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Algumas considerações sobre o Budismo

No documento Agostinho da Silva (páginas 125-132)

III. O Regresso a Portugal (1969-1994) 1 Os Primeiros Textos

2. A prática epistolar e a defesa de uma via religiosa

2.2. Correspondência com José Flórido

3.2.1. Algumas considerações sobre o Budismo

Traçar pontes e encontrar paralelos entre espiritualidades ocidentais e orientais não significa, contudo, que se deva aceitar tudo o que é o pronunciado por suas técnicas e seus princípios filosóficos. Gostar do Budismo não é o mesmo que ser budista, por se falar inglês não quer dizer que se seja inglês.

Em termos práticos, quando se compara a oração cristã com a meditação budista, Agostinho parece preferir as virtudes da primeira. Quando Antónia de Sousa lhe pergunta se para si faz sentido o poder da oração logo Agostinho lhe responde, “Eu acredito nisso”. Mas logo a seguir, referindo-se a técnicas meditativas, e outras, mais à maneira do oriente, acrescenta: “Eu, o que não gosto, sabe, é da concentração provocada, não acho bonito. Eu não acho bonito um sujeito fazer exercício para ter poder. Acho que essa coisa de procurar poder é terrível! (…) Eu não acho bonito! Não acho bonito nenhuma forma de poder, nenhuma forma de conquista de poder. Fazer uns exercícios, estar assim ou estar assado horas seguidas para isso, não acho bonito.

Eu, no entanto, tenho verificado, porque verifiquei onde se pode chegar com todos esses exercícios zen, que são terríveis! O caminho físico para o zen no Japão é uma coisa danada, aguentar imóvel um Verão de Tóquio, picado por mosquitos que abrem cada buraco que não é brincadeira… São mosquitos ferocíssimos. E ficar quieto pensando na pergunta que o Mestre fez e a que é preciso dar uma resposta decente, não é brinquedo! Só o exercício de se sentar… Tentei isso várias vezes, sabe? E saía de gatas! Não havia maneira de me levantar! Então, para levar aquilo até ao fim deve ser uma coisa danada.”203

Mas atenção, com isto Agostinho não está a dizer que essas técnicas não produzem efeitos absolutamente admiráveis. Deixa- nos perplexos a forma como depois da recusa pessoal a essas práticas que, absolutamente, não serviam para si, nem aconselhava, não é o mesmo que dizer que elas não sejam absolutamente ajustáveis a outros. Por exemplo, será o caso de alguns monges budistas no Japão: “…quando a gente vê um sujeito, que passou aquelas coisas todas, vivendo a vida, é um espectáculo admirável! Lembro-me de um chá que me deu um monge zen com bolinhos de feijão, para depois me mostrar um jardim zen. Eu nunca vi uma alegria mais espantosa do que aquele homem! Ele não ria, ele não pulava, ele não nada, nem gesticulava. Era! Mas era a pura alegria, a plena alegria que jamais vi na vida. Tenho visto muita gente contente, raramente tenho visto gente alegre, e o melhor exemplo é esse monge zen, que tinha passado aquela trapalhada toda.”204

Igualmente, Agostinho parece ter dificuldade em aceitar a noção de “vacuidade” que constitui um dos principais conceitos da filosofia budista. Os outros podem ser resumidos assim: a) a constatação de que o sofrimento e vida têm uma relação intrínseca, mas que há um caminho para a eliminação do sofri- mento que se baseia numa “não-ação” que elimine a fonte do

203 Idem: 29 204 Idem: 29

“desejo”; b) a ideia de que tudo o que se existe se caracteriza por uma “impermanência” e que tudo se está constantemente a transformar; c) a ideia da ausência de “eu”, que não existe por si só, mas que é parte de um “todo” indissociável.

Ora, para Agostinho, a ideia de “vacuidade” constitui, desde logo, motivo de discordância. “Quando os budistas põem como objectivo não ter objectivo, eles põem efectivamente um objectivo, e é duvidoso que o homem consiga livrar-se de ter um objectivo, mesmo que o seu objectivo seja o de não ter objectivo. Bom, querer nada não há.”205

No entanto, é preciso que se diga aqui também que existem diferentes linhas budistas e que elas não são absolutamente homogéneas nos seus princípios. Agostinho está consciente disso. Por exemplo, em relação à ideia de “não-ação”, um dos princípios que o budismo mais tradicional muito preserva, de acordo com Amon Pinho e Romana Valente, “ele demarca-se de uma visão mais ortodoxa e convencional do Budismo (que apela à quietude e à inacção), sendo que o autor português envereda por um caminho, já milenarmente proposto por Hui-neng, um dos principais mestres do budismo zen, que não defende o “não-agir” como indispensável essência do Homem. De forma equivalente, como pode ler-se no autor português: “Os homens de acção são os oleiros de Deus; e não te esqueças de que até pensar é agir.” 206

