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3.4. Incompatibilidade Normativas e Revogação

3.4.1. Alcance e classes de revogação

Uma melhor compreensão do fenômeno da revogação está a exigir abordagem que tome em conta as noções de documentos normativos, enunciados prescritivos e normas jurídicas (significações), conforme o alcance da revogação (total ou parcial) e segundo as classes de revogação (conhecidas como expressa e tácita).

Em relação ao alcance, a revogação poderá ser total, atingindo todo um documento normativo, ou parcial, quando atinge parte dele (enunciados prescritivos ou normas jurídicas). Fala-se, assim, de ab-rogação, quando o alcance é total e de derrogação, quando o alcance é parcial.

251 Essa a razão pela qual, inclusive, o Supremo Tribunal Federal pode exercer o controle de constitucionalidade no controle difuso com relação a normas revogadas. No caso de a Suprema Corte pronunciar a inconstitucionalidade de norma já revogada, a decisão alcançará as partes envolvidas no processo, todavia não poderá o Tribunal oficiar o Senado Federal para suspender a execução norma, pois esta já estará revogada (cf. Recurso Extraordinário n. 407.190-8/RS, Plenário, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, julgamento em 27.10.2004, DJ 13.05.2005).

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Quanto às classes de revogação, a doutrina tradicionalmente opera com as categorias de revogação expressa (ou manifesta), quando é enunciado o objeto da revogação, fazendo referência inequívoca às disposições que está a revogar, valendo-se de expressões do tipo revoga-se a lei ou ficam revogados os artigos , e revogação tácita (ou implícita), quando a norma revogadora é incompatível com a anterior, sendo resolvida essa incoerência normativa pela aplicação de um dos critérios de prevalência (hierárquico ou temporal), ou, ainda, quando normas posteriores disciplinam de modo integral a matéria.253

Cumpre destacar aqui a prática muito comum do legislador de enunciar cláusulas genéricas como ficam revogadas as disposições em contrário ou revogam-se as disposições anteriores , as quais, conquanto expressem o comando revogatório da norma, não identificam o objeto da revogação. Essa indeterminação do conteúdo revogado, além de não atender às prescrições do direito positivo brasileiro, notadamente o art. 9º da Lei Complementar n. 95, de 1998,254 enseja diferentes posições doutrinárias, havendo autores que reconhecem neste expediente tanto uma espécie de revogação expressa genérica,255 quanto uma fórmula desnecessária de revogação tácita,256 ou, ainda, uma cláusula dotada de sem- sentido deôntico.257

Essas questões serão articuladas com as idéias que firmamos sobre os documentos normativos e enunciados prescritivos, de existência física (texto jurídico) e também às normas jurídicas, de existência lógica (juízo hipotético-condicional).

Pois bem. As normas jurídicas que retiram outras normas jurídicas do sistema do direito positivo o fazem sempre por meio de linguagem, vale dizer, por textos jurídicos a partir dos quais o intérprete constrói significações que implicam a identificação de uma modificação da ordem jurídica, alterando, pois, o status anterior.

253 TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR., além da revogação expressa e da tácita, aponta uma terceira, que chama de global, a qual corresponde à regulação integral de determinada matéria, mesmo repetindo certas disciplinas da norma anterior (Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 204-205). De nossa parte, embora reconhecendo as particularidades da regulação integral da matéria, pensamos estar inserida na categoria da chamada revogação tácita.

254 Art. 9º A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas . 255 GABRIEL IVO, Considerações acerca da revogação (É possível falar de revogação tácita?). In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 199.

256 TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR., Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 204. 257 TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM, Revogação em matéria tributária, 2005, p. 212.

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Essa alteração do ordenamento pode alcançar seu próprio corpus, é dizer, os documentos normativos, e pode ainda atingir diretamente as significações construídas a partir do texto anterior que se mostrem incompatíveis com aquelas produzidas tendo como suporte físico o novo texto criado pelo legislador.

E quando falamos em alcançar o texto jurídico estamos a dizer que a norma que promove a modificação do ordenamento pode atingir tanto os documentos normativos como um todo, quanto um ou mais de seus enunciados prescritivos. É essa alteração do texto jurídico que entendemos efetivamente por revogação. Portanto, a norma revogatória atua sempre sobre os suportes físicos, no plano da expressão.

Quando, de outra forma, não são eliminados ou alterados documentos normativos ou enunciados prescritivos, então a questão passa ao plano das significações, exigindo do intérprete ainda maior esforço, pois não bastará apenas construir significações a partir dos novos textos, mas superar também as possíveis incompatibilidades entre as novas normas jurídicas construídas e aquelas produzidas tendo como suporte físico o texto jurídico anterior.

