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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

13. COMO EL MUSGUITO EN LA PIEDRA

51 Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando

assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta “Você tem algo mais a dizer sobre suas sensações naquele dia? Assistir Loucas do Riacho move algum tipo de desejo criativo em você?”.

mas tampouco lhe diz que não. Quando os pactos de respeitabilidade e boa convivência não estão claros somos requisitados a olhar atentamente para o outro, para entender nossos limites e possibilidades na relação dinâmica com ele.52

Nossa nudez de corpo é também o desvestimento daquilo que encobre os cantos descosturados, as manchas e pedaços encardidos de nós, para comungar e expor a naturalidade insólita dos efeitos do tempo. O corpo paramentado, identificado por suas vestes, é desidentificado pela nudez. É uma nudez que não se fixa à alusão do ato sexual, mas ao erotismo de corpos disponíveis a aproximações sutis e desnudadas das conotações de suas vestimentas.

A experiência da nudez em cena, durante quase 3h, com pessoas desconhecidas ali muito próximas, muitas vezes no corpo a corpo, pele a pele mesmo, foi inaugurada em “Loucas”. Outras experiências com nudez já havia experimentado, mas nada próximo. A sensação nítida de transformação do espaço em outros espaços possíveis também foi uma experiência nova - pela sonoridade, vibração, conexão nossa, na intensidade que se deu (nem sempre aconteceu isso, mas nas vezes em que aconteceu foi avassalador, nítido por demais). Digo isso porque pensando num teatro mais formal, em que no palco já se instaura um outro espaço-tempo previamente acordado por todos, artistas e público, esse acordo da transformação do espaço num "outro" já está implícito. No caso de “Loucas”, era uma instauração gradual, tanto pra nós artistas que viemos durante meses experimentando isso em nós quanto para o público. Os pactos, por assim dizer, iam sendo acordados e atualizados durante o próprio fazer...53

13. Como el musguito en la piedra

52 Trecho escrito para a coluna Rebate, da 10º edição da Revista Barril – Revista de Crítica das Artes

Cênicas. A coluna abre espaço para que os criadores dialoguem com a crítica feita a seus trabalhos. A crítica a “Loucas do Riacho” foi escrita pela atriz e pesquisadora Laís Machado e pode ser lida em <http://www.revistabarril.com/entreosdedos> Acesso em 28 set 2017.

53 Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “E havia aqueles caminhos, procedimentos etc nos quais você não acreditava ou que desconhecia, e que passou a acreditar/vivenciar durante o processo?”.

Figura 28. Ensaio fotográfico de divulgação “Loucas do Riacho”. Na foto, eu, Camilla, Felipe, Mônica, Uerla e Olga, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.

Felipe Benevides54 faz um desenho de um pequeno rapaz que parece um índio sentado nu, enquanto pingos d’água, caídos de uma avenca, gotejam em sua cabeça. As gotas são muito leves e o rapaz parece levitar. O desenho é infantil e dá ares de inocência à ideia. Visita-me a imagem de uma nave-pântano, que transforma o espaço que estamos em um móbile capaz de transportar-nos para uma dimensão onde o relógio é composto pela umidade que brota em todo canto.

A nave-pântano, atravessando um fio de eletricidade por sobre uma parede de musgos, teria o poder de unir a realidade de estar aqui, nesta urbanidade caótica, frenética, produtiva, cheia de informações, mediações, contatos, com as forças que aqui mesmo permanecem, encrustadas nos rios que correm embaixo dos asfaltos, nos povos nativos e imigrados enterrados, nas árvores solitárias cercadas por pedras portuguesas, nos destroços das casas de uma cidade que já passou por muitas mortes. Esboço palavras, que funcionam não como conceitos que iremos desenvolver, mas como iscas de enredamentos: tecno-natureza, corpo-suporte, mar-mídia, ancestral-urbano, perigo- pureza, violência-erótica, tosco-delicadeza, coleção de visgo, brincadeira de criança.

A cidade em que estamos, essa Salvador de mormaço e lodo, do salitre que descasca as pinturas e do chorume que recende nas calçadas, faz a nave-pântano irromper, salobra, em pequenos indícios espalhados por todo canto. A cidade nos admite com toda sua geografia de acidentes, suas construções mal-acabada e meio ruídas, seu

fluxo de convivência pouco adaptado à norma, à lei e aos estatutos de comportamento que vigoram. É nesta Salvador de estridências e hiatos, que surge a nave pântano como um duplo extemporâneo.

Em um dos encontros, compartilho o texto usado no programa da intervenção artística “Beleza convulsiva tropical” 55

, que traduz a qualidade que esta cidade tem de infiltração, emboloramento, erupção e beleza.

A rebeldia, a força e a exuberância da vegetação têm uma potência que engole as pedras, corrói o concreto, infiltra-se, toma os espaços e subjuga o que estiver a sua volta. Aqui prevalece um estado de beleza convulsiva, uma tensão permanente entre a natureza e a técnica, uma batalha úmida, macia, violenta e vigorosa. (BEIGUELMAN, 2014)

Entre natureza e técnica também nós, corpos-naves, vamos conectando desejo, sonho, movimento e som. Ao experimentarmos a criação dessa nave, percebo que cada corpo ali faz parte dela, num estado de contínua brotação.

