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Leonardo Coimbra e o “Criacionismo”

No documento Agostinho da Silva (páginas 149-153)

IV. Influências Filosóficas e Religiosas (outros testemunhos)

1. A Faculdade de Letras do Porto

1.1. Leonardo Coimbra e o “Criacionismo”

Chegando agora à parte das influências em Filosofia propriamente dita, ou melhor, a partir das aulas de Filosofia “que convém, por ser tema principal, dar letra maiúscula”,248

elas eram dadas por Leonardo Coimbra, o próprio fundador da Faculdade de Letras do Porto, da qual também foi diretor, e já por duas vezes Ministro de Instrução Pública, em 1919 e 1923, e deputado. Foi também cofundador do Movimento da Renascença Portuguesa juntamente com Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Álvaro Pinto.

Para além de Professor de Filosofia Leonardo Coimbra foi também seu Professor de Psicologia Geral. Mas para lá da fama e da eloquência nas aulas, Agostinho achava-o frio e distante, de maneira que também para com ele adotou comportamento semelhante, o que se foi manifestando num alheamento quase total das suas aulas e, consequentemente, em resultados mais que sofríveis, o que seria de causar estranheza num aluno que praticamente só tinha vintes nas avaliações. De maneira que, tendo sido o afastamento imposto por Agostinho quase absoluto, a determinada altura foi Leonardo Coimbra que se decidiu a ir ter com ele para resolver o problema da sua nota que por ser tão baixa lhe estragaria a média, propondo-lhe o seguinte. Diz Agostinho: “Ele me daria nota que a não baixasse e ambos esperaríamos com paciência que um dia a mosca filosófica me picasse; moscardo pelo menos, impliquei, que não irá com mosca.”249

Podemos concluir por aqui que, nesta altura, era grande o afastamento de Agostinho da Silva em relação à Filosofia e para si absolutamente nada motivadora.

Todavia, não significa isto dizer que Agostinho da Silva não seria influenciado pelas ideias do seu Professor, tanto que mais

248 Agostinho da Silva, ibidem: 64 249 Idem: 65

tarde ele se lhe dirige em Reflexão como um dos bons mestres que teve.250

Leonardo Coimbra era formado em Matemática e Filosofia, e era reconhecidamente dotado de grande sensibilidade literária e poética. Ao tempo, elaborou uma hermenêutica sobre alguns dos maiores pensadores contemporâneos portugueses como foram Antero de Quental, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e Guerra Junqueiro. Entre os seus discípulos encontramos alguns dos filósofos portugueses de maior nomeada como foram José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos e Santana Dionísio.

Em 1913, quando se candidatou ao lugar de Professor Assistente de Filosofia, apresentou como tema de tese o “Cria- cionismo” onde em linhas gerais defendia que a realidade é sempre pensamento. Como ele sustentava, é a própria atividade mental que vai continuamente determinando a realidade, sendo que, por sua vez, o espírito se vai determinando a si próprio na medida em que vai moldando a realidade.

Até 1923, as suas propostas passam por unir o “Criacionismo” com o pensamento libertário da época. Depois, aos poucos, vai-se aproximando cada vez mais de uma ideologia cristã, até que acaba por aderir ao catolicismo pouco tempo dantes de morrer em acidente de viação. Em síntese, poderá dizer-se que nele o Homem é fundamentalmente um ser saudoso, numa saudade que se caracteriza, simultaneamente, por uma tensão entre imanência e transcendência. Existe como que uma nostalgia da realidade, onde o Amor é a nota de unidade com Deus e a matéria não é senão o soro do espírito. Quanto mais amor houver, maior é o nível de consciência no homem, sendo que se podem definir vários níveis de amor e correspondentes níveis de consciência.

Em Leonardo, o homem vive com saudade do Paraíso, de acordo com o mito bíblico do Génesis após a “queda”, ou melhor,

250 Cf. Romana V. Pinho, 2006: 102, cit. Agostinho da Silva, Reflexão à Margem da Língua Portuguesa,

saudoso de um estado em que a consciência humana ainda não se tinha precipitado para a exterioridade e a materialidade, e que se pode designar como uma “saudade metafísica”.

