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CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO

1.3 A perspectiva de ensino de língua materna a partir dos gêneros textuais

1.3.1 O que são gêneros textuais?

Tradicionalmente e durante bastante tempo, a noção de gênero textual esteve ligada ao domínio da literatura sob a forma dos gêneros literários, os quais, conforme Bakhtin (1997), eram analisados apenas pela ótica artístico-literária, sem nenhuma referência à natureza verbal do discurso.

Segundo Marcuschi (2008, p. 147), essa tradição inicia-se já na antiguidade grega com Platão e depois Aristóteles, fortalecendo-se até o século XX. O autor supracitado afirma que é a partir dos estudos aristotélicos “que surge uma teoria mais sistemática sobre os gêneros e sobre a natureza do discurso [...] aquele que fala; aquilo sobre o que se fala e aquele a quem se fala.”. Tal estudo apontava para a existência de três gêneros de discurso: o deliberativo, que voltava suas ações para o futuro e era utilizado com o fim de aconselhar ou desaconselhar; o judiciário, para acusação ou defesa, direcionando-se ao passado; e o demonstrativo, que se situava no presente e objetivava elogiar ou censurar alguém.

Nesse sentido, podemos perceber que o estudo aristotélico já apresentava aspectos relacionados às funções discursivas, aos interlocutores e ao conteúdo temático, aspectos esses que se tornariam, posteriormente, características dos gêneros na teoria bakhtiniana.

Desse modo, temos em Bakhtin (1997) uma definição de gênero mais abrangente, que relaciona o uso da língua à sociedade. Isto é, toda atividade social se relaciona com o uso da língua e esta se realiza por meio de “enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (p. 280).

Entende-se, pois, que o conceito de gênero, segundo Bakhtin, corresponde a “tipos relativamente estáveis de enunciados” (p. 280) elaborados no interior de cada esfera ou domínio de atividade humana, de acordo com as especificidades dessas esferas, funcionando como modelos de organização textual mais ou menos estáveis para a interação verbal.

Nessa direção, consideramos pertinente fazer uma diferenciação entre gênero e texto, visto que ambos estão intrinsecamente relacionados, mas não devem ser confundidos. De acordo com Koch e Travaglia (1992, p. 8-9), o texto deve ser compreendido como

unidade linguística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada pelos usuários da língua (falante, escritor / ouvinte, leitor), em uma situação de interação comunicativa específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão.

Pelo exposto, o texto é unidade linguística produzida pelos interlocutores em uma determinada situação comunicativa, constituindo, assim, o produto das interações. Entendemos que, de acordo com as especificidades, os objetivos de cada esfera social, a produção de textos no interior dessas esferas gera

diferentes espécies de textos, que apresentam características relativamente estáveis (justificando-se que sejam chamadas de gêneros de textos) e que ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados, para os contemporâneos e para as gerações posteriores. (BRONCKART, 1999, p. 137).

Assim, enquanto o texto é o produto concreto das interações, os gêneros seguem como modelos dos quais os indivíduos, inseridos nas diversas esferas sociais, dispõem nas situações comunicativas. Nessa perspectiva, o uso dos gêneros no interior de uma esfera social produz uma familiaridade que “facilita a apreensão das intenções comunicativas, pois cria expectativas sobre o que será dito e sobre os motivos pelos quais o conteúdo está sendo veiculado” (LEAL, 2004, p. 29). Nesse sentido, acreditamos que os gêneros funcionem como formas de organização das interações nas diversas atividades sociais.

Notamos, também, em autores como Marcuschi (2002, 2008, 2011) e Antunes (2009), por exemplo, uma definição de gênero que acentua esse sentido social, aproximando-se, assim, da perspectiva bakhtiniana. Marcuschi (2002, p. 25) define os gêneros como “formas verbais de ação social relativamente estáveis, realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos”. Na mesma linha, Antunes (2009) afirma que a denominação „gênero de texto‟ implica outros elementos além do material

linguístico, os quais são determinados pelas diversas atividades sociais que possibilitam a interação verbal.

Como se pode perceber, as definições elencadas apontam para uma dimensão intrinsecamente social do conceito de gênero, em que este é concebido como forma de interação verbal, vinculada e marcada pelas especificidades de determinado domínio discursivo ou esfera comunicativa. Os domínios discursivos, por sua vez, correspondem aos diversos campos de atuação/comunicação humana: domínio acadêmico, religioso, jurídico, jornalístico, familiar, entre outros, que criam gêneros adequados a suas especificidades. A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 284-285), afirma que:

Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico.