Mas como vimos atrás, o autor português simpatizava muito com o budismo, sobretudo com o zen, que conjuntamente com um cristianismo mais sublimado, de facto universalista, e não só católico, ou protestante, ou anglicano, ou ortodoxo, constituem a seu ver, das maiores expressões espirituais a que a humanidade chegou e, porventura, serão elas que juntas deviam guiar um mundo, mas sem que tornem excludente qualquer outra manifestação religiosa, ou até ateia, que exista. Muito mais do que só este exclusivo domínio mental científico e político que

205

Idem: 55-56

206 Cf., Romana V. Pinho, O Budismo na visão de Agostinho da Silva, in O Buda e o Budismo no

atualmente reina, todavia sem o deixar de fora e aproveitando-o no máximo do desenvolvimento tecnológico conseguido e a conseguir, de forma a garantir o mais rapidamente possível, a maior liberdade e dignidade de vida possível para todos os homens que os salve de uma vida muito limitada pela obriga- toriedade que o trabalho trás.

3.2.2. D. Dinis e o “Culto popular do Espírito Santo”

Mas regressemos de novo à cultura portuguesa, e a alguns dos que melhor a souberam interpretar, para analisarmos mais em pormenor uma parte crucial do pensamento de Agostinho. Como já referimos, o período da história portuguesa que ele mais admira, e a que no discorrer das suas ideias sempre regressa, é o reinado de D. Dinis e a forma como, então, o reino se organizava na economia, na política, na educação, e que se poderá resumir da seguinte forma:

Uma economia de ajuda mútua, de cooperação, que se pode chamar de comunitarismo agro-pastoril, constitui a característica dominante da economia portuguesa na Idade Média.

Uma política de organização municipal, com seus forais, e suas constituições particulares, onde um rei aparecia em cortes para ajudar na coordenação territorial. Como ele gostava de dizer “uma federação de repúblicas democráticas”,207

sendo que este sentido de democracia não é, naturalmente, comparável ao atual.

Uma educação onde as pessoas aprendiam a fazer as coisas fazendo, por experiência direta, que no entender de Agostinho é uma forma de aprender absolutamente preferível à da escola atual.

Depois, as importantes reformas agrícolas pelo Rei introduzidas que deram origem ao imenso Pinhal de Leiria e que serviram para impedir que as areias do mar tornassem os terrenos agrícolas menos férteis, tendo por isso ganho o cognome de O

Lavrador, de tal forma importantes que até Fernando Pessoa o

descreveu na sua Mensagem como “um plantador de naus a haver”, as tais que haveriam ir às descobertas.

Agostinho da Silva resume assim: “Acho a época de D. Dinis perfeita (…) A Rainha Santa e o rei-poeta. Calcule, o casamento de um poeta e de uma santa, que coisa extraordinária! D. Dinis com os Estudos Gerais. Depois é que transformaram aquilo em universidade, que veio a dar no que deu. Estudos Gerais, estudo geral para toda a gente e geral para todos os estudos, que outra coisa quereríamos para Portugal senão isso? Toda a educação portuguesa devia ser essa. Voltar aos Estudos Gerais e ao D. Dinis.”208

Então, conclui o nosso autor, há que disciplinar o processo de produção e de distribuição, de forma a chegar-se a uma economia comunitária que se inspire naquela que existiu naquele período. Para construir uma economia mais humana, pois que é esse o exemplo que nos dá a organização económica medieval em Portugal. O que a Europa trouxe para Portugal foi uma economia capitalista, uma economia de luta. Ora, muito melhor é uma economia de convivência e de cooperação comunitária, de autonomia municipalista, com uma distribuição mais equilibrada das riquezas, como era a que caracterizava a economia portuguesa da Idade Média, antes desta importação europeia. Tipo de economia que foi liquidada por essa outra importada.209

A compreensão da organização da sociedade portuguesa no reinado de D. Dinis é absolutamente fulcral para a compreensão da filosofia agostiniana. A tudo isto deve ainda relembrar-se a importância que, para si, tem o culto popular do Espírito Santo, como já se disse, instituído neste período em Portugal pela Rainha Isabel de Aragão. Todo este período medieval português constitui em Agostinho, uma excelente fonte inspiradora de futuro a construir que sempre acompanha a sua utopia. Em carta escrita no mês de dezembro de 1992 e enviada para perto de uma centena de

208 Idem: 77 209 Cf., idem: 179

amigos, podemos testemunhar do valor que ele reconhece neste passado português. Em altura já muito próxima do final da vida, dizia assim:

“Resumo da ideologia do Povo Português nos séculos XIII e XIV, transmitida ao Brasil por seus adeptos que ali se foram acolher; passada ao futuro e, por ele, à criativa Eternidade para os que emigrem para o mais íntimo de si próprios e aí se firmem para sempre.

Missão de Portugal: Sacralizar o Universo, tornando Divina a Vi- da e Deus real.

Meios: Desenvolvimento dos Povos pela inteira aplicação da Ciência e da Técnica, inclusive nos sectores da Economia, da Política, da Administração Pública e da Filosofia. Conversão da pessoa à adoração da Vida.

