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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

8. UM RIO CHAMADO OFÉLIA

Figura 23. Fotografia do cortejo-oferenda “Lavagem”. Mariana David, 2017.

Na narrativa do afogamento de Ofélia, em Hamlet, a descrição de seu arrastamento pelas águas do rio, como se ela fosse uma “criatura nativa desse meio, criada pra viver nesse elemento”39

cria a linha de força de sua imaginação material40: ela será sempre uma mulher que se derrama por entre leitos e sob as árvores, e que é tomada pelos fluidos que a permeiam. Essa adesão completa às águas vai assentar em

39 SHAKESPEARE, Willliam (1599-1601). Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011.

2º edição. Pág 117.

Ofélia uma propulsão de signos absorventes com grande poder de animar novas criações e incitar desdobramentos múltiplos.

Bachelard (2013), em seu livro a “A Àgua e os Sonhos” - que compõe um conjunto de ensaios sobre a imaginação, incluindo outros volumes sobre o fogo, a terra e o ar -, desenvolve uma teoria sobre uma poética da água. Ofélia aparece na obra nomeando uma das características da força imaginativa da água, o “Complexo de Ofélia”, estabelecendo conexões entre água, mulher e melancolia. Embora haja diferenças entre a proposta cartográfica desta pesquisa e os fundamentos da teoria de Bachelard, no sentido de que ele remete a uma estrutura essencial sobre a criação poética, e, não obstante, ele trate da feminilidade sob uma abordagem de essencializações, adotando um prisma já superado pelo movimento transfeminista41, a teoria de Bachelard espalha-se aqui através da pulsação de uma poética da transitoriedade, da vertigem e do desmoronamento. “A água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente” (BACHELARD, 2013, p 7).

Durante muitas etapas do “Projeto Ofélia”, tomo o afogamento de Ofélia enquanto uma metáfora fundante. Pensar no que me afoga e como essa sensação pode ser articulada sob a imagem de Ofélia compõe grande parte dos trabalhos criativos do projeto. Mas, ao passo que o devir Ofélia vai ganhando lastro, as vozes das águas vão transfigurando Ofélia no rio em que ela afunda. A metaforização se esvanece, uma vez que a criação deixa de articular significados diferentes através de um mesmo signo - Ofélia - e passa a ser uma espécie de meditação pelas águas, uma reconciliação com a matéria, um refestelamento na substância. “Essas imagens da matéria, nós a sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração” (BACHELARD, 2013, p. 2).

Até o solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, passando pelos estudos cênicos e pelo livro, havia uma articulação de discursos que eu agrupava sob o signo de Ofélia, expandindo seus sentidos. Em “Loucas do Riacho” e “Lavagem”, a busca passa a ser a de deixar que as águas murmurantes aflorem na superfície do corpo e da língua. Isso porque o desdobramento de significados da tragédia de Ofélia, onde o foco está no

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O transfeminismo, em linhas gerais, é uma vertente contemporânea do feminismo histórico que propõe uma abordagem intersecional às questões de transgêneros.

discurso – o que se diz através de Ofélia, ainda que esse discurso seja articulado muitas vezes de modo não verbal -, vai dando lugar a um modo pelo qual é possível dizer ou calar, a uma qualidade de estar e criar, a uma poética. Deixar de metaforizar as águas de Ofélia para, atraída por ela, fazer das próprias águas a poiesis do trabalho – uma poiesis com qualidades de fluidez, inundação e apagamento -, desloca o sentido de “querer dizer” para o de “deixar-se ouvir”.

Cantada como um ato de transfiguração nas águas, a tragédia do afogamento de Ofélia ganha outras circunstâncias em que a morte, mais que uma morte nas águas, é uma morte das águas. Uma morte que é um novo modo de transcorrer, de rebentar e perecer a cada instante, que é movimento contínuo de ceder e alagar, entre ciclos, tempestades e luas. O suicídio de Ofélia ilumina aqui a decisão não de abdicar do corpo ou arruiná-lo, mas de admitir em si o corpo das águas, seu júbilo e terror, seu jorrar no tempo/espaço, seu dia a dia de transbordo e vazantes.

A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. Em numerosos exemplos veremos que para a imaginação materializante a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito. (BACHELARD, 2013, p 7)

Misturada às águas que correm, me assomo a uma pequena multidão de Ofélias, com o coração tomado por musgo e sargaço, que abrem a boca de pavor e apetite. Sem a estabilidade que nos outorgavam o pai, a pátria, o idioma, cedemos à tormenta e a voz que rebenta, de tão desconhecida, inexperiente e imprevisível, não assenta num código facilmente decifrável de comunicação.

Desalojada das formas em que se reconhecia, um discreto lamento começa a assediá-la, mas finge não escutá-lo. Decide apegar-se com fúria à urgência dessa nova vida, intensivamente frágil. Não lhe passa pela cabeça rotulá-la. Prefere carregar consigo esse inominável estado inédito. Prefere de agora em diante deixar a porta aberta. (PRECIOSA, 2010, p 38)

Esta voz aparece, em sua deformidade, sob a insígnia da loucura; uma loucura lírica, cuja poesia não permite um enquadramento em patologias pré-categorizadas e que surge como um jorro que não cessa frente a nenhuma barragem do razoável. Ofélia emerge em nós, louca e lépida, confundindo a linguagem para ver emergir uma

expressão que até então estava contida, impossível de revelar-se através das gramáticas oficializadas. Ela salta nas profundidades dos espaços, cria e recria densidades, canta enquanto se afoga. Ela é crise e alívio, dando voz e sossego aos sentimentos que a atravessam. Essa voz enche as divisas de borrões: ela é fala e é canto, é memória e é presságio, é inocência e perspicácia.

(...) as vozes das águas quase não são metafóricas, (...) a linguagem das águas é uma realidade poética direta, (...) os regatos e os rios sonorizam com estranha fidelidade as paisagens mudas, (...) as águas ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir, e (...) há, em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a palavra humana. (BACHELARD, 2013, p. 17)

Mulheres-Ofélias, arremessamos desejos contra o vazio tornando-o visível, fantasmático. Completamos o paradoxo de nossa condição, ao afundarmos solitárias numa morte lamacenta ao mesmo tempo que nos expandimos, diluídas, difundidas, multiplicadas e reagrupadas no rio que corre sem parar. Um rio que infiltra dúvidas na rigidez dos conceitos, que atiça movimentos ao que é estanque, que rasura a nitidez das formas para revelar seu estado de metamorfose e trânsito. “É pela água que Poe, o idealista, Poe, o intelectual e o lógico, retoma contato com a matéria irracional, com a matéria “atormentada”, com a matéria misteriosamente viva” (BACHELARD, 2013, p. 13)