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Devir Ofélia e a emergência de uma poética da dissolução

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO

DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA

DA DISSOLUÇÃO

Salvador

2017

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RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO

DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA

DA DISSOLUÇÃO

Dissertação submetida ao Programa de

Pós-Graduação

em

Artes

Cênicas,

da

Universidade Federal da Bahia, como

requisito para obtenção do grau de Mestre

em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª. Drª. Daniela Maria

Amoroso

Salvador

2017

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao PPGAC-UFBA, pelo acolhimento desta pesquisa no programa; a minha orientadora, Daniela Amoroso, pela cumplicidade e inspiração na materialização desta obra; a Cássia Lopes, pela aceitação que viabilizou meu ingresso no mestrado; a Meran Vargens, por todo o cuidado com que me ajudou a conduzir os trâmites burocráticos desta empreitada; e Gilsamara Moura e Paula Lice, pelas ricas e generosas contribuições à pesquisa enquanto parte da banca.

Agradeço às “Loucas do Riacho”- Camilla, Felipe, Liz, Mônica, Olga e Uerla -, pela confiança, disponibilidade, afeto e por tudo que, juntas, efetuamos em nossa dança de tempos e desejos; e a toda a equipe de criação que ofereceu suas habilidades e sonhos para que “o riacho das loucas” transcorresse - Fábio, André, Márcio, Mariana, Lucas, Júnior, Daniel e Laís.

Agradeço a todos que interagiram nas criações do Projeto Ofélia, compondo parcerias preciosas; e a todos que passaram pelo Alvenaria de Teatro, onde tomei ciência da potência de habitar as fronteiras.

Agradeço a José, meu filho, pela experiência assombrosa de multiplicar-me e dissolver-me na potência do amor; a Leny, minha mãe, pela parceria sempre atenta, pelo estímulo sempre vívido, pelo abraço quente, pela cooperação e guiança; a Sérgio, meu pai, pela olhar doce e herança sensível, por estar sempre por perto nos momentos mais cruciais, por toda sua ternura e amor; a André, por José e pelos caminhos compartilhados; a Ana, comadre, pelo suporte fundamental de seus cuidados.

Agradeço a Saulo e Camilo, pelas leituras cúmplices, cuidadosas, e pelos diálogos inspiradores; a Clarice pelo apoio de tradução do resumo; a Orlando, Alda e Daniel Farias, pelas conversas-entrevistas cedidas; a Olga, mais uma vez, pela Gameleira e pela beleza de parceria de trabalho e vida movimentada nesse território; a meus amigos tantos, parceiros desta vida-arte, que de tantas formas me alimentam.

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Agradeço a tanta gente que me move e que, comigo, é movida; gente com quem tramo tantos encontros – palpáveis ou imaginados - de inspiração, transbordamento, dissolução, risco, contágio e cuidado: de amor.

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Criar é não se adequar à vida como ela é, Nem tampouco se grudar às lembranças pretéritas Que não sobrenadam mais. Nem ancorar à beira-cais estagnado, Nem malhar a batida bigorna à beira-mágoa. Nascer não é antes, não é ficar a ver navios, Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar. Braçadas e mais braçadas até perder o fôlego (Sargaços ofegam o peito opresso), Bombear gás do tanque de reserva localizado em algum ponto Do corpo E não parar de nadar, Nem que se morra na praia antes de alcançar o mar. (Waly Salomão – Sargaços)

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RESUMO

“Devir Ofélia e a emergência de uma poética da dissolução”, pesquisa de característica prático-teórica, condensa os rumores criativos de um devir despertado por Ofélia, a afogada de Shakespeare. A Ofélia que despenca no riacho, a mulher que se transmuta em rio, a que enlouquece e canta, afirma neste texto e na prática que o engendra, uma poética que dissolve o hábito do pensamento moderado, da comunicação domesticada, do processo criativo pautado por regras estanques e dos ditames que demarcam cada área de criação. Esta poética, que intitulo de poética da dissolução, emerge aos poucos ao longo de criações sucessivas e, especialmente, durante o processo criativo do espetáculo “Loucas do Riacho”. Ela nasce do cruzamento de uma poética da água e uma poética da loucura e se materializa nos corpos criativos em qualidades de fluxo, trânsito, abandono, disrupção, desorientação e vertigem. Essas qualidades terminam por dissolver as divisas entre teatro, dança e performance, entre arte e vida, entre teoria e prática, entre visível e invisível, entre condução e desorientação, entre movimento e descanso, entre casa e rua, entre silêncio, palavra e som. A pesquisa se desenvolve através da cartografia e da pesquisa performativa, (contra-)metodologias em cujos cruzamentos são compostos os elos entre o corpus artístico e o corpus teórico do trabalho.

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ABSTRACT

"Becoming Ophelia and the Emergence of a Poetics of Dissolution," a practical-theoretical research, which condenses the creative rumors of a awakening process by Ophelia, Shakespeare's drowning character. Ophelia, who falls in a lake, the woman who transmutes herself into a river, who looses herself and sings, assures in this manuscript and in the practice that engenders it. A poetics that dissolves the habit of moderate thought, of domesticated communication, of the creative process ruled by rules and dictates that demarcate each area of creation. This poetic, which is called the poetics of dissolution, gradually emerges along the successive creations and especially during the creative process of the performance "Loucas do Riacho". It emerges from the intersection of "a poetic of water" and a "poetics of madness" and materializes in the creative bodies in qualities of flow, movement, abandonment, disruption, disorientation and vertigo. These qualities eventually dissolve the boundaries between theater, dance and performance, between art and life, between theory and practice, between visible and invisible, between conduction and disorientation, between movement and rest, between home and street, between silence, word and sound. The research develops through cartography and performative research, (against-)methodologies in which the links are composed between the artistic corpus and the theoretical corpus of work.

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SUMÁRIO

I. APROXIMAÇÃO...11

II. MINADOURO...16

III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO...33

1. CARTOGRAFAR UM RIO...33

2. ACEITAR O VAZIO...40

3. VERTER-SE EM PALAVRAS ...41

4. SUJEITO ESTILHAÇADO...46

5. TEMPO, TEMPO, TEMPO, TEMPO, ENTRO NUM ACORDO CONTIGO...50

6. COMO UM OBJETO NÃO IDENTIFICADO...51

7. PERMITIR O RIO...54

8. UM RIO CHAMADO OFÉLIA...55

9. UMA MULHER QUE SE DESMANCHA...58

10. O FANTASMA É UMA DOR QUE SE REPETE...64

11. ESTAR...66

12. DEIXAR SER...67

13. COMO EL MUSGUITO EN LA PIEDRA...70

14. HABITAÇÕES...74

15. EU NÃO SEI PARA ONDE VAMOS...77

16. MINHA BOCA ESTÁ REPLETA DE SARGAÇO...82

17. UM MAPA PARA SE PERDER...87

18. BUSCAR AFLUÊNCIAS...91

19. NÃO PRECISAMOS FAZER NADA...92

20. DEIXAR QUE AS ÁGUAS DO CORPO RESSUMEM...96

21. A PALAVRA QUE NEM CALA NEM DIZ...98

22. ALÉM DAS CORTINAS, SÃO PALCOS AZUIS...101

23. DEUS MANDA MOSCAS ÀS FERIDAS QUE DEVERIA CURAR...104

24. DEIXAR NASCER, DEIXAR MORRER...106

25. CACOS PARA UM VITRAL...107

26. SER O RIO...110

IV. ALAGAR...112

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I.

