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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

19. NÃO PRECISAMOS FAZER NADA

Figura 34. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Uerla Cardoso, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Uerla81 diz que dá vontade de estar sempre movendo o corpo, esquentando, buscando um estado de presença, para não morrer, não morrer na cena, não ficar fora do fluxo dos acontecimentos. Ela diz, “quando começo a suar é que entendo que algo está acontecendo”. Mas onde é fora? Fora de quê? Fora da vida? Essa morte é que morte? Parar um pouco, permitir-se não estar sempre fazendo algo o tempo todo, deixar de lutar

pelo lugar ao sol, ou pelo lugar sob os refletores, pode ser o que nos recoloque numa existência misteriosa do presente, essa coisa estranha de que vivemos tentando escapar. Ou pode ser que, como Uerla indica, esse estar movendo-se sem parar, num fluxo contínuo, num modo de dissolver a apatia, o gesto cristalizado, o movimento premeditado, comandado, previsível, seja um caminho para trair o hábito de defender-se do invisível e, entregando-se ao caos, encontrar outros modos de silêncio e diálogo.

Não se trata então de permanecer parado ou movendo-se, calado ou em fluxo de som ou fala. Trata-se de parar – com violência ou calma, sonolência ou vigor - um pouco essa locomotiva insana que é a vida rotineira de produzir, ganhar, gastar, cumprir, dever. Trata-se de abrir as próprias antenas para o mistério.

Não há um estado ideal para viver “Loucas do Riacho”, mas a preparação para essa vivência é uma espécie de luta contra o assoreamento do fluxo do tempo, uma ampliação da vazão dos leitos, um desentupimento de canos, uma sucessão de aberturas de vias pelas quais a vida se materializa. Os repertórios de movimentos, de gestos, de entonações, de expressões, de técnicas das performers ampliam as possibilidades de tradução de cada sensação, mas o repertório que mais importa aqui é o dos contatos vertiginosos com a inquietude, das batalhas travadas na carne, em cada músculo, da precipitação em cada sensação percorrendo cada poro, dos tantos confrontamentos com a própria máscara, com a própria história, com o próprio ímpeto. Esse repertório é constituído numa trajetória intensiva de experimentação artística, a partir de um treinamento dedicado e, muitas vezes, estafante, de abertura ao imponderável e de maquinação de modos pelos quais transfigurá-lo, transmiti-lo ou traduzi-lo em arte.

E, mormente,

remar contra a maré numa canoa furada Somente

para martelar um padrão estóico-tresloucado De desaceitar o naufrágio.

Criar é se desacostumar do fado fixo E ser arbitrário.82

Quanto mais erramos, quanto mais enormemente quisemos e fracassamos e ainda assim quisemos mais e mais e entregamos nosso corpo em sacrifício – não um sacrifício de expiação, mas de transfiguração –, refazendo novos atos criativos, mais cada um de nós, artistas, estaremos abertos a aceitar o vazio, a ceder à catástrofe

maravilhosa da vida que se desabotoa e a criar, loucos, à beira do riacho. É na permissividade a nossas marcas mais intensas, nas rachaduras que as compõem, que a loucura vai abrir um veio por onde escoar-se longe das patologias e nos impulsionar a nadar e nadar pelo mistério da criação, como:

Um elogio à determinação do agente e à indeterminação da vida. Uma prática que exige tônus e flexibilidade, planejamento e abertura, disciplina e presença de espírito. Mas então, como preparar-se para performar? Ouso uma resposta: vivendo a vida. (FABIÃO, 2013, p 10).

Márcio Nonato83, problematizando um aspecto excessivamente representativo que ele considera persistir nos ensaios e que contradiz a busca por uma política de criação de desmanchamento de máscaras e fluidez de discursos, sugere que realizemos a experiência do pano na cabeça. Essa é uma experiência que Márcio vem propondo desde que dirigiu o trabalho “Isto é apenas uma mulher com um pano na cabeça”84

e que tem se configurado como uma possibilidade de experimentação que descondiciona certos repertórios de ações prévias e oferece a possibilidade de expressão que surge da relação com o vazio do pano branco.

Em um dos dias de ensaio na Casa Preta85, à noite, Nonato leva os panos brancos com os quais todas cobrimos completamente a cabeça. A indicação é apenas essa: amarrar o pano de modo a cobrir toda a cabeça e estar com ele durante um período (que dura pouco mais de uma hora). Ao sentir que a experiência com o pano já foi suficiente por hora, é só tirá-lo e esperar que as demais façam o mesmo, cada qual a seu tempo.

Comigo acontece que, ao mesmo tempo que eu me vejo só, ali, mergulhada nesse pano, numa solidão acolhedora e confortante, aguça-se minha busca por encontros. Ao sentir a presença de alguém próximo e ao tocar nessa pessoa – com as mãos ou com o simples encostar de um corpo no outro – a sensação que me acomete é de um erotismo emancipado de fetiches, um elã de ternura e vigor.

