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Os critérios hierárquico, temporal e da especialidade

3.4. Incompatibilidade Normativas e Revogação

3.4.2. Os critérios hierárquico, temporal e da especialidade

Se há um ponto no qual parecem convergir os autores de um modo geral, este ponto se refere ao reconhecimento de três critérios pelos quais é possível aferir a prevalência de uma regra quando seja incompatível com outra,269 a saber:

(1º) critério hierárquico (lex superior), por meio do qual a norma superior se sobrepõe e elimina a inferior por força de sua supremacia hierárquica; (2º) critério temporal (lex posterior), por meio do qual regras posteriores suprimem aquelas que lhes são anteriores cronologicamente; (3º) critério da especialidade (lex especialis), pelo qual uma regra especial supera uma regra geral quando incompatíveis, não sendo a especial superada pela geral, exceto no caso de regulação integral da matéria.

O primeiro dos critérios é o hierárquico. É aplicável unicamente quando são incompatíveis normas situadas em patamares hierárquicos distintos, prevalecendo aquela norma jurídica alojada em nível superior. O conflito normativo é resolvido sempre em favor da norma jurídica de posição mais elevada, inclusive se anterior à norma jurídica de inferior hierarquia.

Destaque-se que o nível hierárquico não é aferido pela norma jurídica, mas pelo veículo introdutor dos enunciados prescritivos a partir dos quais a norma é construída. Assim, por exemplo, normas construídas a partir do texto constitucional são superiores às normas construídas a partir de lei ordinária, e estas são superiores às normas construídas com base em decretos.

Portanto, pelo critério da hierarquia, quando afirmamos que normas superiores revogam normas inferiores, mas as inferiores não revogam as superiores, em termos mais precisos, estamos a dizer que normas construídas a partir de enunciados prescritivos veiculados por instrumentos introdutórios superiores revogam normas produzidas tendo como suportes físicos enunciados prescritivos introduzidos por veículos introdutores inferiores, mas estas últimas não revogam aquelas primeiras.

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O veículo introdutor superior tem força ativa e, assim, as normas construídas a partir de seus enunciados prescritivos possibilitam a criação de outras unidades normativas, bem como permitem a eliminação ou alteração das normas cujo suporte físico foi inserido no sistema por veículo introdutor inferior; possui também força passiva, é dizer, as normas construídas tendo como base os enunciados prescritivos que introduziu resistem às normas produzidas a partir do texto veiculado por instrumento introdutório inferior.270

Não desconhecemos importantes posições no sentido da revogação (expressa ou tácita) exigir sempre veículos introdutores do mesmo patamar hierárquico (lei ordinária revogaria lei ordinária, decreto revogaria decreto), de modo que as normas superiores implicariam apenas a paralisação da eficácia (técnica) das normas hierarquicamente inferiores, tal como sustentaram, por exemplo, GERALDO ATALIBA271 e MOREIRA ALVES ainda quando julgava, doutrinando, no Supremo Tribunal Federal.272

Conquanto respeitáveis, divergimos desses entendimentos, pois temos que as normas superiores são aptas à remoção (expressa ou tacitamente) de normas inferiores do sistema do direito positivo. Além de não encontrarmos no ordenamento jurídico brasileiro vedação alguma nesse sentido, pensamos que a revogação da norma inferior pela superior seja mesmo decorrência lógica. É que a norma anterior e inferior, então pertencente ao sistema do direito positivo, encontra fundamento de validade em norma de nível superior. Assim, uma vez produzida norma superior com a qual a norma inferior não mais mantenha compatibilidade, a norma inferior tem afetada a sua validade (é desligada a relação de pertinência com o sistema). Existindo vínculo de subordinação hierárquica, a norma superior poderá sempre, expressa ou tacitamente, retirar a norma inferior do sistema do direito positivo.

270 GABRIEL IVO, Considerações acerca da revogação (É possível falar de revogação tácita?). In: Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, 2005, p. 207.

271 Escreveu o grande publicista: O que a norma nova superior acarreta é a perda da eficácia da norma inferior e anterior (...) Esta convicção nos advém da consideração de que as normas jurídicas só revogam normas de igual natureza. Relativamente às normas inferiores, elas limitam-se a paralisar-lhes a eficácia (Lei complementar na Constituição, 1971, p. 54-55).

