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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

15. EU NÃO SEI PARA ONDE VAMOS

Figura 30. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, eu, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Um dia ainda vou me redimir, por inteiro, do pecado do intelectualismo. Se deus quiser. Não vou ter mais necessidade de falar nada, de ficar pensando em termos dos contrários; de tudo... Pra tentar explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também não é. E que eu não tô querendo ser dono da verdade, que eu não tô querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós e de mais alguém, que é o tempo - o verdadeiro grande alquimista, aquele que realmente transforma tudo. (GIL, 1973)66

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O vídeo criados a partir do cruzamento entre experimentos no Jardim da Casa Preta e na mata da Escola de Dança da UFBA está disponível em <https://vimeo.com/201206889> Acesso em 18 nov. 2017.

Em “Loucas do Riacho”, assumo a coordenação criativa, dramaturgia e performance. Sou movida pelo vislumbre de um processo em que as águas componham em nós, corpos criativos, uma poética com possibilidade de expressão não normatizada, uma arte que imploda hierarquias, autoritarismos e colonizações. Contudo não sei, ao certo, por onde nem para onde isso conduz, para quais formas, quais enredos, quais prosódias. A criação acontece enquanto cartografia e, nela, a vocação que preciso ter é a de perceber as trilhas esboçadas por entre a mata frondosa do vir-a-ser. É à medida que as coisas vão surgindo que se pode entender como seguir e estimular novas insurgências. Isso requer a aceitação das potencialidades gestadas em cada acontecimento, de modo a compreender que as projeções a respeito do que resultará no espetáculo, em sua temporada de apresentações abertas ao público, são mutáveis, e que, na verdade, a temporada não é um mero resultado de um conjunto de ensaios, mas tem sua procedência em cada encontro que vai sendo tecido. O constante reajuste em relação às expectativas do que partilharemos publicamente não tem como medida a maior ou menor frustração provinda de algo que poderia ter sido de tal modo, mas não alcançou sua potência. É justamente a potência manifestada no percurso que requer uma reelaboração da imaginação para a celebração dos modos que despontam em cada novo acontecimento do processo.

Nesse sentido, praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar com metas em variação contínua. Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível, sem que saibamos bem de onde. Para o cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de processualidade. (KASTRUP, 2014, p 40)

Quando Márcio Nonato67 me diz “neste processo, eu enxergo você conduzindo um rio”, essa imagem me inspira modos de ocupação desse lugar a que estranho: o da direção. É a primeira vez que dirijo um trabalho com outras artistas no elenco e o fato de ser eu também uma das atrizes do trabalho parece ampliar meus desafios, ao mesmo tempo que me oferece uma outra perspectiva.

Em geral, performers não pretendem comunicar um conteúdo determinado a ser decodificado pelo público, mas promover uma experiência através da qual conteúdos serão elaborados. (FABIÃO, 2013, p. 2).

Em uma conversa com um diretor de teatro e parceiro de jornada68, ele sugere que haveria sido melhor que eu tivesse ficado fora de cena durante o processo de criação de “Loucas do Riacho”. Desconfio que esta visão seja decorrente, entre outras coisas, de algum incômodo gerado por qualquer ação que desenvolvo, enquanto performer, durante as apresentações e ensaios, e também pelo meu silêncio frente a alguma ação destoante das outras atrizes. Ele parece querer sutilmente dizer-me que algum gesto, palavra ou ação que eu e mais alguém performamos não se harmoniza inteiramente com a atmosfera geral do trabalho e, sendo eu ao mesmo tempo atriz e diretora, esse equívoco fica ainda mais sublinhado. No entanto, minha suscetibilidade a dar formas pouco aderentes às forças que as invocam parece-me absolutamente cabível. Isso porque a questão, nesta cartografia de rio, não é medir o quanto os gestos, vozes e movimentos estão plenamente assentados na verdade de cada momento, mas o quanto podemos nos deixar mover pela suscetibilidade ao imprevisto. Não se trata de medir o grau de verdade com o qual cada uma dá forma às intensidades que a atravessam, mas de alimentar, a todo instante, a abertura para esses atravessamentos, a coragem nesse despojamento incansável ao vazio, ao silêncio, à queda. Minha função maior então é instigar a busca e inspirar o exercício incansável de escutar desejos e mover-se por eles.