APROXIMAÇÃO

Ao reencontrar Ofélia, numa releitura de Hamlet, de William Shakespeare, no ano de 2011, sou tomada por um assombro. Sinto operar-se em mim uma mudança de perspectiva diante da qual a personagem afogada passa a animar o desejo incontornável de viver. No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma pulsão de morte, mas seu contrário. Ao lançar-se no rio, Ofélia convida a despojar-me das opacidades que mortificam o estar no mundo e a tirar dos ombros todo peso morto, para lançar-me na trágica experiência de renascer a cada ato. Revejo-me como aquela que vinha trilhando um percurso perfeitamente palatável e bem-educado e, por uma concatenação de fatos, aceita a trágica condição de se perder e deixa-se transbordar em vibrações alucinadas e atordoantes, lançando-se em deriva por um rio insondável.

Desse encontro com Ofélia e de seu impacto nas inquietações criativas que me movem enquanto artista, nasce esta pesquisa. As estimulações que a alavancam têm seu germe nas práticas do “Grupo Alvenaria de Teatro” (Salvador), o qual integrei até o ano de 2012, e ganham densidade ao longo da criação do “Projeto Ofélia”, título sob o qual reúno uma série de trabalhos criativos transpassados pela figura de Ofélia. No “Projeto Ofélia”, território de práticas desta pesquisa, estão “os músculos que acionam esta escrita” (FABIÃO, 2013, p 9). Ele abrange o espetáculo-solo “OFÉLIA: sete saltos para se afogar” (2015), o primeiro e o segundo “Estudos para Ofélia Blue” (2012 e 2014), as performances “Lavagem” (2017), “Cidade Afogada” e “Dobra” (2015), a escrita do livro “Manual de Afogamento” (2013-2017), uma série de fotografias e pequenos vídeos, além de outros desdobramentos pontuais. Abrange, em especial, o espetáculo “Loucas do Riacho”, criado ao longo deste curso de mestrado, a partir do qual surgem a maioria dos insights que movem este texto.

No pré-projeto desta dissertação, Ofélia aparece definida como meu objeto de estudo. Aos poucos, ela vai se dissolvendo desse lugar e acende em mim a potência de devir.

Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se

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transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 24)

Em devir Ofélia, vejo borrarem-se os contornos do ser-mulher, do ser-artista e do ser-acadêmica. Sentindo-me arrastar por ela, vou assumindo um modo fremente e precário de habitar a fronteira, de permear os liames arte-vida, corpo-gênero e dissertação-ensaio. Despenco no riacho e sou conduzida à vertigem da criação, ao transbordamento de sensações em formas estéticas, à diluição de hierarquias e normas hegemônicas e à irrupção de uma expressão que excede a linguagem habitualmente empregada. Esse devir desprograma os freios que me restringem a um modo pontual de ser, a um conjunto de qualidades mensurável, a um jeito inequívoco de apresentar-me e a um tempo cronometrável. Nesse trânsito, sinto o impulso em direção às potências múltiplas do ser.

...todo devir forma um "bloco", em outras palavras, o encontro ou a relação de dois termos heterogêneos que se "desterritorializam" mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a "faz fugir" (ZOURABICHVILI, 2004, p 24)

No lastro desse processo, há muito o que dizer e compartilhar, e há um apanhado de vestígios que convoca à composição de espaços transubjetivos, favoráveis à abundância dos modos de ser, fazer, conhecer e expressar. Desejo manifestar a escrita como um “estojo de possíveis” (PRECIOSA, 2010, p 53), como uma convocação para aproximações e expansão das vias através das quais afetar-nos mutuamente. Busco engates e chaves que engendrem novas aberturas, pelas quais possamos adentrar com diversas singularidades e banhar-nos nessas águas de contágio, nas quais a peste é a coragem renovada para encarar os desejos e as estratégias para sua expressão. Reúno peixes e cascalhos que disponho por entre meu traçado, organizando elementos que desorganizam a língua e permitem que as forças caóticas se destampem e se apresentem como modo sensível de partilha.

Trair a língua é forçá-la a compassar com a palpitação do corpo que escreve. Inseminar tal euforia que a faça entortar, que a deixe fanha, gaga. Que se desmanchem seus inteligíveis sintagmas para se ficar

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colado às palavras que mais se ama. Um corpo que não só trai, mas rouba, aspirador de idéias que estão por toda a parte. Fino misturador que concentra seus resíduos prediletos e os devolve sob a forma anônima e desgarrada de pensar. A figuração da intensidade aérea de uma idéia. (PRECIOSA, 2010, p 14)

Ao longo desta pesquisa, desenvolvo uma poética que intitulo de “poética da dissolução”, tecida na encruzilhada de uma “poética da água”, com o seu potencial de infiltração, transbordamento, apagamento e fluxo, e uma “poética da loucura”, com o seu viés disruptivo, dispersivo, marginal e informe. A proposta de uma “poética da dissolução” surge assim na vereda de uma terceira margem, onde o rio é o próprio delírio. 1

Há, na produção deste caminho, a opção pelo trabalho de dissolução dos limites que contém a criação e por uma quebra de barragens epistemológicas. Dou espaço ao extravasamento de paradigmas criativos, num modo não-obediente, desatento aos “nãos” impostos pelos cânones e disponível a experimentar, na afirmação da multiplicidade da vida, trajetos instáveis de criação. Passeio pelos entre-lugares, pelos estados que, não pertencendo nem a um território delimitado nem a outro, são operados enquanto trânsito contínuo.

DIS SOLUÇÃO

Para o que não tem remédio2

Na estrutura deste trabalho, começo refazendo o percurso criativo do “Projeto Ofélia”, evocando as memórias, registros, escritos, vídeos e parcerias que compõem sua tessitura. Este primeiro movimento – de ordem mais descritiva – está registrado na seção inicial intitulada “Minadouro”. Em seguida, desenvolvo o conteúdo num grande “enlace” em que duas operações se interpenetram A primeira, “dissolver o plano”, refere-se ao tracejado de fugas e desvios da pesquisa e das metodologias e conceitos que a animam. Tais conceitos comportam, eles próprios, a qualidade de transbordamento que os impede de se restringirem a uma forma específica ou a um plano definitivo estabelecidos a priori. Entre estas metodologias e conceitos estão a “cartografia”, de

1 Referência ao conto “Terceira margem”, de Guimarães Rosa, publicado no livro “Primeiras histórias”

(ROSA, Guimarães. Primeiras Histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988)

2

Poema do livro “Manual de Afogamento” ainda por ser publicado, de autoria desta autora, que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

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acordo com os trabalhos desenvolvidos por Gilles Deleuze, Félix Guattarri, Sueli Rolnik, Virgínia Kastrup e Rosane Preciosa; a “pesquisa performativa”, segundo Brad Haseman; a “poética da água”, segundo Gastón Bachelard; o “programa performativo”, segundo Eleonora Fabião; e o “plano fantasma”, segundo André Lepecki. Já operação complementar, “dissolver o ato”, exprime o conjunto de rumores que brotam da prática, numa espécie de diário performativo dos encontros de criação. Esse procedimento abrange uma experimentação de tradução dos fluxos do ato cênico em texto e teoria. Apresento aí também registros de anotações e conversas com as atrizes e com a equipe de criação do espetáculo “Loucas do Riacho”; trechos de entrevistas com pessoas que assistiram ao espetáculo e que estiveram próximas do projeto; e trechos de textos escritos espontaneamente pelo público a partir de suas percepções do espetáculo. Em meio a isso, teço algumas sessões compostas como espécies de hiatos em que o texto abre um espaço de conexão entre o corpo-que-se-escreve e o corpo-que-se-lê. Estas sessões seguem o mantra criativo de “Loucas do Riacho” – “aceitar o vazio”, “estar”, “deixar que as águas do corpo ressumem”, “buscar afluências”, “permitir o rio”, “ser o rio”, “alagar” (este último servindo como espaço de conclusão). Durante todo o enlace, há uma série de ecos de conversas com amigos, parceiros e provocadores diversos, que aparecem diluídos em minha voz ou destacados em pequenos fragmentos transcritos.