272 Eis o que sustentara o Ministro: Confesso que sempre tive preferência, sobre o ponto de vista doutrinário, pelo entendimento segundo o qual as normas jurídicas somente se revogam por normas jurídicas da mesma natureza. Assim, somente Constituição revoga Constituição, lei complementar revoga lei complementar, lei ordinária revoga lei ordinária, decreto revoga decreto. A norma de maior hierarquia, em antagonismo com lex

inferior, apenas paralisa ou suspende a eficácia da norma de menor hierarquia, sem, entretanto, revogá-la

(trecho de voto como relator do Recurso Extraordinário n. 97.749-0/SP, Plenário, julgamento em 10.11.1982, DJ 04.02.1983 destaques do original).

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É esta, ademais, a posição que entendemos ter assumido o próprio legislador constituinte da Carta Política promulgada em 1988, como se verifica do enunciado prescritivo do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT),273

o que, de resto, fulmina posições em sentido contrário, porquanto, em termos normativos, indiscutivelmente poderia fazê-lo (como de fato o fez) o verdadeiro poder constituinte.

Estando presentes os vínculos de subordinação (verticais), mediante o critério hierárquico a norma superior sempre prevalece sobre a norma inferior com a qual é incompatível, expulsando está última do sistema do direito positivo (promove o desligamento da sua relação de pertinência com o sistema). Pode atingir o texto jurídico (se expressa), o que pode ocorrer de forma total (remove o documento normativo como um todo) ou parcial (remove ou altera apenas enunciados prescritivos ou parte deles), e em ambas as situações alcança indiretamente o plano das significações (as normas jurídicas são eliminadas reflexamente). Não atingindo o suporte físico (revogação tácita), a eliminação se dá diretamente no plano das significações, ou seja, é expulsa do sistema do direito positivo a norma jurídica (enquanto significação).

Vamos agora ao critério temporal (ou cronológico). Podemos considerá-lo o critério básico para a resolução dos conflitos normativos, pois é o mais comumente invocado, inclusive na prática legislativa. Por meio dele, a norma posterior retira a norma anterior do sistema do direito positivo.

E são três as possibilidades de aplicação do critério temporal. Uma expressa, quando o legislador enuncia de maneira manifesta o objeto da revogação, e por decorrência são suprimidas as normas jurídicas construídas a partir do texto jurídico afetado pela norma revogadora. E duas tácitas, sendo uma delas identificada quando a norma posterior é incompatível com a anterior, implicando a eliminação da mais antiga, e a outra, quando normas posteriores disciplinam inteiramente determinada matéria, eliminando norma(s) anterior(es) que regulava(m), ainda que parcialmente, aquela mesma matéria.

273 Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange: I ação normativa; II alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie (destaques nossos).

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Portanto, as normas jurídicas cronologicamente posteriores atingem a vigência e a validade das normas jurídicas que lhes forem anteriores, assim promovendo sua eliminação do sistema do direito positivo por três distintas formas: (1) expressamente, (2) tacitamente por incompatibilidade e (3) tacitamente pela regulação integral da matéria. De resto, é o que estabelece a própria Lei de Introdução ao Código Civil.274

Na primeira, expressa, a norma atinge o próprio texto jurídico, afetando indiretamente o plano das significações. Sendo caso típico de revogação, pode atingir documentos normativos, total ou parcialmente, suprimindo ou modificando um ou mais enunciados prescritivos.

Na segunda, por incompatibilidade, e na terceira, pela regulação integral da matéria, por ocorrer a revogação tácita, o plano da expressão não é afetado, não é atingido o texto jurídico, sendo eliminadas as normas anteriores exclusivamente no plano das significações.

Por último, o critério da especialidade. Trata-se efetivamente de critério dotado de características muito particulares, próprias das normas especiais, como já pudemos demonstrar. Difere dos demais critérios (hierárquico e temporal) porquanto sua aplicação não elimina norma jurídica alguma do sistema do direito positivo. É que a norma especial não revoga e não suprime normas jurídicas com as quais seja incompatível. Apenas prevalece, sendo aplicada para regular aquelas específicas situações.

A aplicação do critério da especialidade não atinge o plano da expressão, operando apenas no plano das significações. Todavia, mesmo no domínio em que atua, afeta as normas jurídicas com as quais é incompatível sem cortar-lhes a validade ou a vigência, apenas inibindo sua eficácia técnica (caso típico de ineficácia sintática) e, ainda assim, de modo parcial. Note-se, ao afirmarmos que a norma especial tolhe apenas parcialmente a eficácia da norma geral, estamos pontuando sua nota distintiva: não revoga, não retira, não expulsa qualquer outra norma do sistema.