Nesse caso, o que se verifica é um conflito exclusivamente no plano das significações, ou seja, entre as normas construídas tendo por base o texto jurídico anterior e aquelas outras produzidas a partir do novo texto jurídico. Aqui, a rigor, a questão não é de revogação, mas de incoerência normativa, a ser solucionada pelos critérios oferecidos pelo próprio sistema.

A revogação, portanto, em termos mais rigorosos, opera diretamente sobre os documentos normativos e sobre os enunciados prescritivos (texto jurídico) e não sobre as normas jurídicas (significações), as quais são alcançadas apenas indiretamente. E sendo atingido o texto jurídico, não há suporte físico para a construção da norma jurídica.258 Daí a conclusão de TÁREK MOUSSALLEM: Não se revoga norma em sentido estrito (juízo hipotético-condicional), mas tão-só enunciados prescritivos .259

258 Cf. GABRIEL IVO, Considerações acerca da revogação (É possível falar de revogação tácita?). In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 202.

259 Eficácia e sentido da jurisprudência e a suposta revogação do crédito prêmio do IPI. In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 656.

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Portanto, apenas quando é alcançado o texto jurídico ter-se-á efetivamente revogação. Não sendo atingido o documento normativo, não há que se falar em revogação, e menos ainda em revogação tácita,260 pois o que existe nessa hipótese

são proposições normativas contraditórias, é dizer, incompatibilidade no plano das significações, que dão ensejo à adoção de um dos critérios de prevalência para a resolução de incoerência normativa. Então, poder-se-ia dizer que toda revogação é expressa, e a chamada revogação tácita não é propriamente uma revogação. Por outras palavras, revogação expressa seria redundância e revogação tácita contradição em termos.261

Considerando-se, todavia, a praxe adotada no discurso jurídico, concebemos ainda que mantendo nossas reservas em razão do rigor imposto pela linguagem científica que a revogação possa ser expressa. No primeiro caso, uma revogação em sentido estrito e, na segunda hipótese, a revogação imprópria.

A revogação, dita expressa, pode alcançar o texto jurídico total ou parcialmente. Sendo total, tem-se ab-rogação, e o documento normativo é afetado integralmente. A revogação é efetivada pela precisa identificação do diploma normativo a revogar, por exemplo, pelo número da lei e sua data de promulgação ou publicação. Sendo parcial, tem-se derrogação, a qual atinge enunciados prescritivos, permanecendo o documento normativo e os demais enunciados prescritivos. A revogação parcial opera de diferentes modos. Pode remover um único enunciado prescritivo (um inciso, por exemplo) ou mais de um deles (vários artigos de uma lei), como pode mutilar parte de um enunciado prescritivo (eliminando certo trecho do enunciado), ou mesmo, por vezes, apenas modificando o teor do enunciado prescritivo (a chamada nova redação do enunciado prescritivo).

Interessante destacar a existência de normas cujo documento normativo onde são objetivados os enunciados prescritivos já traz também a fixação de sua revogação. Tratam-se das leis temporárias. Nelas, o mesmo veículo introdutor que inova o sistema inserindo novas unidades normativas, veicula a própria norma de revogação. São normas com prazo de vigência.

260 Como sugere o título do mencionado artigo de GABRIEL IVO: É possível falar em revogação tácita?

261 Conforme TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM, Eficácia e sentido da jurisprudência e a suposta revogação do crédito prêmio do IPI. In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 656.

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Importante ressaltar que a revogação será efetiva se e somente se a alteração do texto jurídico afetar a construção de significações. A produção das significações pode ser afetada tanto pela eliminação do documento normativo (total), quanto pela supressão ou alteração, nas suas várias formas, de enunciados prescritivos (parcial), ainda quando a construção das normas dependa de outro ou outros enunciados prescritivos (inclusive veiculados em documentos normativos distintos).

A revogação afeta o plano das significações quando o intérprete, a partir do texto jurídico novo, não mais constrói norma jurídica ou constrói norma jurídica distinta daquela que antes produzia. Há situações, todavia, que não afetam o plano das significações, ou seja, não há supressão ou alteração de normas. Por exemplo, simples ajustes de texto, que não alteram os conteúdos de significação, ou a remoção de enunciados prescritivos ou trechos redundantes, sem afetar a construção de sentido a partir de outros enunciados prescritivos.

Na chamada revogação tácita não há qualquer manifestação objetiva de expulsão de documento normativo ou de enunciado prescritivo do sistema do direito positivo. Não ocorre no plano da expressão. É verificada, exclusivamente, no plano das significações.262 A exclusão tácita das normas, em cada caso concreto, é constituída pela linguagem prescritiva produzida pelo órgão competente para a aplicação do direito, notadamente os membros do Poder Judiciário (intérpretes autênticos para KELSEN).

