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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

1. CARTOGRAFAR UM RIO

Figura 16. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

As marcas desta pesquisa - sua dicção, seu jeito de corpo, seu temperamento - nascem de fracassos consecutivos. São matérias soterradas que emergem no interior de meus desabamentos, no movimento de afirmar a vida por entre escombros.

Ofélia é o território movediço no qual derramo questões, pulsões, proposições, práticas, textos e desejos. Quanto mais percorro a louca afogada, mais ela respinga suas águas em minhas propostas e borra qualquer possibilidade de apreendê-la numa sistemática qualquer.

No pré-projeto desta dissertação, eu anuncio uma pesquisa cartográfica - que, todavia, só aos poucos vai tomando corpo e sentido. Não há como cartografar sem antes ser arrastado pelo vórtice gerado no derribamento de nossos territórios mais habilmente cultivados. Inúmeras vezes, refugo e acabo persistindo num modo formatado, conduzido, respaldado e indiferente ao fulgor da vida, ainda que celebrado nos recantos mornos da apreciação comedida. São muitos os elementos à nossa volta que repetem padrões contrários à experiência e aliam uma necessidade excessiva de ter uma “opinião formada” à ilusão da informação, achatando o pensamento num processo que mecaniza a expressão ao submeter a subjetividade à produtividade. Mas minha falta de traquejo com a construção de edificações estáveis e bem-aceitas, invariavelmente lança-me para as corredeiras da dúvida e da tentativa.

Descubro, em minha inabilidade para a constituição de uma estrada de estudo exemplarmente pavimentada, o talento para manter-me à deriva, deixando-me afogar frequentemente e sentindo meus pulmões reaprenderem a respirar sob o céu aberto.

Destituo o pensar moldado a protocolos habilmente repetidos, para saudar fugas, desacertos e ruídos.

Construo este trajeto ao passo em que o percorro - atenta à movimentação viva das várzeas - e o olhar que abro para Ofélia deixa-me mover pelos sonhos, alumbramentos e alucinações que ela engendra. É um olhar-devir, que salta na imagem da louca afogada e canta o que vai vendo neste espaço entre superfície e fundo.

Já de saída, libero-me, com Ofélia, de sua responsabilidade exacerbada enquanto personagem composta numa das maiores obras clássicas da dramaturgia universal - o “Hamlet”, de Shakespeare. As águas de Ofélia exaltam meus fluidos e transbordam-me para novas zonas de existência e expressão. O texto de Shakespeare serve-me de motor de ideias, imagens e sentidos, e retorno a ele sempre que preciso encontrar novos rastros ou me reconectar com alguns princípios, sem travar uma investigação sobre o que está encoberto pelo texto, ou o que é verdadeiro e o que é falso nas leituras que se desenvolvem. Invoco os princípios antropofágicos, cujos ecos, já incorporados nos preceitos de um cartógrafo, estimulam uma relação apaixonada e de transformação constante.

Ela [a antropofagia] se caracteriza pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura por incorporar novos universos, a liberdade de hibridação, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias. (ROLNIK, 2014, p 19)

Aceito a dissolução das intenções de enquadrar, delimitar, direcionar e não resvalo na pretensão de que a escrita assimile mecanismos pelos quais a criação configure métodos reproduzíveis. O que proponho, em contrapartida, é uma deambulação por zonas instáveis, por onde soam murmúrios visionários, soterrados pelos bons modos, pelo bom-gosto, pelo pavor de encarar as turbulências da criação e da vida.

Enquanto me sinto incapaz de ocupar os espaços que requisitam de mim ideias muito assertivas, teorias bem acabadas, etapas e assuntos bem compartimentados, Ofélia se mistura à minha voz para dizer, “vamos juntas, sem nunca saber onde vamos parar”. O “não-saber” torna-se, com ela, um modo de “ir sabendo”, aprendendo e, ao mesmo tempo, ir desaprendendo, num espécie de saber que se constitui com modelagens dinâmicas.

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. (LISPECTOR, 1984, p 253-4)

O pressuposto de um “saber-fazer”, resultante da pretensão de um domínio das ferramentas que autorizam cada fazer, dá lugar a um “saber da experiência” (LARROSA, 2002), um tipo de aprendizado em que o que é dado não se apreende, mas se opera em nosso organismo e provoca mutações: aquilo que conhecemos é agora parte de nós e fala sobre nós. A experiência pode ser vista como o modo do mundo ser em nós e mover-nos, o que depende de atravessamentos e que não tem necessariamente a ver com acúmulos de informações, dados, temas e vocabulários.