Há também, ao longo de todo o texto, um grande apanhado de versos de poetas que, em qualquer tempo, ensinam-me novas coisas sobre criar, viver e aprender. Repito algumas explicações em notas de rodapé, a fim de que os leitores que, como eu, saltam pelos atos de cada enlace, numa leitura descontínua, possam capturar melhor as referências de cada um. Desejo que a leitura deste texto seja capaz de refrescar algum desejo. E que as palavras sejam carpas que façam destas páginas um grande rio.

Criar: é disso que trata este encontro com Ofélia. O riacho em que Ofélia se dilui corre e me atravessa numa dança de avanço e abandono. Mas ele não transcorre num espaço puramente movediço e insondável. O rio, em seu trajeto de intensidades, correntezas e substâncias, marca as linhas deste mapa, apontando justamente para modos fluidos de produzir-nos. E forma pequenas ilhas nas quais é possível parar um pouco, contemplar a paisagem e sentir a firmeza das intenções desta jornada.

Palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele.

Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.

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Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de enxergar no olho de uma garça os perfumes do

sol.3

3

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II.

MINADOURO

Ofélia transborda meu desamparo ao mesmo tempo em que diz, “você, em seu tempo, pode fazer disso uma obra”. Assim nasce o “Projeto Ofélia”, em 2011, com ações que se desdobram até hoje (2017). Começo mapeando essas ações tentando recuperar as dúvidas, disposições e limitações que me guiam em cada etapa, e evocando os parceiros de cada momento. O “Projeto Ofélia” compõe um percurso que, de modo assíduo e, muitas vezes, acidentado, vai rasurando as possibilidades de formato bem-acabado até diluir-se numa cena de fluxos de devir.

Em 2011, Ofélia me inspira a construção de um drama autoral, inicialmente instigado pela complexidade da comunicação estabelecida nas relações amorosas. Passo ali a imaginar desdobramentos dos diálogos entre Ofélia e Hamlet, compreendendo-os como modelo arquetípico dos desníveis que se repetem no embate de forças de uma relação em crise. Arrisco alguma coisa escrita.

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Figura 1. Excertos do livreto “Sete saltos para se afogar”. (BOMFIM, 2017)4

Escolho Ofélia, associada ao poema “A fogueira onde arde uma”, de Júlio Cortázar5, como força propulsora de minha criação no experimento cênico “Fogueira”, do “Grupo Alvenaria de Teatro”, que tem sua estreia ainda no final de 2011. “Fogueira” traz uma dramaturgia criada em cena, numa experimentação de sonoridades, danças e verborragias improvisadas com base na ideia de um encontro feminino para a construção de um ritual heterodoxo de cura, prazer e celebração. Durante as apresentações, a sensação de sufocamento e perda, e o desejo de transmutação das memórias conduzem as falas que lanço na roda e confere o tônus aos movimentos que desfraldo.

Simultaneamente, a profusão das imagens de Ofélia produzidas ao longo da História me remete à experimentação plástica, que tangencio através de autorretratos.

4 Imagens da publicação do texto pela editora carioca Pipoca Press, na coleção Puxad_nho. O lançamento

em Salvador acontece durante o III Festival de Ilustração e Literatura da Bahia, em maio de 2017. O texto, escrito em 2011, é usado em uma das cenas de “Ofélia: sete saltos para se afogar” até este ano, 2017, quando a cena a que pertencia se transforma e deixa de ter fala.

5 CORTÁZAR, Júlio. A Volta ao Dia Em 80 Mundos - Tomo II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

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Vou buscando o reflexo do eu-Ofélia, borrando minha própria face, deitando um véu sobre a obviedade de meus traços para, por ventura, vê-la insurgir entre meus lapsos.

Figura 2. Autorretrato, Salvador. Raiça Bomfim, 2011.

Em 2012, encontro Vânia Medeiros, artista visual e parceira na produção de livros. 6 Conto-lhe que vi uma dupla de baleias desde a praia do Buracão (Salvador, Bahia), justamente quando pensava sobre a comunicação vibracional das baleias, capaz de atravessar oceanos. Vânia traz a frase de Manuel de Barros, “o chão reproduz o mar”, e começamos o “Boca Baleia”, que depois vira “Caderno Baleia”, e tem como proposta unir palavra e imagem para colher insurgências pela cidade. Ofélia torna-se presente ao desafogar-se numa boca de lobo que reflui ou num pouco de capim que perfura os cantos da calçada, desfazendo os planos de contenção.

6

Eu e Vânia publicamos três livros juntas – “10Pontes”, “O que é uma casa?” e “12Lâminas”, ela na ilustração e diagramação, eu na escrita textual.

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Figura 3. Colagem para o “Caderno Baleia”. Vânia Medeiros, 2012.

Nesse mesmo ano, apresento o primeiro estudo cênico inspirado em Ofélia. Busco, com Ofélia, dançar as palavras, paisagens e pessoas que vão se perdendo e surgindo no tempo. Penso num rio noturno e néon, assombrado por divas do blues afogadas em bares e madrugadas. Encontro o disco do cantor e compositor Jards Macalé, “Aprender a nadar”7

, e me ponho a ouvir aquela voz nasalada e submersa, aquele modo de cantar que se desenrola como uma conversa ou como um pranto incontido e rouco, zombando de si. Subo no palco com um vestido azul royal improvisando danças e sonoridades junto a Felipe André Florentino, pianista e performer, além de pesquisador das relações entre música e movimento. A certa altura da cena, decido “aprender a nadar” e coloco óculos, maiô e touca, fazendo uma coreografia pitoresca entre um remelexo e gestos de natação. Desejo a superfície, a pele das coisas, o modo frugal de estar junto. Divirto-me assim, deixando-me ser ridícula e criança. Nomeio meu ser-Ofélia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar”. Vânia Medeiros também está presente e projeta no palco a imagem em movimento de uma calçada de pedras portuguesas com seus traçados ondulados, parecendo ondas.

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Figura 4. Fotografia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar – Primeiro Estudo”, Teatro Gamboa Nova, Salvador. Priscila Fulô, 2011.

Passados poucos meses, Salvador, onde então resido, parece abrir uma bocarra sobre mim. Sinto a força asfixiante de sua conjunção de umidade, trânsito, escombro e miséria. Temo afogar-me no asfalto e entendo que é hora de chafurdar o corpo na rua, extravasar a cena pelos trânsitos urbanos. Participando do movimento artístico “Empuxo: zona de encontro de artes cênicas”, decido sair caminhando, de vestido azul e flores, pelo Largo Dois de Julho (região central e histórica da cidade de Salvador). Meu propósito é olhar para as pessoas longamente, reinventando as normas da intimidade, cultivando, no lugar da indiferença, diálogos em línguas imaginadas.

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Figura 5. Fotografia da experimentação cênica em “Empuxo: zona de encontro de artes cênicas”, Largo Dois de Julho, Salvador. Fábio Tavares, 2012.

Em 2013, morando em São Paulo, retorno a Salvador para participar de uma residência artística8, conduzida pelo filósofo da educação Jorge Larrosa. Ele propõe a leitura de uma carta fictícia escrita por Hugo von Hofmannsthal, no início do século XX, na qual um Lord do século XVII discorre sobre seu angustiante processo de estranhamento da própria língua, uma espécie de afasia que se desenvolve não por uma lesão cerebral, mas por uma moléstia que ataca o espírito9. A residência desperta novos sentidos para a experimentação com Ofélia, assim como desperta a sensação frequente de que as palavras que arremeto vão se diluindo até virarem água, poeira, coisa nenhuma, já não é mais abjeta e necessária de superação. Passo a encarar esse processo como um modo perfeitamente possível e particular de expressão: o de deixar que as palavras jorrem, estanquem, soem ou se despedacem ao ritmo daquilo que as anima ou aniquila. No dia da apresentação de minha proposta, projeto na parede a imagem de um

8 A residência foi articulada dentro da programação do “IC 7”, festival produzido pela Dimenti

Produções, naquele ano, em Salvador, e contava com a participação de mais 13 artistas.