Dirigir, desde uma perspectiva de um “olhar de fora” que atesta se as coisas estão funcionando, que verifica se está tudo harmonizado, se há conformidade no todo e se os atores/performers estão sendo fiéis com os propósitos plásticos do trabalho, não faz sentido para mim neste processo, em que a atitude de representação não é o princípio fundante. “Quando conseguimos desvendar os olhos, reconhecemos: ‘a vontade de delimitar, de geometrizar, de fixar relações estáveis não se impõe sem uma violência natural sobre a experiência do olhar.’” (NOVAES, 1988, p 9). Julgo que a naturalização dessa posição da direção, enquanto um “olhar de fora” que, por não participar presentemente da cena, tem mais sobriedade e, consequentemente, mais consciência sobre o todo da obra, segue, implicitamente, o pressuposto de uma cisão e hierarquia entre mente e corpo. Isso porque toma a posição do diretor - aquele que não está fisicamente comprometido com a ação cênica – como uma posição que propicia uma melhor qualidade de pensamento, em contraposição ao performer que, tomado pela vivência do ato, teria uma percepção apenas parcial. Diante da abundância de teorias

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Como esta conversa se dá de modo casual, sem um acordo expresso para servir de material à dissertação, opto por não nomear a pessoa referida.

contemporâneas que superam esta cisão físico-mental e dos estudos de corpo e cognição que compõem o território das artes do corpo, o que ainda determina que um olhar “de fora” da situação perceba melhor e “mais verdadeiramente” do que o olhar “de dentro” dela? Ainda que reconheçamos que são lugares diferentes – o dos atores que compõem a cena e o dos membros da equipe criativa que não estão fisicamente englobados no ato da apresentação – e que, dessa diferença, decorram variadas percepções, é importante desfazer a noção de que essas percepções são “mais verdadeiras” ou “mais falsas”.

... não há nada que seja “o verdadeiro”, no sentido de autêntico, originário – nem em cima, nem embaixo, nem atrás, nem no fundo da máscara. Nem em lugar algum. A procura pelo verdadeiro, aqui, perde até o sentido: revela-se como falso problema. A única pergunta que caberia é se os afetos estão ou não podendo passar; e como. (ROLNIK, 2014, p 36)

O próprio sentido de olhar, tomado enquanto atitude de pesquisa, perpassa fronteiras, reunindo os sentidos à razão e abrindo-se para alteridades múltiplas. O olhar, por um lado, está no cerne das noções de percepção, observação, exame e, assim, perfeitamente incorporado na gramática da atividade intelectual, da racionalização da vida. No entanto, o olhar pertence primeiramente à ordem do sensível. O olhar sensual, o olhar que deseja ver, que vê sendo visto e que se apresenta mesclado naquilo que olha, percorre as dimensões do corpo em sua precariedade e substância, e, antes de saber, sente. Ou melhor dizendo, seu saber se compõe de sensação. “O olhar é linguagem da vontade e da força antes de ser o órgão do conhecimento” (BOSI, 1988, p 78).

Esse olhar sensível não se restringe a uma percepção óptica, daquilo que o olho vê, tampouco necessita declinar dela, mas mescla as percepções advindas de cada sentido, numa recepção das forças que palpitam nos corpos circundantes, sem uma hierarquia entre uma percepção e outra.

Conhecer o mundo como matéria-forma convoca a percepção, operada pelos órgãos dos sentidos; já conhecer o mundo como matéria-força convoca a sensação, engendrada no encontro entre o corpo e as forças do mundo que o afetam. Aquilo que do corpo é afetável por estas forças não depende de sua condição de orgânico, de sensível ou sensorial, de erógeno, nem de emocional, mas de sua condição de carne percorrida por onda nervosa: um "corpo vibrátil" (ou corpo intensivo). A percepção do outro traz sua existência formal à subjetividade, sua representação; enquanto que a sensação lhe traz sua presença viva. (ROLNIK, 2003, s/p)

Quando tento, próximo à estreia, marcar algumas poucas ações para garantir que tudo “dê certo”, percebo que, na verdade, estou sucumbindo ao medo do imprevisível. Ao tentar organizar as ações, nesses ensaios, tento diminuir os riscos de que, diante do público, não consigamos produzir nada. Ainda não compreendo inteiramente que esse “nada” é que é o grande acontecimento de “Loucas do Riacho”. Essa compreensão só se dará, de modo consciente, na véspera da estreia quando, ao perceber que minha tentativa de roteirização das ações contradiz a poética que vínhamos trilhando, assumo a opção por uma dramaturgia do encontro, num acordo de ação que se constitui na abertura para a relação com o outro.69

