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O patamar hierárquico da lei complementar

5.1. Lei Complementar

5.1.1. O patamar hierárquico da lei complementar

As notas que revelam essa natureza ontológico-formal das leis complementares têm levado a acirrados debates no tocante à existência ou não de superioridade hierárquica das leis complementares em relação às leis ordinárias. Isso ocorreu sob a égide do regime constitucional pretérito, mas também na vigência da nova ordem instalada com a Constituição de 1988.

Na vigência da Carta de 1967, em um primeiro momento caminhara a doutrina por assentar a superioridade das leis complementares, de modo que as leis ordinárias não poderiam revogá-las ou modificá-las, mas poderia uma lei ordinária ser revogada ou modificada por lei complementar. GERALDO ATALIBA,419 por exemplo, levando em conta a específica função das leis complementares à Constituição e seu especial processo legislativo, apontara uma prevalência formal das leis complementares, que estariam situadas em posição intercalar entre a lei constitucional e as leis ordinárias, destacando, inclusive, ter sido esta a razão da técnica legislativa utilizada pela Constituição 1967. Já na atual ordem constitucional, parte da doutrina continuou a sustentar serem as leis complementares superiores às leis ordinárias, para alguns, como HUGO DE BRITO MACHADO,420 inclusive quando a lei complementar disponha sobre matéria passível de regulação por lei ordinária.

Essa posição, todavia, foi refutada por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES,421 ao

entendimento de que leis complementares e leis ordinárias atuavam em campos distintos, encontrando ambas fundamento de validade diretamente na Constituição, de modo que a exegese meramente topográfica do texto constitucional, com relação à ordem dos veículos introdutores submetidos ao processo legislativo, não haveria como prevalecer ante a interpretação sistemática da Constituição.

Essa lição quanto à ausência de relação de hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária foi fortemente acolhida por nossa doutrina, tendo sido

419

Lei complementar na Constituição, 1971, p. 28-30.

420 Posição hierárquica da lei complementar. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 14, p. 29-22, A identidade específica da lei complementar. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 117, p. 51-69, e Segurança jurídica e a questão da hierarquia da lei complementar. Revista de Direito Tributário, n. 95, p. 65-77.

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adotada, inclusive, por GERALDO ATALIBA422 e, dentre outros, por CELSO

RIBEIRO BASTOS, o qual fez questão de destacar que ... a exigência de um quorum especial de votação para as leis complementares traduz, se quizermos, apenas a preocupação do constituinte em dificultar um pouco a mudança de certas matérias, por ele havidas como relevantes .423

Assim, no caso de a lei ordinária invadir seara própria da lei complementar ocorre vício de inconstitucionalidade, por infração à norma que delimita a matéria. Já na hipótese de lei complementar adentrar ao campo material de lei ordinária, há a chamada queda de status424 das normas jurídicas veiculadas pela lei complementar, pois estarão no mesmo patamar hierárquico das normas veiculadas por lei ordinária. Conquanto esta construção permita que se transite sobre o terreno normativo com o reconhecimento dos papéis exercidos pelas leis complementares e ordinárias, pensamos que em determinadas situações essa teoria pode não responder plenamente às prescrições do nosso sistema do direito positivo. É que o fato de a Lei Maior determinar a área de atuação das leis complementares e ordinárias não implica, necessariamente, a ausência de hierarquia para todos e quaisquer casos.

O fato da Constituição não estabelecer a superioridade hierárquica do veículo introdutor lei complementar com relação ao veículo introdutor lei ordinária não esgota a questão. Isto porque, pode a própria Lei Constitucional prescrever que, em específicos campos normativos, o exercício da competência para a produção normativa pelo veículo introdutor do tipo lei ordinária deva encontrar fundamento na Constituição e, também, esteja subordinado ao regramento veiculado por instrumento introdutor do tipo lei complementar.

422 E o fez ainda na vigência do regime constitucional pretérito (por exemplo, Alcance das disposições do Código Tributário Nacional e o conceito de norma geral de direito tributário. Revista de Direito Público, n. 32, p. 255- 256) e também diante da novel ordem instituída pela Constituição de 1988, ao sustentar a ausência de subordinação hierárquica da lei ordinária à lei complementar (Lei complementar em matéria tributária. Revista de Direito Tributário, n. 48, p. 105).

423 E continua o notável constitucionalista: A exigência de um quorum qualificado indica uma maior ponderação utilizada pelo constituinte, ao tratar de temas a serem versados por lei complementar. O constituinte de 88 na quis deixar ao arbítrio de uma decisão ocasional a desconstituição daquilo para a qual a Constituição dedicou procedimento especial. Absolutamente, isso não implica em hierarquia entre a lei ordinária e a complementar (A inexistência de hierarquia entre a lei complementar e as leis ordinárias. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n. 26, p. 14).

424 SACHA CALMON NAVARRO COELHO, A lei complementar como agente normativo ordenador do sistema tributário e da repartição das competências tributárias. In: Temas de direito público: aspectos constitucionais, administrativos e tributários: estudos em homenagem ao Ministro José Augusto Delgado, 2005, p. 553.

