos pelos educandos, Geraldi descarta a possibilidade de reflexão sobre outros aspectos linguísticos, como os textos de autores profissionais e mesmo de unidades menores, como a palavra e a frase, aspectos que reflexões mais recentes (SANTOS; ALBUQUERQUE; MENDONÇA, 2007; SILVA, A., 2012) já definem como objetos da AL.

Vale ressaltar que, em edição atualizada, Geraldi (2006) retifica, em nota explicativa, essa posição, ressaltando que a AL também pode ser utilizada a partir de textos que não sejam, necessariamente, as produções dos educandos. Esse novo entendimento parece estar de acordo com a posição assumida por diversos autores (SANTOS; ALBUQUERQUE; MENDONÇA, 2007; MENDONÇA, 2007b; MORAIS; SILVA, A., 2007; SILVA, A., 2012) que defendem o desenvolvimento de atividades de AL tanto a partir das produções textuais dos alunos, quanto nas situações de leitura de outros textos, e também no estudo de certos tópicos linguísticos.

Diante do exposto, o que parece ser pressuposto básico da AL é que ela deve abordar tanto aspectos da normatividade como da textualidade. Nesse sentido, não exclui o trabalho gramatical, mas utiliza-o a partir de um enfoque reflexivo, com base nos usos da língua em situações interativas, integrando os eixos da leitura e da produção, constituindo, assim, ferramenta para o desenvolvimento e ampliação de habilidades leitoras e de escrita.

Dessa maneira, podemos perceber que há diferenças consideráveis entre esta perspectiva de ensino e aquela pautada na gramática tradicional, cujo tratamento dos aspectos linguísticos acontecia de forma isolada, sem muita ou nenhuma relação com o trabalho a ser desenvolvido com a leitura e produção.

A esse respeito, Mendonça (2006, p. 207) apresenta algumas diferenças entre o ensino de AL e o tradicional ensino de gramática, da qual destacamos as seguintes diferenças: ensino de gramática tradicional (língua como estrutura invariável; fragmentação entre os eixos do ensino; metodologia transmissiva; ausência de relação com as especificidades dos gêneros; preferência pelos exercícios estruturais, de identificação e classificação de unidades); ensino de AL (língua como atividade interativa; integração entre os eixos do ensino; metodologia reflexiva, com observação para a construção das regularidades; fusão com o trabalho com os

gêneros; preferência por questões abertas, comparações, reflexões sobre adequação e efeitos de sentido).

Como podemos perceber, as diferenças entre ambas as perspectivas são claras, tanto em relação à concepção de língua, como aos objetivos e ao objeto de ensino. Entretanto, não se verifica, como dissemos anteriormente, a exclusão da gramática, até porque não existe língua sem gramática, não há como escrever ou falar sem utilizar a gramática (ANTUNES, 2003; NEVES, 2003; MENDONÇA, 2006), o que se modifica, então, é a concepção que se tem de linguagem, de gramática e de ensino.

Assim, a prática da AL pressupõe tomar a língua como atividade social, passível de variações, enfatizando a produção e os efeitos de sentido, de acordo com os usos linguísticos em situações interativas, mediante um trabalho reflexivo, que pode contribuir para a construção de regularidades a partir de observações e análises desses usos. Por fim, a AL pode relacionar-se ao trabalho com os gêneros textuais, enfatizando as escolhas linguísticas e o funcionamento destes na sociedade, devendo, também, articular-se aos eixos da leitura e produção, já que se constitui como ferramenta para o desenvolvimento de habilidades leitoras e de escrita (MENDONÇA, 2006; SANTOS; ALBUQUERQUE; MENDONÇA, 2007).

Nessa direção, diversos autores (MENDONÇA, 2006; MENDONÇA, 2007a; MORAIS; SILVA, A., 2007) orientam e exemplificam como a AL pode ser organizada, na sala de aula, de forma articulada aos eixos do ensino: AL e leitura; AL e produção; e mesmo AL e AL, pois, conforme Mendonça (2006, p. 215), “há tópicos que precisam ser trabalhados de forma recorrente, independentemente do gênero (lido ou produzido)”.

Em relação ao eixo da leitura, por exemplo, tal prática conduziria, em linhas gerais, a reflexão sobre as escolhas linguísticas utilizadas pelo escritor e os efeitos de sentido propiciados por estas, o que poderia ampliar as habilidades leitoras dos educandos (MENDONÇA, 2007b; MORAIS; SILVA, A., 2007; GULART, 2010). De forma mais específica, a associação da prática de AL às atividades de leitura poderia

evidenciar as implicações decorrentes de determinada organização textual, da disposição das sequências tipológicas, do encadeamento dos enunciados; pode fornecer elementos para a melhor compreensão do gênero em que se realiza o texto em questão, ou seja, pode ampliar a leitura para além dos aspectos conteudísticos e incluir uma interpretação dos aspectos da língua. (GULART, 2010, p. 36).

Da mesma forma, a AL, durante as atividades de produção, possibilitaria refletir sobre aspectos bastante variados, como o registro de linguagem utilizado, se está ou não de acordo com a situação interativa, a dosagem de informação, fatores de coesão e coerência, entre outros. Segundo Mendonça (2006, p. 214), tal prática auxiliaria a produção, principalmente, porque não supõe uma “atitude de higienização dos textos, da correção por parte do professor sem a colaboração do aluno, mas um movimento de reflexão sobre virtudes e lacunas percebidas, de natureza diversificada”, como problemas de ordem ortográfica, morfossintática, textual e discursiva.

No estudo de tópicos gramaticais, que não se referem, necessariamente, ao texto, mas que precisam ser sistematizados, a AL poderia contribuir para a compreensão do funcionamento destes, visto que seriam estudados a partir de um enfoque reflexivo.

O que se percebe é que a prática de AL, em todos os casos, poderia contribuir para uma “ampla formação linguística” dos educandos (MENDONÇA, 2007b, p. 101), uma vez que estes seriam submetidos a atividades que explorariam tanto questões de natureza textual, como questões gramaticais e discursivas, as quais são necessárias para o funcionamento e a adequação dos usos linguísticos à situação interativa.

Em suma, o que se propõe com a prática de análise linguística não se confunde e nem corresponde ao “que se tem denominado recentemente „gramática contextualizada‟, mas de uma outra maneira de tratar os fenômenos linguísticos na escola” (MENDONÇA, 2007b, p. 96). Nesse sentido, entendemos que a AL é uma proposta de reflexão articulada aos demais eixos de ensino que une aspectos textuais, gramaticais e discursivos, visando à compreensão e produção textual ligada à diversidade de gêneros textuais e de propósitos comunicativos.

Por fim, reiteramos a importância de articular as atividades de leitura, produção e análise linguística, numa perspectiva de promover competências necessárias para uma participação verbal relevante nas situações sociais. Sendo assim, concordamos com Mendonça (2007b, p. 108) quando esta autora salienta que “a autonomia para fazer as escolhas linguísticas mais expressivas e adequadas aos objetivos de quem fala ou escreve depende, em grande parte, de um trabalho escolar com a AL”.

Discutiremos, na seção seguinte, a perspectiva dos gêneros textuais no ensino de língua, e, posteriormente, a relevância de desenvolver o trabalho de AL pautado no estudo dos gêneros textuais, uma vez que consideramos que, a partir dessa articulação, será possível uma melhor compreensão da forma de funcionamento da língua em situações reais de interação.