A Imaginação é a louca da casa A casa se ergue sobre si. Paredes nuas. Mulheres nuas. As mulheres se vestem apenas de si

e de nada. O seu vestido é o vento.

Mas de seus cabelos, que já lhes viestam, Brota verde, folhas, mato. Porque ela é nua, mas ela brota.

A loucura é só. O que eu penso pesa. O que me pesa pensa. E aquele vestido pendurado

O som e a fúria. A selva. A selva em si.

A seiva. 56

Vamos virando corpos-plantas, cuja respiração e persistência no espaço cria diálogos invisíveis, oxigenando a imaginação. Vai surgindo em nós as qualidades que

55 Texto extraído do programa de intervenção artística “Beleza convulsiva tropical”, de Gisele

Beiguelman. Segundo a nota contida no texto, trata-se de “texto usado na narrativa em áudio na intervenção realizada no Arquivo da Bahia, no módulo Arquivo e Ficção (curadoria de Ana Pato) na 3a Bienal da Bahia (2014). As peças sonoras (stereo, 18’40”) foram incorporadas ao acervo do MAM da Bahia.”

56 Poema escrito durante apresentação de “Loucas do Riacho”, por Maria Luzia Sanchez, uma das alunas

da turma do performer e professor Saulo Moreira que estava presente nessa apresentação, como parte da proposta de reflexões estéticas da disciplina por ele ministrada. O poema, escrito num papel à mão, foi compartilhado conosco através de registro fotográfico do próprio Saulo Moreira.

nos conduzem à cabeça de sargaços, à nudez misturada ao verde espalhado pelos vasinhos de terra e na estrutura de montinhos de alpiste nascendo que pende do teto, tecida por Fábio Pinheiro57.

... tenho regado minhas plantas com o mesmo copo que bebo água todos os dias, isso me fez lembrar das “Loucas”. Me achei meio louco, meio planta. “As folhas sabem procurar pelo sol. E as raízes procurar, procurar...”58

. Porque o tempo das plantas - e sua sabedoria - é outro, assim como “Loucas” foi para mim. O trabalho instaura outra sensação da passagem do tempo, um estado meditativo. A trilha sonora contribui para esse sentir o tempo passando pela força do vento que atravessa a casa.

Uma imagem que guardei foi de Camilla grudada na parede, nua, ela toda uma ventosa, o corpo todo uma sensação. É difícil dizer com palavra, né?

Eu acho que as plantas têm um jeito de conversar com a gente.59

Estar aqui é suportar o vórtice dos aparecimentos e ritualizar a presença, num deixar-se conduzir pelo magnetismo de cada corpo que está ou esteve e cuja vibração permanece. É afirmar ao máximo nossa capacidade de afetar-nos pelo que compõe nosso ser aqui60, nesse tempo/espaço em que podemos existir.

A escassez de elementos tornava o espaço vasto e rarefeito, transformava o insignificante em representativo, de modo que as paredes brancas não impunham limites; o vão aberto do mezanino fazia-nos vergar sob aquela coluna de ar, de medo e de tempo; e o vestido pendurado em um dos extremos contava as histórias particulares de cada um.

Na presença individual dos (as) atores (rizes), aquela vastidão se ampliava. Eram também escassos os elementos em seus corpos, fazendo com que a falta de se transformasse numa insuportável presença de, fazendo pesar ainda mais o vão e a coluna abertos pelo mezanino.

Descalço, explorei com os olhos, as mãos e os pés o espaço, os objetos e os seres humanos. “Pode transitar e tocar”, havia sido o alerta do guia à porta. Os (as) atores (rizes), no total de sete, talvez oito, principiaram dispersos (as) no salão, em repouso latente. Cobriam as suas vergonhas: as suas cabeças. Delas escorriam uma vegetação aquosa, promessa de um movimento duvidoso, prontas para sobreviverem livres do pensamento, como se a sua ação fosse o seu estado, e combinassem o existir com o deixar ser levada. A um só tempo presas como o musgo, e à vontade como o sargaço. Rio e mar.

57 Cenógrafo de “Loucas do Riacho”. 58

Trecho da canção “Panis et circenses”, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

59 Comentário do ator baiano Daniel Farias sobre suas impressões acerca de “Loucas do Riacho”, enviado

por mensagem privada na rede social Facebook, em 29/07/2017.

60

Ecos da leitura de trechos da tese da atriz e dançarina Alda Maria Abreu. A tese ainda esta em processo de escrita, consequentemente ainda não disponível para consulta pública.

O restante dos corpos estava disponível ao olhar. Tão mais disponível ao (à) espectador (a)/criador (a) quanto menos este (a) se ignorasse. Como tudo que ali parecesse parado, na verdade deslizava lenta e imperceptivelmente. O movimento estacionado de todas as coisas era o acontecimento que estava sendo criado em meio àquela nudez atmosférica fluida e permissiva.61