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III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO

14. HABITAÇÕES

Figura 29. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Mariana David, 2017 O primeiro encontro do processo criativo de “Loucas do Riacho” acontece na sala da casa de uma das atrizes. Ali, conversamos sobre os primeiros vislumbres, enquanto comemos bolo, rabiscamos nos papéis e jogamos tarot. A possibilidade de encontro oferecida pela atmosfera de uma casa nos levará, mais tarde, à imersão em Baixios e à temporada na Casa de Castro Alves.

Nos primeiros meses de ensaio, nosso espaço de encontro é o Estúdio da Sereia, um salão no Morro do Alto da Sereia, situado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O Estúdio fica quase à beira-mar, erguido sobre as rochas onde as ondas mais fortes respingam ao rebentar. A presença do mar traz um balanço que permanecerá em cada corpo por muito tempo. Ao deitarmos no chão de madeira, a brisa cheia de maresia e aquele som contínuo de ondas, retarda o desejo de fazer outra coisa que não deixar-se ali, abandonada sobre o piso e embalada pelos sons que povoam as tardes. Descobrimos

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Texto do ator e historiador Camilo José Domingues, criado a partir de suas impressões sobre “Loucas do Riacho” e enviado para mim por email em 19/04/2017.

assim que o “riacho das loucas” transcorre entre tarde e noite e a primeira coisa a fazer em seu encontro é deixar-se ninar pelo som do tempo.

A partir do quinto mês do processo criativo do espetáculo, passamos a experimentar espaços para a realização da temporada. Vamos um dia ao Coaty, um edifício cultural localizado na Ladeira da Misericórdia, no Centro Histórico de Salvador. O casarão, projetado por Lina Bo Bardi, tem composição cilíndrica, na qual o salão principal, que tem o teto vazado, é atravessado pelo tronco de uma árvore que conecta o piso médio ao jardim aberto no piso superior. Mesmo só estando ali um único dia, levamos conosco esse emaranhado espiralado entre concreto e planta.

Na mata da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, que resiste no meio da urbanidade do bairro de Ondina (Salvador), entre os prédios do campus universitário, marcamos encontros para conversar e meditar sobre o processo criativo e para fazermos alguns experimentos. A mata é permeada por córregos pavimentados, raízes de plantas diversas, clareiras de onde pendem troços de cipó e, daqui e dali, além de plásticos e outros resíduos, pedaços triturados de papéis com trechos de trabalhos acadêmicos. É nessa mata que um sentido xamânico ressalta em nós, como uma antena que se ativa a apreensão do trânsito de vibrações de máquinas, tubulações, mosquitos, folhas, pensamentos e entidades.62

Temos alguns encontros noturnos nas salas de aula situadas também na Escola de Dança da UFBA, podendo desfrutar de sua estrutura de tablado e grandes espelhos. Empregamos o conjunto de luzes elétricas que reunimos – pisca-piscas, pequenas lanternas, colares com luzes coloridas e badulaques luminosos de toda sorte – para vermos surgir, do breu da sala, silhuetas de criaturas abissais. No espelho da sala, flutuam pedaços de corpo, uma mão aqui, uma boca lá, um seio acolá, um pé, uma barriga, um olho: fragmentos de corpo dançando no vazio e compondo a imagem novo corpo conjugado e monstruoso. Assim nasce a percepção de que cada corpo é ao mesmo tempo inteiro e parte de outro corpo maior, coletivo e extraordinário.

Numa das salas do complexo do Teatro Castro Alves (Salvador), nos encontramos para alguns ensaios. Temos aí uma estrutura apropriadamente preparada para a realização de processos de montagem de espetáculos cênicos – uma sala de tablado, ampla, com as paredes brancas e isolamento acústico. Nesse espaço, os ensaios ganham

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Os vídeos criados a partir dos experimentos na mata da Escola de Dança da UFBA estão disponíveis em < https://www.youtube.com/watch?v=uRmOdY9Nl9A&feature=youtu.be> ;

um modo de improvisação teatral – uma estrutura que não tem roteiro definido, mas que requer uma sucessão de ações que vão compondo uma narrativa. Tentamos fugir disto, mas é difícil colher outros propósitos ali. Fica evidente que precisamos de um espaço que abrigue outras memórias que não as de um teatro. De outro modo, não poderemos escapar de um aspecto mais representativo ou metalinguístico, ambos que não nos interessam neste momento. O que fica desse espaço, além dessa percepção, é o que ocorre num dos dias de ensaio, em que Camilla Sarno leva um vestido azul coberto de lantejoulas para ser entregue a Felipe Benevides.63 Este vestido fora usado por Benevides em “Butô de bêbado não tem dono”64

e Camilla o havia tomado emprestado para usá-lo em outro trabalho. Durante esse dia, o vestido acaba por ser incorporado à nossa relação e vai sendo dançado pela sala, saltando entre os corpos até ser vestido por Felipe num frenesi de movimentos. O vestido torna-se o fantasma de Ofélia que nos desperta sua dança e nos recorda o tanto de memória que fica impregnada em cada objeto, o tanto de vida que a matéria morta comporta. Esse vestido permanece pairando pendido no centro do salão da “Casa de Castro Alves”, durante as apresentações de “Loucas do Riacho”.

Para finalizar o ciclo de encontros de 2016, antes do recesso para a retomada do processo no início de janeiro de 2017, decidimos fazer uma imersão numa casa alugada na praia de Baixios, no município de Esplanada (litoral norte da Bahia). Ali, caminhamos pela praia e chafurdamos na lama do mangue. Temos, deste modo, a chance de vivenciar esse convívio alongado, colhendo os pequenos segredos desta convivência avizinhada das águas do mar, do rio e da lama. Fechamos o pacto de que, a cada dia, a partir das 17h, fariamos algum tipo de ritual entre nós. Entendemos, ao passar dos dias, que o ritual de “Loucas do Riacho” não precisa ser algo solene. Ele pode surgir de pequenos atos comuns, que, comungados paulatinamente numa atenção ampliada, vão gerando um adensamento de atmosfera que propicia outros fluxos de presença.

No jardim térreo da Casa Preta, espaço cultural localizado no Largo Dois de Julho (Salvador), a nave-pântano ganha novas dimensões, a partir do conjunto de planta, lama, paredes emboloradas, ruína, fios elétricos, luzes que trepidam, imagens de santos caboclos, gambiarras de toda sorte existente ali. Nos cantos escuros do jardim,

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Ambos performers de “Loucas do Riacho”

brincamos de aparecer e sumir, e vamos virando, nesse movimento simples, um monstro maravilha, bruxas, um corpo híbrido de raízes, folhas, pelos.65

Ao chegarmos na Casa de Castro Alves, deparamo-nos com sua fundação centenária que traduz outras centenas de corpos que passaram ali ou ali permanecem aterrados. Nossa primeira proposição é deitarmos no chão e escutar seus silêncios, deixar que eles vibrem em nossa língua. Ao passar dos dias, vamos fazendo e desfazendo bandos, criando e abandonando coreografias, esparramando fúrias coletivas, mudando objetos de lugar, cultivando mudas de espécies variadas de plantas, misturando-nos na casa, tornando-nos nela, ela em nós, ambas no riacho.