Características do que houver no Sagrado: Criança como a melhor manifestação da poesia pura e como inspiradora e suporte, e incitadora a ser criança de todos os que existam. O gratuito da vida. A plena liberdade de todo o ser.

Dezembro de 92. Com toda a vontade de lhe ser fiel - Agostinho”210

Era este, em síntese, o seu ideal de Portugal e de qual deve- ria ser o seu serviço de humanidade.

Também em fase já derradeira da sua vida, em entrevista filmada dada a António Escudeiro no início de 1990211 que havia de ser publicada em livro e em “dvd” em 2006, fala o nosso Professor longa e pormenorizadamente sobre o “culto popular do Espírito Santo”. Como já falámos atrás sobre “o culto” deixa- remos apenas uma breve síntese que, de alguma forma, possa complementar o que já se disse:

Isabel, princesa de Aragão, vem para Portugal casar com D. Dinis e trás a Teoria consigo. Nessa altura o Rei de Aragão

210 Agostinho da Silva, As Últimas Cartas do Agostinho…, org. de Luís Santos, Alhos Vedros,

Cooperativa de Animação Cultural de Alhos Vedros, 1995.

211

Agostinho da Silva: ele próprio (transcrição de uma gravação realizada por António Escudeiro),

também era Rei de uns territórios em Itália, onde vivia essa comunidade de franciscanos espirituais. Com Isabel e Alenquer, vila oferecida pelo Rei a sua mulher, começam em Portugal as Festas do Espírito Santo que entre o povo português se passaram a designar por “culto popular do Espírito Santo”.

Por outro lado, vivia em Barcelona um médico, Arnaldo de Vilanova que se escreveu com Isabel e se interessava muito por esses problemas teológicos, o da Idade do Espírito Santo. “Formado pela leitura das obras de Joaquim de Fiore, Arnaldo Vilanova, alquimista e médico catalão de renome (teve como pacientes os reis de Aragão e papas) terá iniciado a princesa Isabel de Aragão (futura rainha de Portugal) nas doutrinas do pseudo-herético Joaquim de Fiore que, ao casar-se com D. Dinis, terão obviamente sido transmitidas ao monarca português. Devido à imaginação, à sapiência e à formação (e, porventura, à predes- tinação) de Dinis, as teses joaquimitas terão conduzido o rei, com a concordância e a ajuda da sua mulher à criação das Festas do Espírito Santo.”212

Joaquim de Fiore era um dos seguidores de S. Bento. “ O modelo joaquimita é, então, beneditino: proclama-se a exaltação e a vivência da humildade, da solidão, do silêncio e da simplici- dade, na plena experiência do comunitarismo primacial da igreja. E embora Agostinho professe o ideal franciscano de pobreza, também se move pelas regras de S. Bento.”213

Joaquim de Fiore enaltece a Jerusalém Celeste em detrimen- to da Roma temporal estabelecendo uma relação entre o “mundo dos homens” e a “cidade de Deus”, usando aqui a terminologia utilizada de Santo Agostinho que seria continuada pelos pensadores cristãos ligados à Igreja durante todo o período medieval. São Tomás de Aquino que é posterior ao abade beneditino continuará a fazê-lo em termos semelhantes, embora depois lhe tenha juntado a filosofia aristotélica, o que veio trazer

212

Romana V. Pinho, Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva (TM-UL, 2004), Lisboa, IN- CM, 2006, p.259.

novas possibilidades ao ocidente no arejamento racionalista que se haveria de fazer.

Mas prosseguindo com Fiore e com as virtudes deste espiritualismo cristão, “A vinda do Paracleto (…) é a abertura de uma nova exegese espiritual. O Espírito Santo é o elo que faz a mediação entre a divindade e os seres humanos. Neste sentido, o tempo pentecostal será qualitativamente dos tempos predeces- sores, conquanto, nada indica que seja anulador do que lhe é temporal e cronologicamente anterior, ao invés, subsume tudo quanto existiu até si. Todavia esta subsunção é a renovação gradual e espiritual do Cosmos: o tempo futuro é o apogeu da interiorização, da purificação e do rejuvenescimento supremos. A Idade do Espírito não nega nem o Pai nem o Filho, outramente, frutifica-se no seu amor e revela-se como tempo redentor daquilo que mais obscuro e decadente existiu nas idades antecedentes.”214

Como refere Romana Pinho, “Depois de ter existido a Idade do Pai (criadora e legisladora) e a Idade do Filho (amorosa e caridosa), seguir-se-á a Idade do Espírito Santo (graciosamente plena). Isto é, o tempo da abundância, da liberdade e da criatividade e que é metaforicamente retratado através da coroa- ção de uma criança (ou de uma pessoa pobre).”215

Os três pontos essenciais da festa do Espírito Santo são os seguintes:

1. A coroação de um menino como imperador do mundo. A

No documento Agostinho da Silva (páginas 125-132)