Felipe Benevides, que não usa o pano por ter chegado mais tarde, diz, na conversa ao final do encontro, que parece que estamos em outra dimensão. Nosso magnetismo o arrasta também para esse estado de levitação, de sonho. André Oliveira86,

83 Iluminador de “Loucas do Riacho”

84 Trabalho do coletivo VAGAPARA, de Salvador, que estreou em 2011. 85

Espaço cultural localizado no Largo Dois de Julho, em Salvador, e gerido por coletivos de teatro.

conta que o fato de estarmos com os rostos cobertos sem agirmos com uma intencionalidade dirigida a uma audiência, convida-o a misturar-se em cada uma de nós e deixa-se ficar imaginando os sons que estaríamos escutando dentro daquele pano.

Chego correndo atrasado até a porta que dá para o jardim da casa preta. Atravesso, encontro as mulheres vestindo o pano na cabeça, espalhadas pelo espaço. Recebo o pano, escolho não vestir agora.

O terreiro é conhecido, já ensaiamos ali antes, a luz parece outra. Tenho a impressão de que está mais escuro. Duas meninas estão sentadas num banco, quase não se mexem. Uma caminha trechos curtos balançando os braços. Outra para e se volta em minha direção. Há alguém de costas com a testa encostada numa parede tateando. E entre as plantas do Jardim. Alguém sobe a escada sem nenhuma pressa.

Estou parado na entrada. O lugar impõe sua passagem sobre quem acabou de chegar. Um convite para aquietar e observar. Aceito o convite. Caminho pelo jardim e subo a escada. De cima vejo o quintal e o terreno da frente tomado por plantas, a ruína de uma casa, uma igreja colonial na rua de trás, a casa vizinha.

Com o pano na cabeça, só dá pra ver o branco do tecido. Começar a se deslocar dessa maneira ativa a atenção na distribuição dos gestos. Neste estado compartilhado, a presença de cada uma sofre uma expansão, ganha volume e qualidade de imã. Convida a olhar.

Nova frequência sintonizada em conjunto. Novas disposições no espaço-tempo. Sem precisar descrever as causas, o que se move dá a saber sua finalidade em ato. Só acompanhar os processos: o que é contido e contínuo e se estende com calma, o que se exaspera e convoca, o que grita, o que encontra e tateia, o que encontra e agarra, o que não sabe o modo, o que avança, o que solta, o que abre....

As mulheres estão juntas agora. Reunidas conversam, arrastam poeira, dançam, consoam, modulam diferenças em vibração. Reunião onde está o reaparecimento de reuniões. Está em curso a evidenciação da comunhão entre os seres de matéria e vazio neste espaço-tempo. Isto é difícil de colocar em palavras, vou me valer dos versos do poeta Waly Salomão: "Feras e bichos mansos e seivas vegetais transmigram pelos canos/ De sangue dos humanos / Metempsiscoses e dispersões dos aros do eixo da personalidade"87. Os gestos trocam calor-energia com o espaço-tempo. O vento nas folhas, o tambor de água, o avião e o grito na vizinhança, numa melodia, entram, abrem-se os cenários. Sem se ver, se encontram, reverberam gestos à distância. A impressão é que há uma abertura de percepção deslocando a comunicação a outro canal, onde labora, em rearranjo constante, uma nova intimidade, precária, mediada por intensidades.

A música e o movimento chegam a um ápice, atingem o calor. O movimento se torna imprevisível, surgem novos padrões, um novo comportamento, nova estrutura. Os seres e o meio se procuram, atravessam a linha de abstração que evidencia seu amálgama.

Dançam o lugar. O espaço-tempo é mutante. A atmosfera amplifica seus elementos que variam como o humor e a persistência da memória. Deu uma vontade de chorar. Aconteceu que no instante seguinte a esse meu pensamento, uma das mulheres abriu um choro. Estatelei com a co-incidência.

Conversamos muito sobre o elemento água e é fatal que os indícios dela sejam transcriados em sensações e desenhos durante esse processo. O jardim inundou, por exemplo; geral sentiu.

E então arrefece. Deixa estar. O vórtice se dissipa. Longe da simetria e da regularidade. A substância se recolhe ao tutano.

Retirada dos panos. Esgar dos olhos e braços. Lançar-se ao chão ou permanecer de pé. Esvaziar.88

Com o rosto coberto com o pano branco, toda a necessidade de preencher o espaço e o instante com imagens, textos, intenções e atmosferas se esvai. No vazio do pano, diluído o rosto, é nosso ser que se vê disperso por toda parte e resta apenas esperar que os desejos nos movam para algum gesto ou lugar imprevisível.

Dessa experiência do pano na cabeça, surge a ideia de uma cabeça de sargaços, que não impede a visão, mas a turva, conferindo o naufrágio de nossa capacidade de distinção.

“Loucas do Riacho”... Percebo como uma situação metaritualística, de transvaloração de sentidos, expansão de afetos, ação descondicionante, liberação da consciência. Se já é isso, outra coisa só pode ser o banhar-se.89