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CAPÍTULO 3 ASPECTOS DA POLÍTICA DE SAN E A INTERAÇÃO COM O

3.3 AGROECOLOGIA NAS COMPRAS PÚBLICAS

A circulação dos atores em diferentes espaços institucionais, a partir de 2003, favoreceu a participação social na construção das políticas públicas e a institucionalização de ideias identificadas com três grandes temas: agricultura familiar, SAN e agroecologia, bem como a articulação entre elas.

O movimento agroecológico, inicialmente reconhecido como agricultura alternativa, surgiu a partir de críticas às implicações sociais, econômicas e ambientais do processo de industrialização do campo e da estratégia de modernização das práticas agrícolas adotadas na década de 1950, ainda marcantes na realidade rural do Brasil. As discussões da agricultura alternativa ficavam restritas às técnicas agrícolas alternativas e ao combate ao uso de agrotóxicos. Não havia, ainda, questionamentos aprofundados sobre os impactos sociais da modernização da estrutura agrária do País (EMBRAPA, 2013).

O primeiro conceito sobre agricultura orgânica surgiu na década de 1930, como prática que previa a rotação de culturas e a utilização de adubos de base vegetal ou animal, garantindo a diversidade e a manutenção da vida e dos nutrientes presentes na terra. Na década de 1980, organizações sociais do campo passaram a se preocupar mais com a produção de alimentos saudáveis e com a conservação dos recursos naturais. A agricultura orgânica se inclui na agroecologia. A agroecologia surgiu da necessidade de uma nova abordagem do manejo da terra e inclui aspectos agronômicos, ecológicos e socioeconômicos e os impactos ao ambiente e à vida das pessoas.

Práticas de comercialização que buscam contribuir na construção de uma cadeia de produção e consumo mais solidária e sustentável encontram na valorização da agroecologia o caminho mais coerente de reconexão. O comércio promovido pelas redes agroecológicas são exemplos de práticas de consumo que promovem a aliança entre produtores e consumidores, de forma responsável. Tendem a facilitar o acesso dos consumidores a produtos comercializados direto dos produtores, em grande parte da agricultura familiar, a promover a comercialização a um preço justo e conscientizar os produtores quanto à importância de produzir em condições de trabalho dignas. Além disso, as redes agroecológicas procuram conscientizar os consumidores quanto às consequências de seu ato de consumo para a saúde, o meio ambiente, a sociedade, a cultura e a economia.

A agroecologia integra saberes tradicionais e técnicas de manejo sustentáveis. Reconhece, valoriza e estuda os saberes populares ou locais como fontes de contribuições à formulação de propostas e estratégias de produção e comercialização, integrando uma cadeia produtiva com o propósito de contribuir para sociedades socialmente e ambientalmente corretas.

Em 2006 a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Emprapa) reconheceu a agroecologia enquanto ciência e lançou o marco referencial. Segundo o documento da Embrapa a agroecologia se concretiza quando, simultaneamente, se concebe a sustentabilidade nos seus aspectos econômico (potencial de renda e trabalho, acesso ao mercado), ecológico (manutenção ou melhoria da qualidade dos recursos naturais e das relações ecológicas), social (segurança alimentar e inclusão), cultural (respeito às culturas tradicionais), política (organização para a mudança e participação nas decisões) e ética (EMBRAPA, 2013).

Uma característica importante da construção das políticas públicas de SAN refere-se à participação de segmentos da sociedade civil que se identificam com os princípios da agroecologia. Grisa (2012) avalia que, embora o governo do ex-presidente Luís Inácio Lula

da Silva (2003–2010) seja considerado um elemento fundamental na trajetória de construção das políticas públicas para o desenvolvimento rural sustentável, SAN e abastecimento alimentar, por permitir a participação de novos atores e novas ideias nas arenas públicas, a autora ressalta que essas políticas públicas derivam do acúmulo de debates, análises e proposições de um conjunto de atores que há algumas décadas vinha buscando se fortalecer no cenário político e institucional.