Não decorrendo de revogação expressa, as normas jurídicas são removidas do sistema no plano das significações (1) pela adição de novos enunciados prescritivos, a partir dos quais o interprete constrói normas incompatíveis com aquelas construídas com base no texto anterior, resolvendo-se o conflito pela prevalência da norma mais recente, ou (2) pela veiculação de enunciados prescritivos a partir dos quais são construídas normas que dão nova disciplina integral à matéria.263

262 Cf. GABRIEL IVO, Considerações acerca da revogação (É possível falar de revogação tácita?). In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 212.

263 É o que estabelece a Lei de Introdução ao Código Civil LICC no § 1º de seu art. 2º: A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente e

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Quanto à primeira hipótese, destaca GABRIEL IVO264 que a revogação tácita

pressupõe a incompatibilidade entre as normas em todos os seus aspectos (material, espacial, temporal e pessoal), de modo que as duas não possam conviver no sistema, implicando a eliminação da anterior. De reverso, não sendo total a incompatibilidade entre as normas, poderão conviver no sistema (nesse caso, a norma anterior tem apenas reduzida a sua abrangência), e de revogação tácita não se tratará.

Em relação especificamente à regulação integral da matéria, conquanto aceita tranqüilamente pela doutrina265 e tendo amparo na própria Lei de Introdução ao Código Civil, cabe registrar a existência de certos problemas de ordem semântica (a começar pela própria definição do que seja matéria ) que prejudicam a fixação de critérios objetivos que permitam aferir, no caso concreto, se estamos ou não diante de disciplina inteiramente nova da matéria.266 Fiquemos, todavia, com o exemplo da substituição de uma codificação por outra, tal como se deu no ano de 2002 com a promulgação do novo Código Civil.267

Além das revogações expressa e tácita, há ainda uma outra atuação normativa, que se dá diretamente no plano das significações. Atinge as normas jurídicas, mas sem cortar-lhes a vigência e a validade, apenas inibindo parcialmente a eficácia técnica. Estamos a falar das normas especiais.

A partir de certos enunciados prescritivos o intérprete pode construir normas dirigidas à regulação de eventos específicos, situações especiais. Essas normas são incompatíveis apenas parcialmente com as anteriores. Nesse caso a norma anterior não é retirada do sistema, tendo apenas parcialmente neutralizada sua aplicabilidade (não pode incidir para regular as situações disciplinadas pela norma especial).

264 Considerações acerca da revogação (É possível falar de revogação tácita?). In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 213.

265 Para TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR., quando a matéria é inteiramente regulada (revogação global), nem mesmo há incompatibilidade entre as normas, sendo apenas substituída a norma anterior pelas normas que dão nova disciplina integral à matéria (Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 204-205).

266 Sobre o ponto, GABRIEL IVO, Considerações acerca da revogação (É possível falar de revogação tácita?). In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 214-215.

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As normas especiais deixam o texto jurídico intacto (documento normativo e enunciados prescritivos) e não afetam a vigência e a validade das normas jurídicas (chamamo-las de gerais), que têm parcialmente tolhida sua eficácia técnica (caso de ineficácia sintática), ante a impossibilidade de regularem específicas situações.

Assim, as normas especiais não alteram ou retiram (expressa ou tacitamente) as normas gerais do sistema, e tampouco são eliminadas ou modificadas pelas normas gerais.268 Normas especiais e gerais convivem no sistema, apenas atuando, a norma especial, em determinadas situações nas quais não é aplicável a norma geral.

Muito embora estejam ambas a operar no plano das significações, diferem as normas especiais daquelas que retiram tacitamente outras normas do sistema. Essas últimas são incompatíveis em todos os aspectos com as normas anteriores, gerando incompatibilidade normativa que ocasiona a prevalência da especial e a exclusão da geral. Já a norma especial não é incompatível em todos os aspectos com a norma geral, podendo ocorrer mesmo que apenas um aspecto seja compatível, sendo o suficiente para a manutenção da validade e vigência da norma anterior.

Partindo da distinção entre documentos normativos, enunciados prescritivos e normas jurídicas foram abordados temas da revogação, seu alcance (ab-rogação, total; derrogação, parcial), passamos pelas classes aceitas pela doutrina (expressa e tácita), e tecemos ainda considerações sobre a atuação das normas especiais, as quais não têm o condão de promover a retirada de outras normas (as gerais) do sistema. Assentada nossa posição acerca desses pontos, é importante também a articulação com os critérios de solução dos conflitos normativos, verificando como atua cada qual e seus reflexos sobre a vigência, validade e eficácia técnica das normas.

268 Nesse sentido, a prescrição do § 2º do art. 2º da LICC: A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior .

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