• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 PNAE: ORIGEM E TRAJETÓRIA

2.4 QUARTA FASE: A INTERSETORIALIDADE

Com o início do governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), em 2003, instituiu-se no país a Estratégia Fome Zero, visando ao enfrentamento das questões relativas à fome, por meio da integração de vários programas e políticas relacionados à assistência social, à transferência de renda e às ações de natureza estruturante, como a geração de emprego e renda, a reforma agrária e outras (PEIXINHO, 2013). Para o PNAE, avanços foram verificados a partir desse período. Destacam-se a revisão dos critérios técnicos e operacionais visando maior eficiência e eficácia na gestão do Programa, o fortalecimento do papel do CAE e as estratégias normativas para as ações do nutricionista como Responsável Técnico.

Pela primeira vez é apresentado como objetivo do PNAE o compromisso com a SAN, no art. 2º da Resolução CD/FNDE nº 15, de 16/6/2003: “[...] suprir parcialmente as necessidades nutricionais dos alunos, com vistas a garantir a implantação da política de Segurança Alimentar e contribuir para a formação de bons hábitos alimentares” (BRASIL, 2003a). Esta Resolução estabeleceu critérios para o repasse de recursos financeiros, à conta do PNAE, previstos na Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001. Esta Medida, vigente até a publicação da Lei 11.947/09, não estabelecia as diretrizes e objetivo do Programa.

Peixinho (2013) sublinha que, em relação ao nutricionista, a partir de 2003, esse profissional passa a ter a responsabilidade técnica pela alimentação escolar nos estados, no Distrito Federal e municípios. As atribuições do nutricionista como responsável técnico do Programa passaram a ser desde a análise do perfil nutricional dos escolares atendidos, para elaboração de cardápios e pautas de compras, à realização de ações de educação alimentar e nutricional (EAN).

Com a criação do Programa Fome Zero, em 2003, e da Política Nacional de Segurança Alimentar, iniciou-se uma série de discussões na esfera do Estado e da sociedade civil no sentido de promover políticas que pudessem incluir parcelas menos favorecidas da

população e garantir a elas uma alimentação regular e adequada. Uma das primeiras medidas do governo federal, no âmbito do Programa Fome Zero, foi recriar o Consea (Turpin, 2008). Também foi criado, no âmbito deste Conselho, um Grupo de Trabalho (GT) para discussão do tema da Alimentação Escolar. Este GT tinha como atribuição encaminhar proposições referentes ao PNAE, como parte da estratégia de SAN. A partir dos debates desse grupo e com uma participação social mais ampla, foi proposto o reajuste do valor per capita/dia repassado, no âmbito do PNAE, para estados e municípios, que permanecera o mesmo desde 1993, e um novo marco legal que pudesse aprimorar o Programa (ABREU, 2014).

Neste momento, o Programa Fome Zero evoluiu para uma importante posição estratégica, abrangendo outros programas menores, dentre eles o PAA, instituído em 2003, no âmbito do MDS e do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). O PAA tem por objetivo garantir o acesso aos alimentos em quantidade e regularidade aos indivíduos em situação de insegurança alimentar e nutricional, a inclusão social no campo e a redução do êxodo rural. Em 2008, o MEC, representado pelo FNDE, passou a integrar o grupo gestor do PAA, e por meio do Decreto nº 6.447/08 (BRASIL, 2008) os agricultores puderam também fornecer alimentos para a alimentação escolar, em uma modalidade específica do PAA. Foi instituída uma primeira aproximação entre os setores de educação, da SAN e de agricultura familiar, no nível federal (SILVA; DEL GROSSI; FRANÇA, 2010).

O Programa já contemplava o respeito à vocação agrícola local e o uso de gêneros alimentícios básicos, com predominância dos in natura. Essas características delimitadas pelos normativos do PNAE já delineavam a orientação para uma aproximação com o processo de comercialização de gêneros alimentícios típicos da produção familiar. Nesse contexto, as discussões propiciaram a construção de pontes entre a alimentação escolar e a agricultura familiar. Aos poucos a pauta foi criando corpo e adeptos e consolidou-se em agendas locais, entre movimentos sociais de defesa da segurança alimentar e inclusão produtiva local, se fortalecendo como agenda nacional no CONSEA.

O cenário político federal favorável, observado a partir da preocupação do governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva com a SAN, traduzidas no Programa Fome Zero; a inclusão socioeconômica dos pequenos produtores rurais, por meio do PRONAF11 e do PAA e a participação social nos debates entre diferentes setores – educação, segurança

11 O Decreto

Nº 1.946, de 28 de junho de 1996, cria o Pronaf “[...] com a finalidade de promover o desenvolvimento sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores familiares, de modo a propiciar- lhes o aumento da capacidade produtiva, a geração de empregos e a melhoria de renda.” (BRASIL, 1996a). O PRONAF, que tem gestão do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) é operado com recursos do Orçamento Geral da União. O MDA realiza seleção das operações de créditos a serem atendidas pelo Programa e informa ao banco para fins de análise e contratação da operação.

alimentar e agricultura familiar – deram origem ao Projeto de Lei Federal nº 2.877/2008, propondo modificações no PNAE. As negociações para aprovação deste projeto de lei no Congresso Nacional resultaram na Lei Federal nº 11.947/09 (ABREU, 2014).