9 Segundo o médico, cientista e escritor brasileiro Antônio Drauzio Varella: “Os quadros de afasia

instalam-se abruptamente, como consequência de lesões no cérebro provocadas por traumas ou acidentes vasculares cerebrais (AVC), popularmente conhecidos como derrames cerebrais. De uma hora para outra, o afásico perde a capacidade de compreender ou formular a linguagem. Deixa de falar e de entender o que dizem as pessoas ao redor. É como se estivesse ouvindo uma língua estrangeira, desconhecida.” Excerto de entrevista conferida à fonoaudióloga Fernanda Papaterra Limongi, publicada em seu blog. Disponível em: <https://drauziovarella.com.br/entrevistas-2/11410/>. Acesso em 22 out. 2017.

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peixe beta que vive num aquário na casa de meu pai. Diante da projeção, vou dançando e cantando os fluxos que sinto atravessarem a sala.

a linguagem na qual eu seria capaz não só de escrever, mas também de pensar, não é nem o latina, nem o inglês, nem o italiano, nem espanhol, mas uma linguagem na qual as coisas mudas por vezes falam para mim e na qual, e talvez só no túmulo, tenha de justificar-me diante de um juiz desconhecido. (HOFMANNSTHAL, 2010, p.11)

Alguns meses depois, viajo a Buenos Aires para encontrar o diretor teatral e parceiro de criações Daniel Guerra. Convido-o para levar a câmera em nosso passeio pela cidade, pois pretendo dançar Ofélia em alguma parte daquele trajeto. Enquanto atravessamos um parque, reencontro a afogada numa poça d’água e aquele reflexo borrado, com seus atavismos de água - estas que rondam tantos tempos do mundo, em seu eterno paradoxo de limpidez e turvação -, destila em mim um movimento a que ofereço corpo e passagem. Guerra, que está começando a experimentar a criação em vídeo, liga a câmera e filmamos o “Celacanto Ofélia”.10

Em seguida, contagiada pelas experimentações fotográficas do dançarino e fotógrafo Ditto Leite, convido-o para que, junto, re-convoquemos o fantasma Ofélia. Experimentando a nudez associada a um conjunto de tecidos azuis, discorro movimentos pelos cômodos da casa. Nomeamos o ensaio fotográfico de “Ofélia vem”.

Figura 6. Ensaio fotográfico “Ofélia vem”, São Paulo. Ditto Leite, 2013.

10 Vídeo livremente realizado e produzido por Daniel Guerra e Raiça Bomfim, em Buenos Aires, em

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Ainda em 2013, ao ouvir um relato de afogamento do artista plástico mexicano Omar Barquet, resolvo escrever um novo livro, em que Ofélia já nem aparece enquanto nome, mas apenas enquanto ato: o de se afogar repetidamente. Começo a juntar notícias de afogamento, trechos de livros que falam de afogados e informações técnicas sobre procedimentos de salvamento, dentre as quais encontro descrições que são um verdadeiro poema:

“2ª Fase de apneia – Existe um cerrar violento da boca e do nariz. (...) Tendem a surgir sensações subjectivas como vertigens, zumbidos e sensação de angústia. A vítima procura desesperadamente mover-se para se manter à superfície”; “4ª Fase de convulções asfícticas – ocorre a inundação dos pulmões. (...) Simultaneamente ocorre a perda de consciência e a imersão total do corpo, num estado de total relaxamento”; “5ª Fase terminal – a boca abre-se e o corpo assume uma posição próxima da fetal. A morte surge pouco tempo depois”.11

Aproximo-me então do artista visual e performer Lucas Moreira, com o qual desenvolvo uma parceria para o livro e, juntos, exploramos uma escrita aliada a experimentações gráficas, sonoras e espaciais, abrindo o papel para que os gestos deixem rastros. Delirando grafias, plasticidades, texturas, figuras, sobreposições, apagamentos e borrões, vai sendo tramado o “Manual de Afogamento”.

11

Excertos extraídos da página eletrônica “Abcdesporto”

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Figura 7. Imagem do livro “Manual de Afogamento”.12

No começo de 2014, tramo um segundo estudo cênico em que misturo um pouco da narrativa de Ofélia em Hamlet, a história de meu encontro com a personagem e os rasgos de dança, canto e sonho que ressaem nos devires alimentados nesse encontro. Faço uma primeira temporada no Teatro Gamboa Nova, em Salvador, e, a partir das apresentações em casas da comunidade da Pavuna no Rio de Janeiro,13 entendo que sua potência está justamente no deslocamento para o ambiente familiar, para as salas de casas espalhadas por cidades diversas. Descubro que esta cena tem uma qualidade de mediação, como uma conversa sobre desejos e sonhos, e sobre o que é ou pode ser o teatro. Arrumando no cômodo mais amplo de cada casa meu pequeno par de refletores, e tendo acompanhamento do músico André Oliveira na operação sonora, conto e deliro uma história autoficcional e canto, e danço, e desejo encontrar novos cúmplices de naufrágio.

12 Parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do

“Projeto Ofélia”.

13 Através da participação no Festival Home Theatre 2014, no qual o trabalho é premiado como melhor

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Figura 8. Fotografia da apresentação do “Segundo estudo para Ofélia Blue”, São Paulo. Ditto Leite, 2014.

Nesse trajeto, sempre que Ofélia aparece muito nítida, passível de esgotar-se numa narrativa concisa, numa explicação pragmática, é hora de permitir que o olhar se abandone nela, que os olhos se fechem e vagueiem no sonho. “Verá se tiver visões. Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem depois como prova de seus devaneios” (BACHELARD, 2013, p. 18). Desse modo, terminada a primeira temporada desse segundo estudo, saímos, eu e o fotógrafo Ditto Leite, em meio ao tráfego do Minhocão (viaduto atualmente denominado Elevado Presidente João Goulart), em São Paulo. Quero manchar o asfalto de azul, abrir um poço por onde os canos do silêncio estourem as buzinas. Passeio com meus tecidos, cheios de transparência e tons de azuis, jogando músculos e panos no vento que bafeja sobre o viaduto.

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Figura 9. Ensaio fotográfico “Sereia do asfalto”, São Paulo. Ditto Leite, 2014.

Em 2015, desejo investir na pesquisa sobre uma “poética da loucura” e dedicar-me mais assiduadedicar-mente às experidedicar-mentações vocais. Preciso tentar saltar no vazio do tempo, na memória das baleias, no grito dos musgos rompendo das pedras. Crio um espetáculo solo junto a Erick Saboya, na cenografia, a André Oliveira, na direção musical, a Felipe Benevides, na preparação corporal e a Ana Antar, na iluminação. Construo a dramaturgia desse solo em níveis de submersão: a peça começa a partir do ponto em que Ofélia é arrastada para dentro das águas e tudo o que transcorre são movimentos debaixo d’água. Ofélia aparece em sua solidão, acompanhada pela presença fantasmagórica do público, junto ao qual atravessa densidades diversas. A loucura, a sensação de morte e de perda estão presentes em cena, mas não numa ordem causal. Nomeio o espetáculo de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”.

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Figura 10. Fotografia de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”, Espaço Xisto Bahia, Salvador. Carol Garcia, 2015.