Niederle, Almeida e Vezzani (2013) também chamam a atenção para o fato de que os grupos de atores, na construção dos mercados institucionais, possuíam trajetórias de vida vinculadas às organizações da agricultura familiar, da SAN e do campo agroecológico - organizações sindicais, movimentos sociais da agricultura familiar e atores vinculados ao debate da SAN no Brasil. Os autores destacam, ainda, que a Carta Política do II Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado em 2006, já havia indicado que as compras públicas de alimentos se mostravam um instrumento de promoção da SAN e que experiências de fornecimento de alimentos agroecológicos, por famílias agricultoras, por meio do PAA, revelavam que as iniciativas exerciam papel dinamizador da produção agroecológica e do desenvolvimento local. A Carta apontou, ainda, que a agricultura ecológica familiar deveria ser considerada a principal fornecedora dos mercados institucionais, principalmente para o PNAE, identificado como maior comprador público de alimentos. Para tanto, foi apontada na Carta, elaborada em 2006, que era necessária a remoção dos obstáculos legais e normativos.

Ainda em 2006, o debate sobre a importância da produção agroecológica ganhou impulso no PNAE, quando foram estabelecidas as diretrizes para a promoção de uma alimentação saudável nas escolas (BRASIL, 2006a). Nesta discussão, à época, destacou-se a questão dos agrotóxicos, já que a construção da SAN e a promoção da alimentação saudável são indissociáveis da discussão sobre o modelo de agricultura e o estímulo a uma agricultura de base agroecológica.

Para o PNAE, a aquisição dos orgânicos e/ou agroecológicos foi instituída explicitamente a partir da publicação da Resolução nº 26, de 17 de junho de 2013. Por este regulamento ficou estabelecido que nas aquisições de alimentos devem ser priorizados, sempre que possível, os produtos orgânicos e/ou agroecológicos. E nas aquisições da agricultura familiar, os projetos de venda apresentados, por ocasião da chamada pública, em que gêneros alimentícios do produtor sejam orgânicos, estes têm prioridade no processo de seleção das propostas, além da autorização expressa, na mesma Resolução, de pagamento ao fornecedor orgânico de até 30% a mais que o produto não orgânico (BRASIL, 2013a).

Os incentivos, nas compras públicas, às aquisições da produção orgânica, estimulam o consumo de produtos de estação, com os efeitos benéficos deste consumo para a saúde, bem como a diversificação da produção para atender cardápios escolares e a preservação da cultura alimentar de populações tradicionais, tanto no caso dos produtos in natura quando no caso de produtos oriundos da agroindústria artesanal. Em relação ao PAA e ao PNAE, Anjos e Becker (2014) argumentam que ao estabelecer um acréscimo de 30% aos produtos orgânicos, não somente se está incentivando os produtores a abandonarem o consumo de adubos sintéticos e agrotóxicos, e a buscarem uma nova forma de produção, aliada à sustentabilidade, mas também a possibilidade de ruptura ao mito de que produtos orgânicos só possam ser consumidos pelas camadas da sociedade de rendas mais altas e com maior nível de escolaridade.

Carvalho (2009b) também aponta o importante papel que as compras institucionais podem desempenhar na indução de produção que possa trazer uma considerável melhoria no desempenho ecológico e ambiental, bem como da conservação da biodiversidade nos modos de produção de alimentos. A autora lembra que o governo é grande comprador, usuário e consumidor de recursos naturais. Por isso lhe compete incentivar a inovação, por parte dos produtores, e, especialmente neste contexto, a importância do incentivo ao segmento da agricultura orgânica e agroecologia, tendo como consequência o aumento da procura por produtos dessa natureza, e, como resultado, transformação nos padrões atuais de produção.

O PNAE e o PAA têm contribuído para a valorização da produção local e tem, por isso, possibilitado a ressignificação do trabalho da agricultura familiar, promovendo suas características próprias como a produção agroecológica, diversificada, com respeito à justiça social, à cultura e a valorização do artesanal.

Abramovay (2008) considera que não basta somente produzir mais alimentos. Tem- se que investir localmente nessa produção. O aumento da população e o processo de degradação dos recursos naturais vai aumentar o preço dos alimentos. Os processos de produção precisam ser repensados. Decorre daí a importância do fortalecimento do meio rural e das pessoas que dependem da agricultura. Compatibilizar o aumento da produção agropecuária com a preservação e o uso sustentável dos recursos naturais e da biodiversidade é um dos mais importantes objetivos dos Estados em suas políticas agrícolas e de desenvolvimento rural.