De acordo com o exposto, cada domínio discursivo apresenta um conjunto diversificado de gêneros textuais, os quais se prestam aos propósitos comunicativos dos indivíduos que as integram, bem como apresentam as marcas de tais esferas em seus elementos constituintes: conteúdo temático, estilo verbal e construção composicional que se fundem no enunciado.

Marcuschi (2002) e Schneuwly (2004) também parecem concordar com essa caracterização. Este autor explora tais elementos, definindo a existência de fatores que convergem para a escolha do gênero a ser utilizado, o que ele chama de “plano comunicacional”, estabelecido de acordo com a finalidade comunicativa, os destinatários e o conteúdo temático. Marcuschi afirma que os gêneros são constituídos por estilo, estrutura e conteúdo, embora se definam mais pela função comunicativa que desempenham na sociedade.

Nos dois casos, percebemos uma influência do domínio discursivo em circulação, conforme indicou Bakhtin (1997) sobre as esferas comunicativas na construção dos gêneros. Nesse sentido, entendemos que os aspectos sociodiscursivos que permeiam as interações seriam, também, uma marca característica dos gêneros textuais, assim como o são o conteúdo temático, a construção composicional e o estilo.

Entendemos que o conteúdo temático, ao qual Bakhtin (1997) se refere, corresponde ao tema que é recorrente em determinado gênero, ao objeto do dizer do locutor, sendo, pois,

delimitado e adequado aos objetivos pretendidos pelos indivíduos e à situação comunicativa. Podemos relacioná-lo ao estilo verbal adotado pelo locutor na escolha e construção do gênero, uma vez que o estilo também deve adequar-se ao tema, aos objetivos pretendidos, aos interlocutores e à forma composicional adotada. Nesse caso, o estilo verbal corresponde às construções linguísticas – sintáticas, semânticas, morfológicas, que podem produzir diversos efeitos de sentido.

Por sua vez, conteúdo temático e estilo moldam-se à forma composicional do gênero, à sua estrutura, ao “modelo” em que o enunciado será configurado. A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 302) afirma que “todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo”, isto é, os gêneros que irão organizar os enunciados possuem uma estrutura, um modo de organização que lhe é peculiar.

Nessa direção, Antunes (2003, p. 49) ressalta que a organização dos textos em gêneros, isto é, os “modelos em que os gêneros de texto se manifestam são resultado de convenções históricas e sociais”, fruto das relações interativas dos indivíduos de determinado domínio discursivo, o que gera, como já mencionado, um relativo caráter de estabilidade para os gêneros, que permite utilizá-los adequadamente em cada situação interativa.

Nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que os gêneros são estáveis, padronizados, são também flexíveis e dinâmicos (MARCUSCHI, 2011, p. 18-19), posto que, a vinculação destes à sociedade provoca mudanças e adaptações, de acordo com as reais necessidades dos falantes e usuários da escrita. Isso demonstra que os gêneros devem ser entendidos e estudados levando-se em conta tanto os aspectos de sua estrutura como os relativos à sua natureza dinâmica, funcional e social.

Convém salientar que, ao elaborar a teoria dos gêneros, Bakhtin (1997) preocupou-se também em estabelecer uma diferença entre os gêneros considerados primários e os secundários. Para este autor, os gêneros primários correspondem a formas simples de conversação, uma vez que se constituem em situações de interação verbal espontânea, informal; já os gêneros secundários são considerados complexos porque “aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica.” (BAKHTIN, 1997).

Ainda de acordo com Bakhtin (1997), no processo de constituição dos gêneros secundários, estes absorvem os gêneros primários, que se transformam no interior do enunciado, adquirindo, assim, novas significações. Assim como Bakhtin, Schneuwly (2004)

aponta que os gêneros secundários constituem-se a partir de outros gêneros cotidianos e que não se ligam a um contexto comunicativo imediato, não sendo também espontâneos, como são, geralmente, os gêneros primários.

Para a compreensão dos gêneros textuais como formas que materializam o uso da língua na sociedade, dissemos que estes possuem propriedades como conteúdo temático, estilo verbal, função e forma composicional, que são influenciadas pelas esferas discursivas de que participam. Entretanto, reside, por vezes, uma confusão entre gêneros e tipos textuais, bem como entre gêneros e suportes textuais. Dessa forma, cumpre ainda refletir: gêneros e tipos são formas sinônimas? Como estabelecer diferenças entre um e outro? E a questão do suporte: os gêneros circulam numa determinada esfera discursiva, mas de que forma?

1.3.1.1 (Con)fusões entre os conceitos de gêneros, tipos e suportes textuais.