Esse tipo de saber, o “saber da experiência”, ativa a atenção às movimentações do mundo, a escuta das vozes circundantes e a disponibilidade para rever as ideias. É um saber que acontece no mesmo espaço de vazios, riscos e dúvidas onde se dá o encontro com o outro – material ou virtual – e onde se opera a transformação de um ser presente em outro ser presente, formado por novos acontecimentos, poderes, faltas, apetites, fragilidades e desvarios.

A Ofélia comportada, dócil e obediente do início da trama do clássico de Shakespeare fustiga-me contra toda aceitação passiva e inquestionada diante de regras, modos, conceitos, métodos e leis normatizadas em seus campos específicos. Sua loucura, despontada após a perda do pai e o afastamento intempestivo de seu amante, Hamlet, deflagra aqui uma voz profunda que só encontra vias de expressão a partir dos ocos abertos pelo desamparo, pela perda e pelo apagamento de referenciais rígidos e engessados.

A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido –e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 2014, p 23)

Ao propor-me despir das normatizações, duvido da maioria das validações possíveis, vivendo amplamente o desafio de não me conformar a uma escrita pré-

formatada, rígida, conservadora, nem admitir soçobrar no clichê e na mesmice tantas vezes acobertados sob a aba do contemporâneo. O que as emanações da contemporaneidade nas artes me oferecem de mais precioso é, ao contrário, a cumplicidade no cultivo de olhares e parâmetros fluidos, que se reinventam a cada novo movimento experimentado no processo de criação. O valor da obra não é dado por seu alinhamento a arranjos mais ou menos “em voga”, mas pelos efeitos que produz nos corpos movidos em seu fluxo. O que exige um rigor renovado, que se constitui enquanto compromisso com os propósitos éticos e políticos da pesquisa, que só se efetiva através de ações assiduamente trabalhadas – de modo prático e/ou sensível -, o que exige fôlego para questionamentos, falências e reelaborações constantes.

Conectar-se às forças caóticas da vida, que contagiam o pensamento, exige coragem de se libertar de um modelo profissional de seu exercício. Um modo de conhecimento escoltado por um saber formal, capaz de articular discursos competentes e desonestos do ponto de vista existencial. Varrem-se as incertezas, isolam-se as idéias estranhas, inclassificáveis, evita-se qualquer sensação de desamparo. Enxota-se a vida para o outro lado da calçada, procurando neutralizar os percalços que significa viver. Faz-se de tudo para não desalinhar o cotidiano. Encarna-se um tipo de subjetividade de prontidão, incapaz de aderir ao risco que é estar vivo e pensar. (PRECIOSA,2010, p 28)

Cartografando um rio, percorro um território inconstante, encarando o pavor, a vertigem e a agonia. Lidando com a iminência de fracassar outra e mais uma vez, aventuro-me em zonas volúveis entre as quais sou impedida, pelo meu próprio traçado, de fixar ou exaurir o desejo numa análise ou tradução quaisquer. Salto no rio-Ofélia, percorrendo sua qualidade imanente de permanecer em estado de passagem e fluxo. Fluir e não recusar nada das paisagens que este rio toca e corta é a missão que assumo, não sem hesitações, temores e alguns recalques acidentais, e, sim, com a decisão de desembaraçar-me, quantas vezes for preciso, do vício do lugar seguro e estacionário. Opto por aceitar o não-controle sobre os enredos que vão se tramando, alargando ao máximo o campo de explosão das vicissitudes de cada matéria. Sinto o chão que escorre por debaixo do corpo sem que os pés possam jamais paralisar.

Tomo como bússola da pesquisa a vivacidade, a potência e a vibratilidade21 do que se apreende, se agencia, se encontra e se despeja no caminho. Experimento, pois,

21 Alusão ao conceito de corpo vibrátil, de Suely Rolnik. Segundo a autora, o corpo vibrátil é a

capacidade que “nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. (...) com ela, o outro é uma presença viva feita

fazendo pontes imaginárias entre paradoxos, mudando diversas vezes de traçado, deixando-me tomar pela perplexidade de esbarrar-me com vias sem saída e portas batidas com a chave dentro. Trilho um campo de deslizamento contra-metodológico22, pelo qual, não sabendo onde vou chegar, esqueço de me preocupar com direcionamentos e finalidades. A viagem é o próprio destino, é na deriva pelo fazer criativo que se constrói uma obra viva, a qual não termina de se criar, e que, de modo mais sutil ou mais intenso, se dissolve e se transmuta em outra obra.