Careço de voltar à rua. Ao fazê-lo, vejo a cidade, toda ela, como uma imensa Ofélia afogando-se em si mesma. Cada deslocamento parece uma nova expressão da fala desencontrada da afogada e cada avenida ou viela parece um dos veios pelo qual flui o rio que a engole. Começo a criar, novamente junto com o músico parceiro André

Oliveira, a performance “Cidade Afogada”. Nela, uso dois pequenos bancos de sentar, cada um provido de um microfone e de um fone de ouvido, e sento-me à espera de que algum transeunte também resolva sentar-se no banco à frente para que submerjamos juntos numa conversa-abraço, entre a balbúrdia dos carburadores. André Oliveira captura estes sons e mescla-os com outras sonoridades pré-gravadas, reenviando para nós, através dos fones de ouvido, aqueles estímulos.14

14 O registro audiovisual da perfomance “Cidade Afogada” está disponível em:

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Figura 11. Fotografia de “Cidade Afogada”, Cajazeiras, Salvador. Aldren Lincoln, 2016.15

Quando as palavras do “Manual de Afogamento” vão se proliferando em poemas e prosas, passam a despertar-me vozes e sons diversos. Volto a ser a cantora afogada, uma cantora que canta a própria fala enquanto cede aos abismos que co-habitam em sua casa. Eu e André Oliveira tramamos então uma nova performance intitulada “Dobra”, explorando diferentes relações entre palavra, sonoridade e corpo, partindo da leitura dos textos do livro.16

15 Projeto “Silêncio embaixo d’água”, realização e produção da “Gameleira Artes Integradas”. Território

de articulações artísticas coordenado por esta autora e por Olga Lamas – realizado em janeiro de 2016, através de edital de patrocínio da Fundação Gregório de Matos - Prefeitura de Salvador

16 O registro audiovisual da perfomance “Dobra” está disponível em:

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Figura 12. Fotografia de “Dobra”, realizada no projeto Dominicaos, Salvador. Victor Gargiulo, 2016. Durante minha gravidez, parto e puerpério, em 2015-2016, começo a criação do espetáculo “Loucas do Riacho”, como espaço para desaguar e transfigurar todo esse percurso de criações do “Projeto Ofélia” e relacionar mais expressivamente o que vislumbro como uma “poética da dissolução”. Compreendo que é hora de Ofélia pairar sem nome, como uma força cuja linguagem transborda em loucura e cuja matéria se dilui nas águas. Convido as atrizes/performers Camilla Sarno, Felipe Benevides, Laís Machado17, Liz Novais, Mônica Santana, Olga Lamas e Uerla Cardoso para construírem o trabalho comigo e a equipe de criação que vai sendo composta, passa a contar com Fábio Pinheiro, na cenografia e figurinos; Márcio Nonato, na iluminação; André Oliveira, na sonoplastia; Mariana David, na fotografia; Lucas Moreira nas composições gráficas; e Daniel Guerra nas filmagens.18 Em cena, somos sete corpos nus, com os rostos cobertos por uma cabeça de sargaços, que habitam a Casa de Castro Alves, espaço cultural no Centro Histórico de Salvador, enquanto o público se espalha por entre nós. Começando ao entardecer e tendo uma duração variável, entre uma hora e meia e três horas, o que fazemos é animar as possibilidades de escuta e a experimentação de uma nova relação com o tempo.

17

Laís terá que se afastar durante o processo criativo, bem no momento em que Camilla, que meses antes também havia tido que se afastar, retorna.

18

O registro audiovisual do espetáculo “Loucas do Riacho”, que estava disponível no plataforma

Youtube, foi bloqueado por algum motivo. Uma vez resolvido o problema, ele poderá voltar a ser

acessado em <https://www.youtube.com/watch?v=BYdL07aShyg&feature=youtu.be>. Acesso em 04 nov. 2017.

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Figura 13. Fotografia de “Loucas do Riacho”. Na foto, a atriz/performer Mônica Santana, Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Em 2017, durante o processo criativo do espetáculo “Loucas do Riacho”, imagino um coro de mulheres andando pelas ruas da cidade, derramando movimentos e águas para lavar a memória que impregna os asfaltos e revigorar a que neles soçobra. Convido a produtora e atriz Olga Lamas para propormos uma ação juntas e surge o que intitulamos de oficina-ação “Lavagem”, anunciada como sendo um processo sensível-político, que trabalha a transfiguração das violências diversas sofridas por mulheres.19 Na metodologia da oficina, unimos a minha pesquisa sobre Ofélia e sobre uma “poética da dissolução” e a pesquisa de Lamas sobre o silêncio, admitindo a ideia do silêncio como ato de dissolver o discurso instituído e alavancar o movimento em fluxo. A oficina culmina numa procissão-performance, com uma pequena multidão de mulheres dançando-movendo desejos e fantasmas pelas ruas do Rio Vermelho (Salvador, Bahia), no dia dois de fevereiro, Dia de Yemanjá.20

19 A participação na oficina-ação “Lavagem” aconteceu mediante inscrição gratuita, através de

convocatória destinada a 40 participantes maiores de 18 anos, com ou sem experiência artística. Como a procura foi alta, terminamos por selecionar 55 mulheres para participarem. A oficina dura seis dias e culmina com a performance coletiva no “dois de fevereiro”.

20 O registro audiovisual da perfomance “Lavagem” está disponível em: <https://vimeo.com/203467590>.

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III.

DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O

PLANO

Figura 15. Colagem para o programa de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2017.

Uma mulher abre a boca e mostra a língua coberta por sargaços. Veste-se de musgos e flores, chafurda no funeral dos sentidos. Está completamente perdida e faz disso sua melhor saída. Abraça a desorientação, a perda, o desamparo e desliza pelas sendas do instante. Pinga suas marcas no caminho traçando um mapa úmido e volátil. Celebra a fugacidade das fórmulas e murmura que é possível parar um pouco, subir num salgueiro, despencar num riacho, deixar-se afundar cantando, morrer as mortes cotidianas, despojar-se de cansaços e embaraços, renascer. Encharca os vestidos de quem a cerca, move barbatanas no abismo, convida a saltar no vazio.

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Figura 16. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

As marcas desta pesquisa - sua dicção, seu jeito de corpo, seu temperamento - nascem de fracassos consecutivos. São matérias soterradas que emergem no interior de meus desabamentos, no movimento de afirmar a vida por entre escombros.

Ofélia é o território movediço no qual derramo questões, pulsões, proposições, práticas, textos e desejos. Quanto mais percorro a louca afogada, mais ela respinga suas águas em minhas propostas e borra qualquer possibilidade de apreendê-la numa sistemática qualquer.

No pré-projeto desta dissertação, eu anuncio uma pesquisa cartográfica - que, todavia, só aos poucos vai tomando corpo e sentido. Não há como cartografar sem antes ser arrastado pelo vórtice gerado no derribamento de nossos territórios mais habilmente cultivados. Inúmeras vezes, refugo e acabo persistindo num modo formatado, conduzido, respaldado e indiferente ao fulgor da vida, ainda que celebrado nos recantos mornos da apreciação comedida. São muitos os elementos à nossa volta que repetem padrões contrários à experiência e aliam uma necessidade excessiva de ter uma “opinião formada” à ilusão da informação, achatando o pensamento num processo que mecaniza a expressão ao submeter a subjetividade à produtividade. Mas minha falta de traquejo com a construção de edificações estáveis e bem-aceitas, invariavelmente lança-me para as corredeiras da dúvida e da tentativa.

Descubro, em minha inabilidade para a constituição de uma estrada de estudo exemplarmente pavimentada, o talento para manter-me à deriva, deixando-me afogar frequentemente e sentindo meus pulmões reaprenderem a respirar sob o céu aberto.

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Destituo o pensar moldado a protocolos habilmente repetidos, para saudar fugas, desacertos e ruídos.

Construo este trajeto ao passo em que o percorro - atenta à movimentação viva das várzeas - e o olhar que abro para Ofélia deixa-me mover pelos sonhos, alumbramentos e alucinações que ela engendra. É um olhar-devir, que salta na imagem da louca afogada e canta o que vai vendo neste espaço entre superfície e fundo.