No entanto, a construção da proposta e a aprovação do Projeto de Lei da Alimentação Escolar passaram por um longo processo. Muitas idas e vindas e várias minutas de projeto de lei foram elaboradas até a versão final ser encaminhada ao Congresso Nacional, segundo as atas de reunião do CONSEA, no período de 2005 a 2009. Há registros de formação de Grupos de Trabalho no âmbito do CONSEA desde 2005. As discussões giravam em torno, principalmente, de um regulamento que desse preferência à aquisição de alimentos in natura, agroecológicos; proibisse a terceirização da execução da alimentação escolar; e que os gêneros adquiridos fossem da agricultura local, com fortalecimento do controle social.

As propostas discutidas no CONSEA aproximaram o Programa ao conjunto de estratégias da Política de Segurança Alimentar e Nutricional. A participação do CONSEA foi decisiva na mobilização para a aprovação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei elaborado pelo FNDE e discutido com o conjunto dos movimentos que participaram da construção da proposta. O projeto de lei chegou a receber mais de 70 emendas, principalmente sobre os artigos que tratam das atribuições do CAE e outros tantos para o artigo que tratava da obrigação da compra diretamente da agricultura familiar para o PNAE. O relator da proposta no Senado, senador Francisco Dorneles, por exemplo, posicionou-se contra a inclusão da obrigação da aquisição da agricultura familiar.

Maluf (2009a) aponta que uma das discussões em torno da aprovação da Lei 11.947/09 dizia respeito à utilização da escola como espaço para legitimar programas, ditos assistenciais, que promovessem acesso à alimentação, principalmente à população em situação de insegurança alimentar.

A implementação da compra de produtos da agricultura familiar foi permeada por diferentes conflitos, desafios e negociações. Havia muitos atores com olhares distintos, diferentes compreensões e interesses divergentes, além das dificuldades de harmonização dos deveres de cada ente federado com a política (MALUF, 2009b), que deram o tom da complexidade das discussões. Com relação às negociações envolvendo o artigo 14 da Lei 11.947/09, Maluf, que na época era Presidente do Consea, descreve diferentes conflitos. Houve distintas opiniões e avaliações sobre a capacidade dos vários segmentos da agricultura familiar conseguirem atender a demanda. As entidades de governo e os movimentos sociais participaram de estudos para o levantamento da capacidade da

agricultura familiar atender o Programa e mostraram a factibilidade da proposta. Neste período, o próprio CONSEA já falava da necessidade de aumentar o mercado de compras públicas, à época somente com o PAA (PEIXINHO, 2011). A preocupação com o cumprimento do limite mínimo de aquisição, considerando as diferentes realidades da agricultura familiar estabelecidas em várias regiões do país, foi uma das questões debatidas no período de discussão do PL (MALUF, 2009b). O debate ascendeu a discussão da necessidade de desenvolver “capacidades” para a agricultura familiar atender o mercado de compras governamentais.

Esse último ponto foi objeto de intensa negociação quando da votação final da lei no Senado Federal, envolvendo gestores das três esferas de governo, entidades de agricultores, organizações e redes sociais e o CONSEA, atores bastante envolvidos na própria formulação do projeto de lei. Estiveram em confronto distintas avaliações sobre a capacidade de as várias modalidades de agricultura familiar responderem, local ou regionalmente, a essa demanda. Neste sentido, no primeiro parágrafo do artigo da obrigação da aquisição da agricultura familiar, foram estabelecidas 3 exceções que preveem a dispensa da observância do percentual de 30% quando o fornecimento pela agricultura familiar estiver impossibilitado em uma das seguintes circunstâncias: i) impossibilidade de emissão do documento fiscal correspondente; ii) inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios; ou iii) condições higiênico-sanitárias inadequadas. Este parágrafo não estava previsto no texto original encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Outro ponto de discussão foi a possibilidade de participação, tanto de grupos formais (cooperativas e associações), quanto informais (apoiados por entidades articuladoras não remuneradas e sem responsabilidade formal) e a categoria de empreendedores familiares rurais. Surgiu também a preocupação com a possibilidade da seleção dos agricultores ser feita via práticas clientelistas (MALUF, 2009b).

Aprovada, a Lei 11.947/09 passa a ser um marco nas políticas públicas relativas à SAN, abrindo um precedente histórico para a agricultura familiar. Em primeiro lugar, porque concede o devido crédito ao agricultor familiar, o maior produtor de alimentos do país. Em segundo, porque se torna uma inovação no que diz respeito à legislação de aquisição de compras públicas brasileiras.

Assim, a política de alimentação escolar teve a “sorte” da continuidade, pois como afirmou Cunha (2012, p. 22), na história da educação brasileira, a falta de continuidade de políticas contribuiu para que iniciativas e conhecimentos valiosos, que poderiam enriquecer

gestões subsequentes, se perderam. O PNAE, ao contrário, pelos sucessivos avanços, sobretudo dos últimos anos, constitui hoje uma política de estado e não mais de governantes.

CAPÍTULO 3 - ASPECTOS DA POLÍTICA DE SAN E A INTERAÇÃO COM O