Assim, percebo que, mais que conduzir um rio, o que posso fazer é abrir veios por onde ele se multiplique e esparrame. Convido a entrar no rio - é isso que vou entendendo que posso fazer -, lembrar do rio, manter acesa a lamparina em que o rio se ilumina na noite escura. “Há aqui um rio, vê? Permitamos que ele flua, saltemos nele, sejamos-no”, recordo, mantendo-me em atenção aos rastros de seu fluxo e “tudo caminha até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo” (KASTRUP, 2014, p 42). Aguço minha mediunidade para as águas, indico e invoco sua presença, abro o rito para que cada uma de nós encarne os fluxos em sua dança. Não poderei dizer para onde ir, mas direi, uma vez mais, “vamos! Vamos na correnteza, mantenhamo-nos firmes nessa jornada, mantenhamo-nos com os pés dentro d’água”.

Eu acho que em muitos momentos esperávamos determinadas posturas de uma lógica de direção ou hierárquica, ou do tipo que detém um determinado discurso, que detém o conceito. Uma lógica a qual você nunca se propôs estar. Algo que muitas vezes nós outros todos questionamos, não acreditando nesse lugar do fechamento do conceito. O que é desafiante para você e é desafiante para os artistas outros que estão ali colaborando. E acho que nesse sentido se aplica isso da poética das águas, porque está na sua forma de ser e esteve em sua condução o reconhecimento das fragilidades que a gente tem nesse momento de agenciar tantos outros. Acho que você teve habilidade e sobretudo deixou que... Eu acho que você tinha uma clareza política do que você queria desde o princípio, mas, de fato, o lugar da sensibilidade e da intuição estiveram mais aflorados em muitos momentos que esse lugar discursivo. Esse lugar discursivo do logos, né, da tal da academia. E acho que você defendeu isso. E não dá para falar disso, né, de água, de loucura, de borrar as coisas, sem isso, né?70

69 Essa questão da dramaturgia será melhor abordada no tópico 17, “Um mapa para se perder”. 70 Informação oral. Trecho transcrito de entrevista realizada por mim com Mônica Santana, uma das

atrizes de “Loucas do Riacho”, através de áudios de whatsapp, em 18/06/2017. Este foi um trecho da resposta dela para a pergunta “Que tipo de artista você acha que eu sou?”.

É depois de uma conversa entre amigos, já passada a temporada de “Loucas do Riacho”, que encontro uma nomeação possível para minha posição neste processo. Relembrando o que eu havia falado sobre o aspecto contra-metodológico desta pesquisa, que ressoa uma qualidade própria da cartografia criativa, acabo por relacioná-lo com a maternidade. Criar um filho ultrapassa a possibilidade de um método pré-definido: ainda que reflitamos sobre metodologias variadas, a criação de um ser é um processo de disposição e devir, à medida que o aprendizado se dá em reciprocidade, que as escolhas partem de uma atenção constante e de um trabalho integrado entre conhecimento e intuição, e que a relação provoca transformações mútuas. Mães e cuidadores, diferentemente do que é previsto para acontecer nas instituições de educação, reunimos referências, travamos reflexões constantes, formulamos inevitáveis expectativas, mas muito mais do que apontar para um fim – que a criança seja isso ou aquilo – vicejamos um percurso, uma preparação para a vida.

Criar nesta pesquisa é, assim, partilhar atos de presença e expressão, cultivar valores, propósitos, buscas, estimular o cuidado e a escuta e, principalmente, praticar esses mesmos cuidados e escuta de modo recorrente, alimentando no outro a vocação para inventar caminhos que ele vai traçando por si e que nos escapam totalmente. Pois entendo que é assim que pretendo estar também nas “Loucas do Riacho”, maternando o processo.

Mesmo partindo de um sem número de estímulos sensoriais e símbolos previamente consignados, o que aflora das “Loucas” são ressonâncias de um revolver e um expulsar condicionamentos, abrindo a percepção para a presença do inomeável [sic], ocorrendo num tempo indefinido, numa ação potente, porque, descontínua, nua, e 'sem fim'. O rio corre, permanentemente gera-se; suas águas condutoras e propiciadoras de fecundidade e fertilidade desdobram-se, transbordam, rompem barreiras, imprevisivelmente. As loucas, em transmutação, ultrapassando limites, põem em cheque nossos sentidos refreados e refreadores - nossa sensibilidade estragada.71