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De nossa parte, temos que essa questão foi enfrentada com propriedade por PAULO DE BARROS CARVALHO,425 quando, ao versar sobre a estrutura

escalonada própria do sistema do direito positivo, distingue a hierarquia sintática, de cunho lógico, da hierarquia semântica, esta bipartida em hierarquia formal e hierarquia material. Na hierarquia formal, as normas superiores estabelecem as regras de produção normativa das normas inferiores, é dizer, prescrevem como deve ser o processo legislativo. Na hierarquia material, as normas superiores fixam os conteúdos de significação das normas inferiores, ou seja, dispõem acerca do núcleo material a ser legislado pela produção de normas jurídicas de hierarquia inferior.

Quanto à forma, devem ser observadas as normas constitucionais sobre o processo legislativo das leis ordinárias (arts. 61 a 67). Contudo, o legislador ordinário não deve obediência apenas às regras formais estabelecidas pela Constituição. Isto porque, ao tratar do processo legislativo, o próprio constituinte determinou, no parágrafo único do art. 59, que Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis . Portanto, o mandamento constitucional exige do legislador respeito também às regras de produção normativa relativas à elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, atualmente veiculadas pela Lei Complementar n. 95, de 26.02.1998, diploma legal produzido para esta específica finalidade.

O fundamento de validade formal das leis ordinárias é encontrado sim na Constituição. Mas não somente nela. A produção normativa mediante a utilização do veículo introdutor do tipo lei ordinária deverá conformar-se, também, às prescrições estabelecidas pela Lei Complementar n. 95/98.426 Bem por isso, como conclui

PAULO DE BARROS CARVALHO,427 a Carta Constitucional, sob o aspecto formal,

estampou a superioridade hierárquica das leis complementares com relação às leis ordinárias.

425

Curso de direito tributário, 2005, p. 211.

426 Não pretendemos aqui tratar da efetividade da Lei Complementar n. 95/98, porquanto não estamos a abordar aspectos atinentes à observância ou não, pelo legislador ordinário, das prescrições veiculadas pelo diploma complementar e tampouco pretendemos discorrer acerca da existência de sanções normativas eficazes para desestimular práticas tendentes ao descumprimento daquelas regras sobre a produção normativa.

427

Curso de direito tributário, 2005, p. 212-213. No mesmo sentido, MARIA DO ROSÁRIO ESTEVES, Normas gerais de direito tributário, 1997, p. 83-84, e CARLOS VELLOSO, Lei complementar tributária, Revista de Direito Tributário, n. 88, p. 10. Nesse sentido, ainda, manifestaram-se os Ministros CARLOS VELLOSO e CARLOS AYRES BRITO quando do julgamento do Recurso Extraordinário n. 407.190-8/RS (Plenário, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, julgamento em 27.10.2004, DJ 13.05.2005).

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Em relação à matéria, igualmente não se põe em dúvida a necessidade das leis ordinárias se conformarem às regras constitucionais que delimitam a matéria. Todavia, do ângulo material, pode ser exigido pelo sistema do direito positivo que a compatibilidade da lei ordinária se dê também com relação a prescrições estabelecidas por intermédio de lei complementar. Nesse sentido, as normas introduzidas pelo veículo introdutor do tipo lei ordinária, como enfatiza PAULO DE BARROS CARVALHO, ... deverão procurar o âmbito de validade material de seu conteúdo prescritivo em normas de legislação complementar ,428 conformando-se, desse modo, tanto ao fundamento de validade constitucional quanto àquele outro fundamento fixado por lei complementar.

Portanto, há (1) normas jurídicas veiculadas por lei complementar que subordinam a produção normativa de leis ordinárias, havendo, neste caso, superioridade hierárquica das leis complementares com relação às leis ordinárias, e (2) normas jurídicas veiculadas pelo instrumento introdutor do tipo lei complementar e que não subordinam a produção normativa relativamente à legislação ordinária.

Podemos destacar, em matéria tributária, duas situações que evidenciam as distintas funções da lei complementar: (1ª) a exigência de edição, pela União, de lei complementar para instituição de empréstimos compulsórios,429 atuando aqui esse tipo de instrumento introdutor de normas sem subordinar hierarquicamente a produção normativa de lei ordinária; e (2ª) o comando veiculado pelo parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, acrescido pela Lei Complementar n. 104, de 10.01.2001, que prevê caber à lei ordinária o estabelecimento de procedimentos para que autoridade administrativa possa desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária,430 atuando aqui a lei

complementar como fundamento de validade, subordinando hierarquicamente, a lei ordinária destinada a regular os referidos procedimentos.

428

Curso de direito tributário, 2005, p. 212. 429 Constituição Federal, art. 148, incisos I e II.

430 Não estamos a enfrentar neste trabalho questões relativas à pertinência ao sistema do direito positivo deste enunciado prescritivo e das normas a partir dele construídas, especialmente diante de princípios constitucionais como os da legalidade, da livre iniciativa e da liberdade da atividade econômica. Nosso objetivo é apenas demonstrar como o sistema do direito positivo permite à lei complementar fundamentar materialmente a validade da lei ordinária.

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A superioridade hierárquica da lei complementar com relação à ordinária, portanto, dependerá do campo material em que atuem.431 Se leis complementares e

ordinárias atuarem em campos materiais distintos, encontrarão fundamento de validade apenas na Constituição, e neste caso, estarão em relação de coordenação horizontal, não havendo superioridade hierárquica. Entretanto, poderá existir subordinação hierárquica se for verificada a existência de um campo material comum,432 de modo que a lei complementar (subordinante) delimita a área material de autuação da lei ordinária (subordinada), a revelar, nesta hipótese, a supremacia hierárquica da lei complementar.