Tipos e suportes textuais são conceitos que ainda provocam confusões em sua relação com os gêneros textuais. Em relação aos tipos textuais ou de textos, Marcuschi (2002) observa que nas pesquisas referentes aos gêneros, nem sempre é analisada de forma clara a distinção entre gêneros e tipos e isso pode causar grandes equívocos conceituais, como, por exemplo, um livro didático utilizar-se do termo tipo textual para designar aquilo que seria um gênero.

Assim, o autor destaca que é preciso evitar esses equívocos, uma vez que a noção de gênero corresponde aos textos que circulam na sociedade, os quais apresentam propriedades comunicativas, enquanto que tipo textual é referido como espécie de sequência teórica “definida pela natureza linguística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas, estilo}” (MARCUSCHI, 2008, p. 154).

Dessa forma, os tipos textuais não designariam textos, mas sim sequências que participam da construção do texto em determinado gênero, sendo que um mesmo gênero pode conter sequências textuais diferentes entre si, tais como: injuntivas, narrativas, argumentativas, descritivas e expositivas, predominando um ou outro tipo de sequência na base textual.

Quanto ao suporte textual, Bezerra, B., (2007) também observa que faltam pesquisas sobre as relações complexas entre gênero e suporte, sendo ainda comum, entre estudiosos, denominar objetos como o outdoor, o quadro de avisos e o livro como gêneros textuais.

Essa falta de clareza também é observada nos livros didáticos. Segundo Marcuschi (2002), muitas vezes esses materiais referem-se a portadores de textos, mas confundem, por vezes, gênero e suporte, denominando, por exemplo, a embalagem como gênero, embora esta seja considerada um suporte, visto que pode trazer gêneros diversos, dependendo do produto comercializado. Sendo assim, parece ser urgente uma elucidação desses conceitos.

Marcuschi (2008, p. 174) define o suporte como uma “superfície física em formato específico que suporta, fixa e mostra um texto”, nesse caso, poderíamos dizer que se trata de um objeto portador de texto. Entretanto, Bezerra, B., (2007) ressalta que essa definição compreende bem os gêneros textuais escritos, mas é “questionável no caso de gêneros da web ou da oralidade” (p. 12).

Seguindo a definição de Marcuschi, observa-se a existência de dois tipos de suportes, que o autor denomina como: incidentais, quando não possuem a finalidade própria de portar gêneros como os para-choques de caminhão, janelas de ônibus, etc.; convencionais, aqueles que apresentam a finalidade própria de fixação de textos, como os jornais, as revistas, os quadros de aviso e os livros. Uma curiosidade está em ver que o livro pode portar textos de gêneros variados ou apenas um, como o romance, por exemplo, devendo-se distinguir o suporte, que é o livro, do gênero – o romance.

Um fato que merece destaque é o caso do livro didático (LD), que suscita indagações por sua natureza não ter sido ainda resolvida. Questiona-se então: o LD é gênero ou suporte?

Marcuschi (2008) não faz distinção entre livro e LD, considerando ambos como suportes convencionais. Esse autor afirma que o LD deve ser considerado como um suporte textual, visto que “a incorporação dos gêneros textuais pelo LD não muda esses gêneros em suas identidades” (p. 179). Todavia, chamamos a atenção para o fato de que os gêneros, considerados, também, como objetos de ensino, sofrem alterações didáticas para que cumpram essa dupla função: a de ser um instrumento de interação social e de aprendizagem (SCHNEUWLY, 2004).

Vale ressaltar que a aceitação do livro didático como suporte textual não é unânime, como podemos perceber no trabalho desenvolvido por Bunzen (2008), que analisa o LD como um gênero secundário, evidenciando, para isso, as propriedades que lhes são comuns.

vem a atender a interesses de uma esfera de produção e de circulação e que, desta situação sócio-histórica de produção, retira seus temas (os objetos de ensino carregados de valor ideológico), formas de composição para uma expectativa interlocutiva específica (professores e alunos das escolas públicas e privadas, o editor, os avaliadores do Ministério) e um estilo

didático próprio. (BUNZEN, 2008, p. 13)

De fato, olhando o LD conforme o que propõe Bunzen (2008), podemos considerá-lo como um gênero de natureza complexa. Não obstante, essa questão não está fechada e a pesquisa em curso opta pela definição proposta por Marcuschi (2008) – LD como suporte, embora consideremos que os gêneros podem passar por didatizações, quando se constituírem, também, como objetos de ensino e aprendizagem.

Essa particularidade dos gêneros, de poder ser, ao mesmo tempo, um instrumento de interação social e de aprendizagem será mais bem explicitada na sequência, quando discutiremos a especificidade dos gêneros textuais como objetos de ensino de língua.