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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

17. UM MAPA PARA SE PERDER

atrizes de “Loucas do Riacho”, através de áudios de whatsapp, em 18/06/2017. Este foi um trecho da resposta dela para a pergunta “Que tipo de artista você acha que eu sou?”.

É depois de uma conversa entre amigos, já passada a temporada de “Loucas do Riacho”, que encontro uma nomeação possível para minha posição neste processo. Relembrando o que eu havia falado sobre o aspecto contra-metodológico desta pesquisa, que ressoa uma qualidade própria da cartografia criativa, acabo por relacioná-lo com a maternidade. Criar um filho ultrapassa a possibilidade de um método pré-definido: ainda que reflitamos sobre metodologias variadas, a criação de um ser é um processo de disposição e devir, à medida que o aprendizado se dá em reciprocidade, que as escolhas partem de uma atenção constante e de um trabalho integrado entre conhecimento e intuição, e que a relação provoca transformações mútuas. Mães e cuidadores, diferentemente do que é previsto para acontecer nas instituições de educação, reunimos referências, travamos reflexões constantes, formulamos inevitáveis expectativas, mas muito mais do que apontar para um fim – que a criança seja isso ou aquilo – vicejamos um percurso, uma preparação para a vida.

Criar nesta pesquisa é, assim, partilhar atos de presença e expressão, cultivar valores, propósitos, buscas, estimular o cuidado e a escuta e, principalmente, praticar esses mesmos cuidados e escuta de modo recorrente, alimentando no outro a vocação para inventar caminhos que ele vai traçando por si e que nos escapam totalmente. Pois entendo que é assim que pretendo estar também nas “Loucas do Riacho”, maternando o processo.

Mesmo partindo de um sem número de estímulos sensoriais e símbolos previamente consignados, o que aflora das “Loucas” são ressonâncias de um revolver e um expulsar condicionamentos, abrindo a percepção para a presença do inomeável [sic], ocorrendo num tempo indefinido, numa ação potente, porque, descontínua, nua, e 'sem fim'. O rio corre, permanentemente gera-se; suas águas condutoras e propiciadoras de fecundidade e fertilidade desdobram-se, transbordam, rompem barreiras, imprevisivelmente. As loucas, em transmutação, ultrapassando limites, põem em cheque nossos sentidos refreados e refreadores - nossa sensibilidade estragada.71

16. Minha boca está repleta de sargaço

71 Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando

assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta “Ao sair das Loucas do Riacho, lembro que você comentou algo sobre a potência de um acontecimento que não tem finalidade demarcada. Você poderia me contar mais sobre essa ideia/sensação?”

Figura 31. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Camilla Sarno, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Dos primeiros auto-retratos até o solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, a afogada abre a boca em meu estômago, fustigando: diga mais, diga de novo, diga sempre e de outro modo, até que todo esquecimento, apagamento, silenciamento, violentamento e culpa se transmutem em palavra, em pele, em ato. As dramaturgias compostas nesse período, tentam transpor o afogamento, enquanto sensação e metáfora, para o espaço, o corpo, o papel. Acontece que, no geral, o estar em cena, faz-me sentir que a língua é uma areia movediça: as palavras são tragadas, despedaçadas, viram poeira em minha boca.

No meio de uma frase, a voz trepida, tropeça na lombada do ouvido, chama pra si a atenção, dá-se a surpresa: não compreende mais a própria língua. “Que diabos eu tou dizendo?”, duvida, e ficaria minutos, talvez horas, talvez dias, talvez não tivesse fim ficar assim, encarando, pasmada, os dentes brancos do Semnexo. Mas há ali interlocutores que, ao notar sua vacilação, atentariam pra o que havia sido articulado entre fonemas, tons, construções verbais e a coisa ficaria imprevisivelmente maior, e essa ideia espeta agulhas em seus nervos, faz-lhe recobrar a fala. Quer terminar o texto, descer na banguela e aos solavancos o precipício das palavras, concluir. Quando está pronunciando o último termo, o vazio se desprende do verbo e toma o corpo, entra pela goela, desce a traqueia, passa pelos brônquios, bronquíolos, alvéolos, invade os pulmões. Estanca, sufocada, entre uma sílaba e outra.... Será que é a loucura em mais uma de suas rondas? Pior: alguém diz, num misto de pergunta e resposta, “está cansada, não é? Eu também tava pensando em ir embora...”, e a conversa segue seu fluxo perfeitamente habitual. Chega em casa disposta a queimar o computador, o telefone, as

