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ALÉM DAS CORTINAS, SÃO PALCOS AZUIS

III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

22. ALÉM DAS CORTINAS, SÃO PALCOS AZUIS

Figura 37. Fotografia da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016.

No campo das artes, teatro e performance interagem nos anúncios e práticas de muito artistas contemporâneos. Eleonora Fabião defende que, “neste movimento, tanto o campo da performance é ampliado pela perspectiva de artistas com formação em

93 “O gesto de sirena”, poema do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta

autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

teatro, como espetáculos teatrais ganham em vibração performativa” (FABIÃO, 2013, p. 8).

No contrafluxo dessa perspectiva, dentro do circuito teatral, a ideia do que pode ser considerado teatro, mesmo nos seus aspectos de contemporaneidade, persiste com margens ainda duras, de modo que, se vamos mais à beira do campo, abrindo mão de um conjunto de procedimentos em voga para arriscar-nos numa experimentação mais radical, já sentimos a tentativa de expatriação do território dessa linguagem artística. Acontece que a arte, de modo geral, recria seus limites na extrapolação constante de suas bordas e a performance termina por acolher bem em seus domínios as obras de linguagens diversas que tencionam de modo mais incisivo os limiares entre arte e vida.

Cabe ao criador interessado em continuar investigando possibilidades de arte, de pensamento, de materialidade, de mundo através do seu trabalho (como fez Duchamp), seguir desfamiliarizando o familiar e gerando espaço para que outras formas de vida, de instituição, de produção e recepção possam ser articuladas, propostas, vividas. A ampliação da cena exige um permanente questionamento sobre a razão de ser da cena em fluxo histórico. (FABIÃO, 2013, p. 8).

No entanto, eu, particularmente, sigo reconhecendo-me como artista do teatro em grande parte dos trabalhos que desenvolvo, permitindo-me, ao mesmo tempo, habitar e infiltrar suas margens. Os princípios de teatro que vejo permanecerem são os do processo de ensaios, os da busca pela abertura de canais para que o mundo se expresse em cada corpo, na interação de corpos diversos (vivos ou animados), vozes, palavras, na reinvenção da História, na ritualização da vida. Aqui duas políticas se cruzam: afirmar que um trabalho como “Loucas do Riacho” é teatro, como um modo de friccionar a linguagem e expandir o território da criação teatral por meio dos fluxos que inspiram a vida contemporânea; e assimilar da performance, por meio da multiplicidade de processos que ela estimula, não se atendo às formas de representação.

Não sei se é espetáculo, performance, vivência, acontecimento. Não sei, entende? Ponho de lado o que sei e o que não sei de teatro ou de arte e o que fica é que “As Loucas” (as loucas saem da zona de conforto) me atiraram para o ponto/lugar do penetrar doloridamente no interno. Uma escuta pra lá de sensível. Uma escuta da alma. Tá

doendo, mas não tenho dúvida que não dói só em mim. Estamos em matilha!95

Trato, assim, de um teatro que se compõe na experiência renovada do desconhecido, na relação contextual com diversos sujeitos e ambientes, e na ativação do delírio, do sonho e da visagem. É um teatro que trabalha a ritualidade, sem ser “teatro ritual”, que se arvora a dialogar com o invisível sem ser um “teatro espírita”, que abre espaço para a transmutação de traumas sem ser “arteterapia”.

Essa dimensão ritualística, no "formato" (essa palavra não dá conta da coisa-em-si, mas é o que tem pra hoje) que se deu e que permeou o processo inteiro, ensaios e espetáculo, era algo um pouco distante da minha prática artística, mais próximo das minhas incursões "holísticas", por assim dizer, em experiências de cunho mais espiritual - bruxaria, candomblé, o próprio catolicismo da minha infância. Óbvio que nos treinamentos de teatro e dança, com exaustão seja por movimento repetitivo e veloz ou por permanência, alcançamos estados alterados, de percepção distinta, dilatamento etc. A criação artística, em si, já nos abre canais ritualísticos, mas o que quero dizer é que nos "moldes" do processo e das apresentações de “Loucas”, foi absolutamente diferente de tudo que já havia feito.96

O teatro que aqui se pauta não busca ser outra coisa que não teatro, mas tampouco se conforma ou se confina às determinações do que isto quer dizer – ou melhor, no que aqueles que dominam os espaços discursivos dizem que o teatro seja.

Eu acredito que “Loucas do Riacho” é um trabalho de uma estética – eu não sei nem se existe essa expressão desse modo -, mas acredito que é uma estética decolonial. Decolonial no sentido de estar esfacelando e rasurando os limites disciplinares da arte, no sentido do limite disciplinar do que é teatro, do que é dança, do que é a vida, do que é ritual, do que é performance, do que é ser, do que é produzir. (...) E acho que fazer um trabalho com limites tão borrados configura para mim um entendimento decolonial de arte. No sentido de que foge dessa epistemologia na qual o teatro tem limites muito bem definidos. E acho que é um trabalho onde esses limites são borrados, numa perspectiva política e numa perspectiva de construção de outras

95 Trecho de relato da atriz baiana Mariana Freire, sobre sua experiência em “Loucas do Riacho”. Esse

relato foi originalmente publicado na página pessoal da atriz na rede social Facebook, em 17/03/2017.

96 Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “E havia aqueles caminhos, procedimentos etc nos quais você não acreditava ou que desconhecia, e que passou a acreditar/vivenciar durante o processo?”

formas de saber, de produzir, de pensar e de engajar a si mesmo e ao outro.97