Já de saída, libero-me, com Ofélia, de sua responsabilidade exacerbada enquanto personagem composta numa das maiores obras clássicas da dramaturgia universal - o “Hamlet”, de Shakespeare. As águas de Ofélia exaltam meus fluidos e transbordam-me para novas zonas de existência e expressão. O texto de Shakespeare serve-me de motor de ideias, imagens e sentidos, e retorno a ele sempre que preciso encontrar novos rastros ou me reconectar com alguns princípios, sem travar uma investigação sobre o que está encoberto pelo texto, ou o que é verdadeiro e o que é falso nas leituras que se desenvolvem. Invoco os princípios antropofágicos, cujos ecos, já incorporados nos preceitos de um cartógrafo, estimulam uma relação apaixonada e de transformação constante.

Ela [a antropofagia] se caracteriza pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura por incorporar novos universos, a liberdade de hibridação, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias. (ROLNIK, 2014, p 19)

Aceito a dissolução das intenções de enquadrar, delimitar, direcionar e não resvalo na pretensão de que a escrita assimile mecanismos pelos quais a criação configure métodos reproduzíveis. O que proponho, em contrapartida, é uma deambulação por zonas instáveis, por onde soam murmúrios visionários, soterrados pelos bons modos, pelo bom-gosto, pelo pavor de encarar as turbulências da criação e da vida.

Enquanto me sinto incapaz de ocupar os espaços que requisitam de mim ideias muito assertivas, teorias bem acabadas, etapas e assuntos bem compartimentados, Ofélia se mistura à minha voz para dizer, “vamos juntas, sem nunca saber onde vamos parar”. O “não-saber” torna-se, com ela, um modo de “ir sabendo”, aprendendo e, ao mesmo tempo, ir desaprendendo, num espécie de saber que se constitui com modelagens dinâmicas.

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Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. (LISPECTOR, 1984, p 253-4)

O pressuposto de um “saber-fazer”, resultante da pretensão de um domínio das ferramentas que autorizam cada fazer, dá lugar a um “saber da experiência” (LARROSA, 2002), um tipo de aprendizado em que o que é dado não se apreende, mas se opera em nosso organismo e provoca mutações: aquilo que conhecemos é agora parte de nós e fala sobre nós. A experiência pode ser vista como o modo do mundo ser em nós e mover-nos, o que depende de atravessamentos e que não tem necessariamente a ver com acúmulos de informações, dados, temas e vocabulários.

Esse tipo de saber, o “saber da experiência”, ativa a atenção às movimentações do mundo, a escuta das vozes circundantes e a disponibilidade para rever as ideias. É um saber que acontece no mesmo espaço de vazios, riscos e dúvidas onde se dá o encontro com o outro – material ou virtual – e onde se opera a transformação de um ser presente em outro ser presente, formado por novos acontecimentos, poderes, faltas, apetites, fragilidades e desvarios.

A Ofélia comportada, dócil e obediente do início da trama do clássico de Shakespeare fustiga-me contra toda aceitação passiva e inquestionada diante de regras, modos, conceitos, métodos e leis normatizadas em seus campos específicos. Sua loucura, despontada após a perda do pai e o afastamento intempestivo de seu amante, Hamlet, deflagra aqui uma voz profunda que só encontra vias de expressão a partir dos ocos abertos pelo desamparo, pela perda e pelo apagamento de referenciais rígidos e engessados.

A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido –e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 2014, p 23)

Ao propor-me despir das normatizações, duvido da maioria das validações possíveis, vivendo amplamente o desafio de não me conformar a uma escrita

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pré-formatada, rígida, conservadora, nem admitir soçobrar no clichê e na mesmice tantas vezes acobertados sob a aba do contemporâneo. O que as emanações da contemporaneidade nas artes me oferecem de mais precioso é, ao contrário, a cumplicidade no cultivo de olhares e parâmetros fluidos, que se reinventam a cada novo movimento experimentado no processo de criação. O valor da obra não é dado por seu alinhamento a arranjos mais ou menos “em voga”, mas pelos efeitos que produz nos corpos movidos em seu fluxo. O que exige um rigor renovado, que se constitui enquanto compromisso com os propósitos éticos e políticos da pesquisa, que só se efetiva através de ações assiduamente trabalhadas – de modo prático e/ou sensível -, o que exige fôlego para questionamentos, falências e reelaborações constantes.

Conectar-se às forças caóticas da vida, que contagiam o pensamento, exige coragem de se libertar de um modelo profissional de seu exercício. Um modo de conhecimento escoltado por um saber formal, capaz de articular discursos competentes e desonestos do ponto de vista existencial. Varrem-se as incertezas, isolam-se as idéias estranhas, inclassificáveis, evita-se qualquer sensação de desamparo. Enxota-se a vida para o outro lado da calçada, procurando neutralizar os percalços que significa viver. Faz-se de tudo para não desalinhar o cotidiano. Encarna-se um tipo de subjetividade de prontidão, incapaz de aderir ao risco que é estar vivo e pensar. (PRECIOSA,2010, p 28)

Cartografando um rio, percorro um território inconstante, encarando o pavor, a vertigem e a agonia. Lidando com a iminência de fracassar outra e mais uma vez, aventuro-me em zonas volúveis entre as quais sou impedida, pelo meu próprio traçado, de fixar ou exaurir o desejo numa análise ou tradução quaisquer. Salto no rio-Ofélia, percorrendo sua qualidade imanente de permanecer em estado de passagem e fluxo. Fluir e não recusar nada das paisagens que este rio toca e corta é a missão que assumo, não sem hesitações, temores e alguns recalques acidentais, e, sim, com a decisão de desembaraçar-me, quantas vezes for preciso, do vício do lugar seguro e estacionário. Opto por aceitar o não-controle sobre os enredos que vão se tramando, alargando ao máximo o campo de explosão das vicissitudes de cada matéria. Sinto o chão que escorre por debaixo do corpo sem que os pés possam jamais paralisar.

Tomo como bússola da pesquisa a vivacidade, a potência e a vibratilidade21 do que se apreende, se agencia, se encontra e se despeja no caminho. Experimento, pois,

21 Alusão ao conceito de corpo vibrátil, de Suely Rolnik. Segundo a autora, o corpo vibrátil é a

capacidade que “nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. (...) com ela, o outro é uma presença viva feita

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fazendo pontes imaginárias entre paradoxos, mudando diversas vezes de traçado, deixando-me tomar pela perplexidade de esbarrar-me com vias sem saída e portas batidas com a chave dentro. Trilho um campo de deslizamento contra-metodológico22, pelo qual, não sabendo onde vou chegar, esqueço de me preocupar com direcionamentos e finalidades. A viagem é o próprio destino, é na deriva pelo fazer criativo que se constrói uma obra viva, a qual não termina de se criar, e que, de modo mais sutil ou mais intenso, se dissolve e se transmuta em outra obra.

Tenho que arriscar modos de efetuar paulatinamente as intensidades que me rondam. Abro meu caderno de criação tateando intensidades: tudo que faz vibrar o corpo e sua capacidade de pensar (-se) interessa para a criação desta cena, deste ato, deste texto.

(...) o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência; não tem o menor racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. (ROLNIK, 2014, p 65)

Encaro ao mesmo tempo a diversidade de inspirações e a falta de referências modelares para materializar cada um dos impulsos criativos que me rondam. O que há é um conjunto de referências desconjuntadas, que encaram a efemeridade do teatro e da vida bailando incessantes nascimentos e mortes, e rascunhando ideias que se permitem desabar antes do acabamento final. Sei que estou tomada pelo sentido de buscar e que esta busca preserva a honestidade em assumir a falta de talento e disposição para dominar diretrizes e procedimentos consagrados, permitindo-me guiar por pistas vagabundas, por rumores de um corpo trêmulo que adoece, cura, retrai, expande.