revistas, os maus livros, mas está fraca, hesitante, não faz nada. Não acende nenhuma luz, lança-se no chão frio e canta, e grita, até não sentir mais o chão, nem suas pernas, apenas uma vontade profunda de soltar-se na amplidão e respirar.72

No “Primeiro Estudo para Ofélia Blue”, quero assumir minha vulnerabilidade, ofertá-la ao público, declarar que tudo bem em estarmos frágeis, que podemos nos expor. “Ao distinto público, vou ficar aqui exposto à audição pública, como o faquir da dor”73

. Dou-me ao direito de não saber bem o que fazer e ainda assim fazer, expressar qualquer coisa, tentar, como uma louca inconsequente, convocar a todos para ver o que não sei mostrar. Eu já venho trabalhando numa lógica de fazer teatral ligada à ideia do acontecimento, e tanto em “Fogueira” quanto em “Butô de bêbado não tem dono”, ambos criados com o grupo Alvenaria de Teatro, é a atenção ao que surge de conexões em cada instante que dita nosso percurso de ação. Mas agora é a primeira vez que experimento esse formato de criação solo e, por segurança, monto um primeiro roteiro, para que as coisas tenham um rumo por onde seguir caso eu me sinta vazia demais. Porém, o vazio, se não tem convite para estar, entra pela janela, nos pega de rasteira e, assim, termino a primeira apresentação sentindo que tudo aquilo que foi dito são palavras mortas, que me dão ares de moribunda. Jogo fora o roteiro que tinha preparado e, daí para a frente, passo a encarar o palco como o fundo de um rio imenso. É essa minha proposição: pisar no palco, deserta, observar os peixes imaginários que ali rondam – olhares, vibrações, densidades, atmosferas, ruídos – e, na interação com esses fatos, soltar os gestos, os sons, as palavras, tentando, de algum modo, tecer elos com aquelas presenças. É a partir do encontro das correntezas-sentidos-olhares que me perpassam a cada dia, que arrisco dizer e dançar, rascunhando uma ponte entre as profundezas em que me isolo e a beira do corpo: a fronteira entre eu e o outro. Fico em silêncio e espero ouvir a voz que, em mim, está na iminência de soar, sua primeira réstia de som, seu modo de tocar outros corpos.

No “Segundo Estudo para Ofélia Blue”, desejo falar sobre meu encontro com Ofélia, sobre minhas leituras dela, contar um pouco do percurso até aqui. Faço marcações, construo um texto, me apresento numa articulação de personas - o eu-atriz, o eu-Ofélia e o eu-narradora. No roteiro do “Segundo estudo”, reservo algumas cenas para

72 “Uma medusa entalada na garganta”, poema do “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado,

parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

o silêncio, para a dúvida, para a escuta, mas esses momentos, assim circunscritos, já contradizem a imponderabilidade dos acontecimentos. A tensão entre a busca por um teatro que se propõe aberto às rotas que surgem no ato da cena e à composição conjunta com as presenças que a compõem, de um lado, e as escolhas que têm raiz numa escola da representação teatral, de outro, vai manter-se viva em todo o decurso do projeto.

Numa das apresentações, desde o palco, olho os semblantes da plateia e sinto que há uma atitude mais radical a ser tomada, mas não sou capaz de abrir-me a essa força insolúvel a fim de dar-lhe movimento.

Há algo pra fazer e eu estou tímida; tudo é maior que meu cálculo.

Vim de cabeça neste mar naquela hora da coragem, agora tenho medo e câimbras.

Seria boa alguma ajuda, mas pra quem pedir socorro se o mar são todos?

