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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

21. A PALAVRA QUE NEM CALA NEM DIZ

Figura 36. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

Em cada uma e em cada um de nós, há uma louca afogada, atiçando um jorro delirante que dissolve os contornos por onde as linguagens se tornam estanques, hierárquicas, excludentes. Se deixarmos as águas do pensamento dançarem o corpo, a voz da louca emerge com sua palavra-labirinto, que desnorteia. “Se é preciso dessubjetivar o mais possível a lógica e a ciência, é não menos indispensável, em contrapartida, desobjetivar o vocabulário e a sintaxe” (Claude-Louis Estève, apud BACHELARD, 1986, p 13).

A voz da louca – a louca que vive em nós -, ao alçar-se à superfície, não para de soar. Não se cala na boca, não se constrange. Quem escuta o que ela diz não escuta o que ela está dizendo, mas o que o seu dizer invoca. Suas frases não são decodificáveis; elas agitam o pensamento de quem a encontra, germinando sentidos espantosos.

O desdobramento dessa exploração tenderia a apontar uma “nova vocalidade”, perturbadora para certas ordens e para certos estados de coisas. Uma vocalidade capaz de não se deixar dominar por mecanismos culturais de controle e pelos imperativos de uma sociedade de mercado. Uma voz, enfim, capaz de gritar, gemer e “cantar-se”. (HAOULI, 2002, p 49)

Essa voz convida à escuta do absurdo, sem ser absurda e disparata em si. Sua densidade irrevogável não permite que zombem dela ou a neutralizem, enquadrando-a enquanto tolice. Ela ressoa uma palavra que, antes de significar, pesa, assentando na matéria de cada corpo que a escuta.

O coro fragmentado ganha a dimensão de cacos libidinais expostos ao evento que se dá a nossa frente, no cotidiano. O performer é uma sonda no instante, e desmistifica o sujeito uno previamente constituído por um discurso aceito pela maioria ou imposto como “modelo”. Essa desconstrução do sujeito em fragmentos consegue impedir a atuação de nossos filtros linguísticos. (HAOULI, 2002, p 59)

Nos encontros de “Loucas do Riacho”, invocamos esse jorro, essa corredeira de palavras e pensamentos, fazendo exercícios de fluxo verbal. Primeiro, iniciamos uma dança que agita o corpo num pulso vigoroso, sacodindo as palavras que o atravessam. Quando as palavras, ainda em inaudível balbúrdia, começam a vibrar a língua, estacamos, soltamos um grito-mudo e começamos a dizer. Dizemos o que nos ocorre, sem parar, sem planejar, sem organizar e sem reter. Vamos soltando um vômito fonético, num “‘fluxo’ de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter?” (DELEUZE, 1974, p. 2).

Falamos continuamente, dando voltas no dizer, entontecendo de tal modo os significados, que os filtros linguísticos tropeçam e se desfazem. O verbo pronunciado, nesse coro dissonante, despedaça a ilusão do bom-dizer e alimenta insubmissões, porosidades e aproximações. Esta fala é como um escavar de palavras, que, por sua vez, é como um escavar da terra para alcançar um lençol freático no qual banhar-se. “Eu tinha a sensação de que cada ação do trabalho tinha voz, volume. A loucura como volume do invisível”.90

É um azucrinar do verbo para a irrupção do fluxo de vozes atávicas, ancestrais e plurais.

Palavras soltas e que juntas/sobrepostas/fora da linearidade da linha permeiam essa compreensão da presença: passado, presente, futuro, eu-corpo, eu-espaço, eu-Outrx, fluência, silêncio, gritaria, fluxo ininterrupto, conexão via pele, integração via pele, kinesfera, estado meditativo, exaustão, povos originários, dimensões sobrepostas,

90 Frase extraída de entrevista realizada por email, no dia 19/07/2017, com a performer Liz Novais. Esta

feitiço, bruxaria, energia, pulsação comum, percepção onírica, sono, rito.91

Lançamos palavras e mais palavras no espaço e o adensamento que elas operam na atmosfera circundante pressiona as barragens da consciência. Nosso verbo mais subterrâneo começa a despontar, numa voz vulcão, que inunda o salão.

Voz lança, voz Espada de São Jorge, voz vento, voz aquário, voz Meredith Monk, voz indígena, voz escravizada, voz Iemanjá, voz chave de abertura e fechamento, voz que quando enuncia palavra transforma palavra em gás, voz perna que corre pula e joga-se no abismo, voz arrepio, voz feitiçaria, voz gravidade zero, voz morcego avoando sobre nossas cabeças, voz colar de pérolas chocalho madeira bacia de prata, voz circular, voz água da mangueira, voz sino de fim, voz sino de começo, voz sino que acorda a casa inteira, voz silêncio que inunda, voz silêncio que enlouquece, voz pavor, voz tremor, voz cura, voz pacto, voz contato, voz rã imaginária, voz jiboia planta e cobra, voz concha, voz pensamento, voz sempre corpo, voz sempre corpo, voz sempre corpo, corpo sempre voz.92

As reminiscências desse fluxo verbal experimentado em alguns ensaios é uma palavra-assombro que, vez por outra, rasga o ar, abrindo uma fenda por onde o silêncio e o estrondo se presentificam, desenterrando discursos subjacentes que, de tão precários, apresentam-se de forma borrada, quase como um não-texto. Ao lado disso, nos colocamos à escuta de artistas que exploram os limites entre fala, canto e sonoridade, e que experimentam a voz relacionando-a com as dimensões musical, corporal, cultural, filosófica e ontológica. Entre esses artistas estão Meredith Monk, Fátima Miranda, John Cage, Ghédalia Tazartès, entre outros. Movidas nesse fluxo, dançamos voz e pensamento.

Abram minha boca: vou soltar um grito, fazer a noite visível.

Partículas que meu timbre excite, volumes que minha língua apalpe,

comunguem em mim o gesto escuro e íntimo, me disponho a isto. Mas não acendam as luzes,

por favor,

91

Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta foi parte da resposta dela para a pergunta, “Pra você, qual aspecto das “Loucas do Riacho” é o mais precioso?”

92 Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

não pintem os cantos das paredes de branco. Quero os fantasmas desta casa

intactos!

De que vale ser fulana ou sicrana sem trazer na pele, na pupila, na palavra,

o tempo lato e o hiato em que legiões persistem

e vagam.

Sendo a que passa e na qual permanecem as sombras, as marcas, receitas, relógios liquefeitos, artimanhas, eu abro suas bocas e solto um grito

onde a noite se anuncia e verte o liquido lácteo de galáxia e vertigens

no peito, no piso, pelas gretas da porta, escadas, pelos ralos,

pelos rabos. Inunda tudo de breu;

ninguém mais pode fugir ao espanto.93