No que diz respeito à forma de produção dos alimentos no Brasil, a partir de um novo paradigma centrado no uso racional dos recursos naturais e na preservação da biodiversidade, destaca-se o processo de elaboração, com a participação da sociedade civil,

do Decreto nº 7.794, de 20 de agosto de 2012 (BRASIL, 2012b) que instituiu a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). A PNAPO tem o objetivo de integrar e articular políticas indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população, por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de alimentos saudáveis. Em outubro de 2013, por meio da Portaria Interministerial nº 54, foi instituído o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Brasil Agroecológico (PLANAPO), instrumento de execução da Política (BRASIL, 2014b).

O PLANAPO é um importante instrumento para a inserção e ampliação do espaço da produção orgânica e de base agroecológica no mercado, por meio da inclusão da temática nas ações das políticas públicas que envolvem a educação, a alimentação, a saúde, o meio ambiente, o desenvolvimento agrário, a agricultura, o trabalho e o abastecimento. Uma importante estratégia é o estreitamento das relações entre consumo e produção, com o fortalecimento da agroindústria de pequeno porte e o fortalecimento dos circuitos curtos de comercialização14.

Ao promover o consumo de alimentos da agricultura familiar e agroecológicos nas escolas, contribui-se para a conformação de um consumo político que reconhece e valoriza a agricultura familiar e preocupa-se com a forma como o alimento foi produzido e seus valores intrínsecos. Niederle, Almeida, Vezzani (2013) ressaltam o papel que o consumo e o consumidor têm na modificação da matriz produtiva e das práticas de produção agrícola e, nesse sentido, ganham importância a construção e o estímulo a hábitos alimentares coerentes com um modelo de produção sustentável, mediado pela agroecologia. Os autores salientam que, em relação à alimentação escolar, as compras públicas podem contribuir para a alimentação escolar sustentável que proporciona dividendos sociais, econômicos e ambientais, ao mesmo tempo em que promove a cultura da sustentabilidade.

Considera-se, na atualidade, maior relevância às formas pelas quais os alimentos são produzidos e distribuídos, privilegiando aqueles cuja produção e distribuição seja socialmente e ambientalmente sustentável, como os alimentos orgânicos e de base agroecológica. A construção do conhecimento agroecológico se faz a partir da interação entre saberes científicos e saberes tradicionais. A linha de trabalho da agroecologia tem como premissa aproximar o sistema de produção agroalimentar e a natureza, e aproximar

14 Circuitos curtos ou circuitos de proximidade - embora não haja uma definição oficial, o conceito aponta para

uma proximidade entre produtores e consumidores. Têm sido utilizados para reforçar a noção de proximidade geográfica e do aspecto social presente na relação entre consumidor e produtor (DAROLT et al., 2013).

também a produção e o consumo. Nisso, tanto os processos produtivos quanto o consumo tornam-se mais conscientes e saudáveis. Aí está a sustentabilidade na alimentação.

No entanto, não se pode falar em sustentabilidade sem avanços nas formas de produção. O movimento agroecológico tem a tradição de mobilização para a reflexão de formas alternativas de produção e consumo e tem como premissa a discussão dos processos formativos para o campo, respeitando os saberes locais e a valorização da cultura alimentar local. O caminho do movimento da agroecologia é uma via de inserção de aprendizagem e aproximação dos saberes dos agricultores. Pode-se transpor esse modelo de aprendizagem para a escola, na tentativa de trabalhar o processo de ensino-aprendizagem para a formação de hábitos alimentares saudáveis e para a reflexão da relação consumo e produção de alimentos, entre os estudantes.

Formas mais sustentáveis de produção e consumo são uma temática atual com a crise alimentar, crise de abastecimento de água, aquecimento global, etc. Os estudantes sentem-se atraídos pelo assunto, pois passou a ter significado no cotidiano. O movimento agroecológico tem expertise para trabalhar com reflexões sobre os processos de produção, num pensamento global das formas sustentáveis de produção e consumo para a conservação do meio ambiente. Neste sentido, a temática da agroecologia na escola pode ser uma via de aproximação, aproveitando os saberes do movimento e a curiosidade dos estudantes pelo assunto. Além de aproveitar a expertise do movimento agroecológico em processos educativos na escola, para promover a reconexão entre consumo e produção, a aproximação promove a valorização das formas agroecológicas de produção, tendo potencialmente mercado consumidor mais consciente dos produtos agroecológicos no futuro. Além, também, de promover o interesse de estudantes para a dedicação, no futuro, a este tipo de produção de alimentos. A intenção é trazer reflexão para mudar tanto os processos produtivos, quanto as formas de consumo. Os dois lados ganham na troca de saberes.

3.4 FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR E DESENVOLVIMENTO