Fiquei rouca, quase afônica, engasgada, nem sei com o quê, mas ando burra e continuo abrindo a boca,

grunhindo, parecendo um baiacu lutando contra o anzol. Não é uma imagem simpática,

estão todos constrangidos.

Mas sorriem, delicados; que mentira esta nossa. Nos detalhes de seus cenhos,

noto seu temor: creem que estou desesperada, se envergonham em meu lugar.

Se eu tivesse mais coragem e uma voz bem retumbante pra explicar

eu lhes diria

que o que tive foi um sonho. Com uma voz que se levanta,

revela tudo, acende as luzes, diz que me ama e que isso aqui

é só um dia, só uma noite e logo mais nós poderemos

respirar.74

Vou seguindo meu pequeno conjunto de marcas, como quem foge da própria sombra, e volto ao camarim, ao final da sessão, com a sensação de falcatrua. Sinto que estou contradizendo meus propósitos de busca por um teatro da escuta, da presença, do

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Poema “Alagamento na sessão das nove”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

imponderável. Mas toda contradição me interessa e este é um trajeto longo, de modo que vou tentar e tentar e tentar, sabendo que “não se atinge o corpo performativo grosseiramente. O corpo performativo não para de oscilar entre a cena e a não-cena, entre arte e não-arte, e é justamente na vibração paradoxal que se cria e se fortalece” (FABIÃO, 2013, p 6).

No solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, me proponho a buscar, de modo mais dedicado, um texto de palavras mágicas, de significantes que sejam portais abertos para significados delirantes, e um roteiro de atos de entrega ao presente.

A intensidade com que OFÉLIA me tocou foi uma, sem comparações; cada ocorrência com sua singularidade. Pela carga emocional, pelo teor da inquirição, dimensão plástica, carga dramática, “Ofélia” tem outra vibração energética, uma repercussão psíquica, diretamente, mais intensa em mim.75

Na interação com a equipe de criação do solo, amplio a compreensão do que pode ser uma dramaturgia da “cena expandida”, entendendo a confluência de escritas do corpo, das sonoridades, das texturas, dos brilhos e sombras, dos elementos materiais. O roteiro, escrito durante os ensaios, sofrerá algumas pequenas modificações ao decorrer das apresentações. Uma das cenas, por exemplo, que intitulo de “abissais”, vai se tramando ao longo das apresentações, transformando-se num momento em que o protagonismo é da sonoplastia, composta por um grave eletrônico permeado por um timbre de água. Por outro lado, há outra cena, justamente a que nomeio de “a louca” - e que agora percebo que deveria ter chamado de “surto”, desadjetivando a imagem para atrelá-la ao ato, num substantivo verbal -, em que sinto o texto me engolir. Nesta cena, minha fala é criada a partir de escritos que redigi logo no início do projeto e me esforço para criar movimentos, tons, ritmos que favoreçam os sentidos do texto. Esse texto, ao invés de ser um portal para o acontecimento, passa a ser algo maior que a cena, algo que parece residir em uma dimensão à qual eu tento, sem sucesso, alcançar, numa luta por encerrar o caos do presente em palavras que renegam o corpo: palavras que não se deixam inundar, borrar e/ou diluir pelas ondas bravias do instante.

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Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta “Lembro que você assistiu o solo que fiz de Ofélia, o "OFÉLIA: sete saltos para se afogar". Você vê algum elo entre aquele trabalho e “Loucas do Riacho”? Onde você acha que eles se encontram e onde eles se diferem ou distanciam?”