Quando, em inícios da década de 40, se verifica algum afastamento do pensamento clássico e maior envolvimento de Agostinho da Silva com o cristianismo, recordemos que em 1942 e 1943, publica cadernos sobre “O Cristianismo” e “Doutrina Cristã”, demonstrando, tal como o autor de “A Alegria, a Dor e a Graça”, uma afinidade inegável com o cristianismo primitivo e a necessidade prática de se ser na vida um bom cristão, en- contramos igualmente neles uma tentativa de ligação da praxis cristã a um espírito libertário, anarquista, que tinha larga adesão na época entre a intelectualidade portuguesa; a este caminho comum acresce ainda o facto de ambos terem assumido em determinada altura da vida uma aproximação e adesão ao catolicismo.

Mas se é nessa condição que Leonardo Coimbra haveria de deixar prematuramente a vida, o pensamento de Agostinho da Silva há-de ganhar novos e vigorosos contornos que muito o afastarão deste, em si, prematuro estado de espírito. Em Agostinho, com o tempo, como temos visto, vão convergindo uma panóplia de correntes filosóficas que originarão um outro pensar.

Seguindo Romana Pinho, “No pensar leonardino, as pre- missas estipulam-se organicamente da seguinte forma: «A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é.» Para Coimbra, a Graça surge simultaneamente como uma espécie de terceiro estádio (isolado dos supostos estádios de Alegria e de Dor) e como patamar unificador destes três sentimentos, ou seja, se, por um lado, A Graça se desvela após a vigência da Alegria e da Dor (e, nesta perspectiva a Graça é um estádio sentimental), por outro, a

e diacronicamente todos os outros sentimentos. Neste sentido, a

Graça é.”251

No desenlace do pensamento de Agostinho os conceitos de

Amor e Graça têm também uma representação fundamental.

Continuando com Romana Pinho, pode concluir-se “que a Graça surge no pensamento de Agostinho da Silva como causa primeira e última do ser do Homem. Primária e essencialmente o Homem é Graça, contudo, o seu percurso mundano fá-lo, na maioria das vezes, afastar-se da sua essência, da sua originalidade, da sua infância. Para o autor é a criança que mais e melhor é Graça, na medida que ainda não a desvirtuou e escondeu. (…) Se a Criança é a Graça excelsa e plena, então, é a ela que devemos voltar, coroando-a Imperatriz e rainha do nosso ser mais íntimo e das nossas vontades e decisões.”252

Por outro lado, se o “Criacionismo” de Leonardo é a expressão pura e plena de uma filosofia da alegria, do amor, da liberdade e do otimismo, mas sem que se cinda dos seus opostos, pois que “no processo dialético ela é também pessimismo, dor e cisão,253em Agostinho, embora não se afastando substancialmente desta proposta, essa atração dos contrários (dor e alegria, otimismo e pessimismo) é constitutiva de uma mesma essência, existindo como que uma síntese superadora, paradoxal, que na obra de Agostinho não pode ser entendida de forma similar em Leonardo Coimbra. “Em última instância a síntese agostiniana, que tendemos a apelidar de transantinomização, alcança-se através de um salto e não através da dialéctica.”254

Ou seja, enquanto que em Leonardo a transantinomização é, sobretudo, dialética, em Agostinho dá-se numa ascese que permite superar as antinomias. “Dor e Morte, de natureza violenta e triste, só podem ser minimizadas com a vivência de um sentimento superior que, de certa forma, tudo funda e supera – Amor e Graça.”255

251 Idem: 124 252 Idem: 134 253 Cf., idem: 105 254 Idem: 111 255 Idem: 125

Assim, como se pode concluir, existem de facto algumas similitudes entre as ideias dos dois pensadores, sobretudo, se nos situarmos face a Agostinho em determinado período da sua vida que corresponde a uma significativa exaltação no seu pensamento dos valores cristãos, podendo até falar-se numa adesão a uma praxis católica, o que como já se disse ocorreu também com Leonardo. Todavia, devemos dizer que Agostinho nunca reconheceu qualquer espécie de discipulado entre si e o seu Professor. E o mesmo, podemos avançar já, viria a acontecer com António Sérgio. Como ele próprio diz, “De tudo se pode talvez concluir que realmente erram os que me julgam discípulo de Leonardo, quanto a pensamento, como erram decerto os que me põem no grupo de Sérgio.”256

O que, decerto, não significa dizer que não terão existido importantes influências entre esses autores e Agostinho, porque existiram. Vejamos, então, que relações se podem estabelecer entre o pensamento de Sérgio e de Agostinho.

No documento Agostinho da Silva (páginas 149-153)