(...) Havemos de gritar em coro com o náufrago com a voz ensopada

de estrondo e ruína: Catástrofes! Planos por água abaixo,

de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos” (ROLNIK, 2016, p 3)

22

Termo que se conecta com as propostas de Paul Feyerabend, em seu livro “Contra o método” (FEYERABEND, 1989).

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notas e sabedorias tomadas por algas, bolachas, peixes palhaços. Com a boca encharcada de outras palavras

que nem sabemos o que significam vertemos a língua no espaço. Mesclamos nossa voz à das águas

fazendo soar a palavra de onde nascem

as ilhas... (sob as quais, - saravá, afe maria – a paixão não é vício;

absolvição).23

Conclamo assim as pequenas tragédias rotineiras e encontro tesouros por entre a carcaça das navegações em que afundo. Escrevo para, ao invés de neutralizar ou pacificar minhas marcas, assumi-las como o canal pelo qual Ofélia regurgita e reencarna renitentemente em matérias que não cansam de se ofertar à transfiguração.

(...) a marca conserva vivo seu potencial de proliferação, como uma espécie de ovo que pode sempre engendrar outros devires: um ovo de linhas de tempo. E assim vamos nos criando, engendrados por pontos de vista que não são nossos enquanto sujeitos, mas das marcas, daquilo em nós que se produz nas incessantes conexões que vamos fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua existência. (ROLNIK, 1993, p. 242)

Repetidamente, na passagem pelos territórios aqui ponteados, estarei só e, ao mesmo tempo, repleta de comparsas, o que é uma grande sorte. Pratico esta jornada em bandos que se fazem e refazem, e expando minha solidão por entre cumplicidades, que se permitem ao abandono, sem se negligenciar. Conto com interlocuções diversas nesta pesquisa e minha voz, aqui expressa, é fruto do encontro e contaminação de muitos timbres e sotaques. Assim, dou-lhes as mãos nesta navegação de localidades multidimensionais. Podemos estar, a um só tempo, à beira do rio, dentro do rio, sendo o

23 Trecho do poema “Náufrago”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta

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rio. E é na profunda implicação em cada aspecto desse nosso estar que é tecida esta cartografia.

2. Aceitar o vazio

Figura 17. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Felipe Benevides e eu, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada, do nada simplesmente temos que partir (Antônio Cícero/João Bosco/Waly Salomão)24

Há um espaço em branco que precisa ser preenchido com texto e conceito; um lugar em silêncio esperando por um gesto amplo, uma voz retumbante, uma história; leitores e platéia atentos. Todavia, o que tenho a oferecer é nada. Nada, este acontecimento; nada, o meu olhar; nada, os pés descalços; nada, muitas marcas; nada, um par de sonhos; nada, este trajeto; nada, um som distante; nada, a experiência; nada. Nada, nada, nada, repito, e me remeto ao ato contínuo: permaneço em movimento nas águas de um rio. Estou sempre afogada e, no entanto, tempos descontínuos cohabitam em mim: não paro de cantar, ainda louca e acordada, deslizando pela flor da superfície.

Ao perceber o tamanho das expectativas que este encontro gera – com o texto dissertativo ou com o teatro - ameaço uma terrível contrição. Talvez eu devesse ter preparado alguma certeza que me colocasse a salvo desta flutuação perigosa diante dos olhares e desejos alheios. “Alheios ou meus?”, surge a dúvida.

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Respiro. Relembro as falas de um mestre de butô com quem fiz uma breve oficina25 cujos ecos permanecem vibrantes. É preciso dançar o corpo que se é e se este corpo está perdido, está cansado ou está doente, essas condições fazem parte de sua dança.

Respiro mais um pouco. Deixo meu peso achar lugar sobre a cadeira, sobre o chão, sobre as pedras, pela areia, entre papéis e teclas de computador. Vazio e nada se averbam26, viram um ato - esvaziar, nadar – gerando um contrafluxo dos acúmulos de toda ordem.

Quebradas as expectativas usuais da encenação e da dissertação, e esfumaçadas a altivez e o controle do intelectual e do artista, podemos desistir de esconder nosso desamparo e, juntos, permanecer um pouco aqui. Abrir um espaço para que o tempo goteje em nós.

3. Verter-se em palavras

Figura 18. Imagem do livro “Manual de Afogamento”27

25 Oficina de Butoh Ma, com o mestre Tadashi Endo, realizada em 2011, pelo Festival Vivadança, em

Salvador.

26 Ideia inspirada na fala de Gilsamara Moura, durante a etapa de qualificação desta pesquisa. Gilsamara

disse algo como, “você verbou o nada”.

27

Parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

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Não sei dizer ao certo quando esta pesquisa começa. Em 2011, dou as primeiras rascunhadas em textos e imagens que surgem do meu encontro com Ofélia e, só algum tempo depois, dou início aos preâmbulos de um transbordamento da prática criativa para uma pesquisa de mestrado. Demoro de entender como compor-me nesse espaço, ainda que me sinta de certa forma familiarizada ao ambiente acadêmico. Costumo escolher poucos livros que leio devagar e repetidamente, detenho-me por muito tempo em certos trechos, esqueço as páginas abertas enquanto, estirada no chão, divago no eco de meia dúzia de palavras que escolhi lembrar. Dou longas pausas, distraio-me, saio andando pelas ruas para colher nas formas do dia o complemento das pequenas epifanias que a leitura me traz, busco amigos para confabulações inúteis sobre frases soltas, leio a teoria buscando nela o poema e vice-versa. Por isso, guardo a impressão de que meu ritmo e minha prosódia são difíceis de harmonizar com as prerrogativas desse lugar. Preciso de muitos saltos e grandes quedas para compreender que estes aspectos que pareciam empecilhos são, na verdade, o farol desta embarcação fantasma28.

Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá a impressão de juventude ou de rejuvenescimento ao nos restituir ininterruptamente a faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira poesia é uma função de despertar. (BACHELARD, 2013, p. 18)

Entro no mestrado em 2015, quase ao mesmo tempo em que estreio o solo “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”. Engravido pouco tempo depois e tenho toda minha rotina e planos desmontados. Embaraço os propósitos desta empreitada frente à vivência devastadora que é ser mãe, ainda mais na cidade contemporânea, com sua urdidura de isolamentos e pressas. Tenho pouquíssimas chances de preparar um espaço de concentração, silêncio e tranquilidade que a leitura e escrita dissertativa parecem exigir.

Começamos, eu, Camilla, Felipe, Laís, Liz, Mônica, Olga e Uerla29, os encontros de Loucas do Riacho com José, meu filho, pendurado em meu peito. Transcorro num longo processo criativo que me alimenta e desafia. Ao chegar em cada ensaio, proponho que primeiro deitemos no chão, para descansar da vida lá fora. “Mas o que é o lá fora”,

28

No tópico 10, “O fantasma é uma dor que se repete”, esse entendimento de Ofélia enquanto fantasma será retomado.

29 Camilla Sarno, Felipe Benevides, Laís Machado, Liz Novais, Mônica Santana, Olga Lamas, Uerla

Cardoso. Laís sairá pouco depois do início do processo, e, em seguida, Camilla Sarno, que terá se ausentado por um período, voltará a integrar o grupo.

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pergunto-me, “se a vida é isto que escorre por toda parte?”. Visito a sensação de que qualquer lugar onde não se possa parar para respirar um pouco e deitar os pesos à terra desaloja a vida enquanto pulsão afirmativa.

Paralelamente aos ensaios, recebo indicações de leituras que não consigo cumprir. Sinto-me cada vez menos propícia ao desenvolvimento da dissertação, inculcando angústias e pudores. Esqueço que a pesquisa é, mais do que qualquer coisa, o curso da criação de “Loucas do Riacho” e que é enquanto artista que construo meu saber.