Em “Loucas do Riacho”, já não há nada previsto para dizer e, no entanto, resta um milhão de “esquecimentos, apagamentos, silenciamentos, violentamentos e culpas”. Ofélia então sussurra o riacho, “deixemos que as águas falem por/em nós ou que, em nós, realizem o silêncio, dancem. Deixemo-nos ser o rio”. Para a composição de cena do espetáculo, os gatilhos pré-acordados são poucos: sob a coordenação de Fábio Pinheiro76, antes do horário previsto para a entrada do público, preparamos um espaço composto por bacias, algumas roupas, cristais, pérolas falsas, pedras e penas. Descemos juntas as escadarias da Casa de Castro Alves em direção ao salão térreo, ao cair da tarde, vestidas apenas com a cabeça de sargaços. O público vai entrando na Casa, enquanto a primeira faixa da trilha sonora é disparada por André Oliveira77 - uma vibração muito grave que se torna cada vez mais audível ao longo de meia hora e que depois se transmuta, gradativamente, por mais trinta minutos, em ruídos de água corrente. A partir disso, invocamos nossa prática de escuta sutil, através da qual o que uma produz, antes de ser “decodificado” pela outra, provoca-a e gera reverberações imediatas.

Desse modo, vamos encontrando modos de retomar a validação, nas diretrizes da criação, dessa potencialidade desestruturante do teatro, enquanto ato presente e efêmero, inteiramente vulnerável às violentas variações da vida que acontece agora. Renuncio à soberania da virtualidade sobre a materialidade, do texto pré-definido ou do roteiro pré- elaborado sobre a composição dos traçados dos desejos, intuições, escutas, agonias e estimulações do instante e tento pôr essas dimensões – do virtual e do material – numa interação viva e anárquica.

17. Um mapa para se perder

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Cenógrafo de “Loucas do Riacho”

Figura 32. Vestígios da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016.

Ao buscar uma definição para o que se estruturou enquanto dramaturgia de “Loucas do Riacho” e em boa parte dos trabalhos do “Projeto Ofélia”, encontro o conceito de “programa performativo”, de Eleonora Fabião (2013). Ao invés da determinação de um encadeamento de ações que preenchem toda a duração da cena e afastam ao máximo a incidência de eventos imprevistos, o “programa performativo” prevê a escolha por uma ação ou um conjunto de ações objetivas, que condensam um conceito elaborado pelo performer. Estas ações servem como disparadoras de situações, a partir das quais a cena se desenrola de modo randômico, junto aos elementos não antecipáveis que rebentam em cada momento. Trata-se de uma composição porosa, uma cena-não-cena radicalmente disponível à interação com o contexto em que se insere, “uma prática ‘acutilante’ e humorada que chacoalha a separação entre arte e não-arte. Que lança o corpo do artista na urgência do mundo e a urgência do mundo no regime de atenção artístico” (FABIÃO, 2013, p 10).

Segundo Fabião, sua proposta pode ser entendida como um “‘motor da experimentação’ – enunciado que norteia, move e possibilita a experiência”, e usada para refletir sobre “teoria e composição de performance e suas relações com a criação teatral contemporânea” (FABIÃO, 2013, p 1). Ela usa este conceito para traduzir o que chama de “enunciado da performance” - o conjunto de ações que norteiam o performer em seu trajeto de relação com o ambiente e com o público (ou com o outro-não- público). E admite abordagens do “programa performativo” no teatro contemporâneo, em trabalhos que atentam para modos de se afetar amplamente pelas nuances

contextuais. Esse teatro se constrói enquanto ato aberto ao fluxo do acontecimento, realçando, na prática cênica, os potenciais do imprevisível.

E claro, há também a possibilidade de inserção de programas na malha do espetáculo aumentando sua vibração performativa. Depende. Depende das aventuras de significância, subjetivação e organização que queiramos proporcionar uns aos outros; que queiramos proporcionar a nós mesmos e aos espectadores, participantes, colaboradores, coautores, cúmplices ou testemunhas dos trabalhos. Depende das temperaturas relacionais, dos tipos de contato que queiramos vivenciar. Depende. Depende das poéticas e éticas em questão. Tudo depende. (FABIÃO, 2013, p.9)

Na primeira temporada de “Loucas do Riacho”, nosso programa performativo é: descermos, às 17:30h, as escadas da Casa de Castro Alves, todas nuas, com as cabeças de sargaço, e nos espalharmos pelo espaço, cada qual com seu percurso e ritmo, enquanto o público entra e um som grave torna-se paulatinamente perceptível. Não há mais nenhuma ação pré-definida a cumprir. A certa altura, algumas tirarão sua cabeça de sargaços ou não, vestirão o vestido criado por Fábio Pinheiro78 para cada uma ou não, permanecerão no salão até o público todo ter ido embora ou logo se recolherão à sala reservada no segundo andar. Muitas coisas poderão acontecer, muitas relações, toques e murmúrios, e isto só o encontro de cada dia revelará. Junto a isto, temos também um pacto de disposições, uma invocação de sensibilidades, uma espécie de mantra silencioso que é: aceitar o vazio, estar, deixar que as águas do corpo ressumem, buscar afluências, permitir o rio, ser o rio, alagar.