274 Art. 2º, § 1º: A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela

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Por isso, o critério da especialidade tem por pressuposto que a norma especial não seja incompatível com outra norma a ponto de impedir sua aplicação para todas as situações. Caso isso venha a ocorrer, não estaremos mais a falar do critério da especialidade e tampouco de normas especial e geral, pois essa incompatibilidade total será resolvida pelo critério temporal, prevalecendo a norma posterior, com a expulsão da norma anterior.

Daí que apenas em certos casos é aplicada a norma especial, pois não alcança todos os casos disciplinados pela regra geral. É essa a razão pela qual as normas especiais são incompatíveis apenas parcialmente com as normas gerais. A norma especial prevalece para regular os casos específicos, ao passo que a norma geral, embora inibida sua eficácia em relação àqueles casos específicos, poderá ser aplicada para disciplinar as demais situações.

Pela aplicação do critério da especialidade, portanto, as normas especiais prevalecem sobre as gerais. Verificado o conflito entre norma geral e norma especial, independentemente da cronologia, a norma especial será aplicada para regular aquela específica situação. As normas gerais apenas não são aplicadas (diz- se, são afastadas ), mas não suprimidas do sistema. Havendo conflito, prevalecerá a norma especial, mas a norma geral continua no sistema, podendo ser aplicada para regular outros casos para os quais não exista disciplina por norma especial.

Eis então como opera o critério da especialidade: faz prevalecer a norma especial sobre a norma geral, seja anterior ou posterior. Atua sempre no plano das significações e afeta parcialmente a eficácia técnica da norma geral.

Portanto, norma especial não altera ou expulsa (expressa ou tacitamente) norma geral do sistema do direito positivo. Mas também a norma especial, em situação de conflito, não é afetada por norma geral.

As normas especiais, todavia, não prevalecem em duas situações: (1) quando em conflito com norma de superior hierarquia, prevalecendo sempre a norma situada em patamar mais elevado; (2) quando normas posteriores regularem inteiramente a matéria, operando-se a tacitamente a exclusão das normas especiais do sistema do direito positivo.

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Fixadas essas premissas, entendemos possível o estabelecimento de uma ordem lógica para a resolução das incompatibilidades entre normas jurídicas, mediante aplicação dos critérios de prevalência normativa, a saber:

(1º) hierarquia: sendo normas jurídicas de diferentes níveis hierárquicos, prevalecerá sempre a que for superior, expulsando a norma jurídica inferior e anterior do sistema do direito positivo (força ativa) e resistindo às normas jurídicas inferiores e posteriores (força passiva);

(2º) temporal (por regulação integral da matéria): sendo normas jurídicas de mesmo nível hierárquico, cumpre verificar se as normas jurídicas posteriores disciplinam inteiramente a matéria e, em caso positivo, são as normas jurídicas anteriores suprimidas, quer sejam elas gerais quer sejam especiais;

(3º) especialidade: estando as normas jurídicas em conflito no mesmo patamar hierárquico, não havendo também regulação integral da matéria, e existindo ainda colisão entre norma geral e norma especial, prevalecem sempre as normas especiais, sejam elas anteriores ou posteriores, todavia não há a eliminação (revogação) das normas gerais; e

(4º) temporal (incompatibilidade): tratando-se de normas jurídicas do mesmo patamar hierárquico, não havendo regulação integral da matéria e ausente norma especial, a norma jurídica cronologicamente posterior prevalece, expulsando a norma jurídica anterior do sistema do direito positivo.

Considerando, pois, os critérios de prevalência de normas jurídicas em caso de incompatibilidade normativa (hierárquico, temporal e da especialidade), a classe pela qual se dá a prevalência das normas (expressa ou tácita), seu alcance (total ou parcial) e como podem afetar (validade, vigência e eficácia técnica) documentos normativos, enunciados prescritivos e normas jurídicas, em síntese das nossas idéias confeccionamos o seguinte quadro dos efeitos da aplicação dos critérios de prevalência de normas jurídicas:

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Efeitos da Aplicação dos Critérios de Prevalência de Normas Jurídicas

Critério Classe Alcance Pano Afetado

total vigência e validade documento normativo expressa

parcial vigência e validade enunciado prescritivo total vigência e validade norma jurídica Hierárquico

tácita

parcial vigência e validade norma jurídica

expressa --- --- ---

total vigência e validade norma jurídica Temporal (regulação integral da matéria) tácita parcial --- --- expressa --- --- --- total --- --- Especialidade tácita

parcial eficácia técnica norma jurídica total vigência e validade documento normativo expressa

parcial vigência e validade enunciado prescritivo total vigência e validade norma jurídica Temporal

(incompatibilidade)

tácita

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CAPÍTULO IV

CONTROLE DE PRODUÇÃO NORMATIVA