Às vésperas da estreia de “Loucas do Riacho”, perco minha primeira orientadora pelos atrasos na entrega de capítulos e sinto novamente a vertigem de subir ao salgueiro e abandonar-me nas correntezas do não. Era a tromba d’água que faltava para me entregar de vez ao sabor do devir. Refaço as missões que me competem: fazer-me caber assim, materna, consumida, experimentada, cheia das marcas de minhas criações e dos murmúrios de suas repercussões, neste texto. E insuflar aqui a presença dos corpos que compuseram esse processo, com seus ecos poderosos. Nada que me obrigue a renegar o que produzo de mais sincero, presente e vivo poderá fazer sentido. Deixo-me afogar mais uma vez enquanto canto minha ruína e dádiva.

A quem interessa o trabalho feito em detrimento de si, o trabalho que adoece, que insistentemente nos tira as forças e apenas mortifica pelo pressuposto de que não somos bons o suficiente e que o nosso saber vale pouco ou nada? Como modos de trabalhar e pensar assim podem persistir até mesmo no campo das artes, onde o fluxo criativo evoca uma afirmação imensurável da vida e das forças que a admitem? Na inquietação destas perguntas, encontro novos comparsas, nova orientação, nova vitalidade e novos paradigmas, e respondo com um novo sim para este corpo que sou. Aos poucos, no enfrentamento dos estresses variados e colapsantes, consigo entrever uma grande saúde30. Deixo que a teoria ressume de cada experiência, das mais criativas às mais banais.

Escrevo as filosofias que fustigam meus dedos e atrevo-me a dançar e resfolegar por estas páginas. Paro, levanto, percorro o corredor da casa, giro, vou à varanda,

30 “Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo - alguém que persiga o

problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade -, tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder, crescimento, vida”. (NIETZSCHE, 2004, p.10-12)

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fantasio os movimentos de um novo espetáculo, sento, escrevo mais, coloco o bebê no colo, paro antes que ele destrua as teclas, vou brincar com ele, esquentar a comida, arrumar a casa, enquanto desvio os olhos do relógio, das contas e tento inventar rituais de transfiguração de prazos. É assim, reconhecendo a riqueza volumosa e os saberes engendrados na prática da vida, que inclui e ultrapassa as salas de ensaio, que o devir-Ofélia-cartógrafa vai desabando sobre o texto e esboçando uma escrita-corpo.

Para azucrinar o ego e seu pegajoso cortejo de arrogâncias. Para desaprender a reprovar a vida, essa nossa insistente mania de desqualificá-la. Para se desvencilhar da idéia de que a vida nos reserva um propósito, e cabe a cada um de nós desvendá-la. Para aprender a rugir para o que é pesado e instituído. Para desatolar a subjetividade das formas acabadas. Para ser pega em “flagrante delito de fabular”. (PRECIOSA, 2010, p 21)

Quebra-se aqui a hierarquia entre pensar e sentir, buscando exaustivamente alternativas de “como passar do sensível ao pensado e do pensado ao sensível sem que haja domínio de um sobre o outro?” (NOVAES, 1988, p 13). Alinho-me, desta maneira, com uma epistemologia do corpo31, que tensiona as epistemes mais conservadoras, pelas quais o pensamento e o saber teórico separam-se, sobrepõem e antecipam à experimentação prática e que rejeitam sistematicamente as obscuridades, vulgaridades e todo tipo de dejeto que o corpo físico produz e que a vida, em seu cotidiano ordinário, abarca. Admito, por fim, que “O que em mim sente está pensando” (PESSOA apud NOVAES, 1988, p 13).

Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relações de corrente, contracorrente, de redemoinhos com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. (DELEUZE, 1992, p 17)

Cultivo gretas no texto, por onde ele se misture às coisas de que fala, que roce as bordas do campo da pesquisa científica, misturando-se à arte de que brota, de modo a reunir forma e conteúdo. Ocorre-me que esta dissertação seja, na verdade, um ato de manifestar: de tecer um manifesto, declarando os princípios e intenções de uma arte do sim; ou fazer uma manifestação que articula políticas em prol de criações que inspirem

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Ecos de uma conversa com o amigo, performer e professor Saulo Moreira, reverberando suas leituras de Espinoza.

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a vida, acolhendo seu veemente cortejo de mortes e desastres; ou ser o cavalo pelo qual manifestam-se as forças que me rondam. Manifesto-me aqui, numa busca sincera e obstinada pela encarnação de forças vivas, no percurso complementar ao dos rituais de incorporação. Aqui é o corpo que ateia seus espíritos nas palavras, uma palavra-babá-xamã-anarquista-baderneira.

Nessa busca, encontro muitas vozes consonantes. Há uma variedade enorme de artistas pesquisadores fazendo de seu descompasso com o modos operandi da academia o motor para a expansão dos limites da pesquisa em artes.

Tem ocorrido um impulso radical para não somente colocar a prática no âmbito do processo de pesquisa, mas para guiar a pesquisa através da prática. Originalmente propostas por artistas/pesquisadores e pesquisadores na comunidade criativa, essas novas estratégias são conhecidas como prática criativa como pesquisa, perfomance como pesquisa, pesquisa através da prática, pesquisa de estúdio, prática como pesquisa ou pesquisa guiada-pela-prática. (HASEMAN, 2015, p 43)

Escuto as palavras que brotam de minha pele, em minha potência de auto-ficcionalizar-se e produzir memória, linguagem e coletividade. A partir daí, é que vou alinhavando frases e parágrafos, entre tensões, magnetismos, dispersões, insurgências e dissoluções repetidas. Jorro neste texto aquilo que colhi nos redemunhos.

Estou-sendo enquanto me esparramo pelo vir-a-ser destas páginas. Dou passagem à subjetividade, produzo-me, transvaso no corpo do texto. Enfrento embates, engasgos, boicotes e, a cada vez, digo um novo sim.

Um corpo, uma engrenagem de sensações que intrigam textos o tempo todo. E esses textos que vão sendo produzidos são muito ruidosos, exatamente porque operam vozes que discordam entre si. (PRECIOSA, 2010, p 25)

No lugar reservado para uma hipótese, trago um inquietante encantamento por Ofélia e pelas revelações criativas operadas através dela. E vou me guiando pelos ecos de suas materializações na prática de criação.

(...) muitos pesquisadores guiados-pela-prática não iniciam o projeto de pesquisa com a consciência de “um problema”. Na verdade, eles podem ser levados por aquilo que é melhor descrito como “um entusiasmo da prática”: algo que é emocionante, algo que pode ser

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desregrado, ou, de fato, algo que somente pode tornar-se possível conforme novas tecnologias ou redes permitam (mas das quais eles não podem estar certos). Pesquisadores guiados-pela-prática constroem pontos de partida empíricos a partir dos quais a prática segue. Eles tendem a “mergulhar”, começar a praticar para ver o que emerge. (HASEMAN, 2015, p 44)

Adauto Novaes diz, no capítulo de abertura de seu livro intitulado “O olhar”, que “apenas uma visão despojada dos sentidos e do corpo pode levar à evidência, à essência, à certeza.”32

Escrever com os olhos abertos em Ofélia e nos corpos movidos por sua imagem é deixar que o corpo criativo, o corpo vívido e errático da cena jorre na palavra escrita. Que o fluxo poético se infiltre na teoria e escorra por estas linhas. É permitir-se transcorrer pela efemeridade das descobertas, por entre o leito das perguntas. É festejar o movimento enquanto estratégia de sobrevivência, reivindicando exaustivamente a vida. É não se deixar coisificar, tampouco embotar. É não sucumbir à linguagem e fazer o contrário: animá-la de múltiplas possibilidades, erotizá-la. Recebo assim os sussurros de Ofélia neste corpo e neste corpus de criação e pesquisa.

4. Sujeito estilhaçado

Figura 19. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto usada na imagem, eu com meu filho, José. Lucas Moreira, 2016.

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