A cena foge ao longo da imprecisão de suas marcas, da incerteza sobre seu início e fim. Mesmo acontecendo num espaço definido, num espaço marcado e divulgado enquanto lugar de apresentação de um trabalho artístico, essa cena perde-se por entre o canto dos grilos, o grave das caixas, a luz crepuscular. Ela transcorre num espaço intersubjetivo, num fluxo que se compõe pelas trocas sutis entre os agentes envolvidos. Estes agentes são tanto os artistas que desenvolvem a obra quanto o público que a compõe a cada dia. Não há um material preparado de modo fechado ao qual o público assiste, mas sim um arranjo de chaves através das quais artistas e público podem ir – ou não - se engajando, numa performance de aproximação e numa reformulação do tempo.

É preciso desativar em toda parte os efeitos de cálculo econômico, nem que seja para saber claramente onde somos afetados pelo outro, isto é, pelo imprevisível, pelo acontecimento que, ele sim, é incalculável: o outro corresponde sempre, por definição, ao nome e à figura do incalculável. Nenhum cérebro, nenhuma análise neurológica supostamente exaustiva é capaz de proporcionar o encontro com o outro. O advento do outro, a chegança daquele que chega, é (este) que chega enquanto evento imprevisível. (DERRIDA apud LOPES, 2015, p 233)

Na nossa espera por esse outro desconhecido, que é o público, articulamos uma série de autorizações, nos dispondo a sucessivas aberturas: permitimo-nos silenciar, escutar, esvaziar, mover, olhar, descansar, estar, escapar, retornar. Arrumamos o espaço buscando as linhas de fuga que se tecem como um convite a despir-se dos temperamentos cotidianos e a mergulhar conosco no riacho das loucas. O que resta como procedimento central, arriscado e sincero é dissolver a rigidez dos modos, alinhavando cumplicidades através das quais um rio de sentidos insondáveis corra entre nós, entre os corpos que habitam a Casa de Castro Alves a cada dia. E que, a partir das afluências sutis entre vibrações, olhares e movimentos, outras ações despontem. Assim é o nosso convite para estar no rio. O mais, é “o banhar-se”79

.

Mergulhei em busca da beleza que habita o fundo. Minhas expectativas de nada importavam para Elas [sic], bem como não importam para o oceano. E eu só pude viver a experiência do mergulho quando parei de tentar decifrar o que via. Larguei as lentes de pesquisador, mantive só a curiosidade humana. Senti. Menos do que poderia, já que mulher não nasci, mas percebo que, de alguma maneira mágica, a presença da minha mãe ali ampliou a conexão, o nosso laço umbilical permitiu que eu percebesse coisas através dela.80

Durante todo o processo criativo, ao longo dos ensaios, são diversos os “programas” experimentados, alguns mais objetivos, outros mais imaginativos. A questão fundamental dos ensaios é “inventar, a cada vez, o programa de ação mais condizente com as questões em pauta” (FABIÃO, 2013, p 10). Cada encontro é um acontecimento, uma ação de experimento, que, se não chega a apagar inteiramente a ideia da temporada de estreia enquanto auge do processo, ao menos rasura essa

79 Trecho da fala de Orlando Pinho em entrevista que cito aqui mais a frente, em “não precisamos fazer

nada”, pg 73.

80 Trecho do comentário do ator e arte-educador Jones Mota, sobre sua experiência em “Loucas do

Riacho”. O comentário foi originalmente publicado no site de seu grupo, o Viansatã, e pode ser lido na