Tenho que arriscar modos de efetuar paulatinamente as intensidades que me rondam. Abro meu caderno de criação tateando intensidades: tudo que faz vibrar o corpo e sua capacidade de pensar (-se) interessa para a criação desta cena, deste ato, deste texto.

(...) o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência; não tem o menor racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. (ROLNIK, 2014, p 65)

Encaro ao mesmo tempo a diversidade de inspirações e a falta de referências modelares para materializar cada um dos impulsos criativos que me rondam. O que há é um conjunto de referências desconjuntadas, que encaram a efemeridade do teatro e da vida bailando incessantes nascimentos e mortes, e rascunhando ideias que se permitem desabar antes do acabamento final. Sei que estou tomada pelo sentido de buscar e que esta busca preserva a honestidade em assumir a falta de talento e disposição para dominar diretrizes e procedimentos consagrados, permitindo-me guiar por pistas vagabundas, por rumores de um corpo trêmulo que adoece, cura, retrai, expande.

(...) Havemos de gritar em coro com o náufrago com a voz ensopada

de estrondo e ruína: Catástrofes! Planos por água abaixo,

de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos” (ROLNIK, 2016, p 3)

22

Termo que se conecta com as propostas de Paul Feyerabend, em seu livro “Contra o método” (FEYERABEND, 1989).

notas e sabedorias tomadas por algas, bolachas, peixes palhaços. Com a boca encharcada de outras palavras

que nem sabemos o que significam vertemos a língua no espaço. Mesclamos nossa voz à das águas

fazendo soar a palavra de onde nascem

as ilhas... (sob as quais, - saravá, afe maria – a paixão não é vício;

absolvição).23

Conclamo assim as pequenas tragédias rotineiras e encontro tesouros por entre a carcaça das navegações em que afundo. Escrevo para, ao invés de neutralizar ou pacificar minhas marcas, assumi-las como o canal pelo qual Ofélia regurgita e reencarna renitentemente em matérias que não cansam de se ofertar à transfiguração.

(...) a marca conserva vivo seu potencial de proliferação, como uma espécie de ovo que pode sempre engendrar outros devires: um ovo de linhas de tempo. E assim vamos nos criando, engendrados por pontos de vista que não são nossos enquanto sujeitos, mas das marcas, daquilo em nós que se produz nas incessantes conexões que vamos fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua existência. (ROLNIK, 1993, p. 242)

Repetidamente, na passagem pelos territórios aqui ponteados, estarei só e, ao mesmo tempo, repleta de comparsas, o que é uma grande sorte. Pratico esta jornada em bandos que se fazem e refazem, e expando minha solidão por entre cumplicidades, que se permitem ao abandono, sem se negligenciar. Conto com interlocuções diversas nesta pesquisa e minha voz, aqui expressa, é fruto do encontro e contaminação de muitos timbres e sotaques. Assim, dou-lhes as mãos nesta navegação de localidades multidimensionais. Podemos estar, a um só tempo, à beira do rio, dentro do rio, sendo o

23 Trecho do poema “Náufrago”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta

rio. E é na profunda implicação em cada aspecto desse nosso estar que é tecida esta cartografia.

2. Aceitar o vazio

Figura 17. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Felipe Benevides e eu, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada, do nada simplesmente temos que partir (Antônio Cícero/João Bosco/Waly Salomão)24

Há um espaço em branco que precisa ser preenchido com texto e conceito; um lugar em silêncio esperando por um gesto amplo, uma voz retumbante, uma história; leitores e platéia atentos. Todavia, o que tenho a oferecer é nada. Nada, este acontecimento; nada, o meu olhar; nada, os pés descalços; nada, muitas marcas; nada, um par de sonhos; nada, este trajeto; nada, um som distante; nada, a experiência; nada. Nada, nada, nada, repito, e me remeto ao ato contínuo: permaneço em movimento nas águas de um rio. Estou sempre afogada e, no entanto, tempos descontínuos cohabitam em mim: não paro de cantar, ainda louca e acordada, deslizando pela flor da superfície.

Ao perceber o tamanho das expectativas que este encontro gera – com o texto dissertativo ou com o teatro - ameaço uma terrível contrição. Talvez eu devesse ter preparado alguma certeza que me colocasse a salvo desta flutuação perigosa diante dos olhares e desejos alheios. “Alheios ou meus?”, surge a dúvida.