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Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa

No documento Agostinho da Silva (páginas 164-168)

IV. Influências Filosóficas e Religiosas (outros testemunhos)

4. Vivências brasileiras

4.1. Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa

Neste período em que Agostinho da Silva reencontra Jaime Cortesão no Brasil, o regresso ao Rio de Janeiro poderá estar relacionado com o facto de ter conhecido e de se ter ligado à filha

279

idem: 178, cit. Agostinho da Silva, Educação de Portugal, pp. 26-27

280 Idem: 178-179 281 Idem: 180 282

Idem:175, cit. Agostinho da Silva, «Pensamento em Farmácia de Província», 2 de Março de 1977, (inédito assinado João Cascudo de Moraes, Fevereiro a Julho de 1977), in Dispersos, p.647

do médico, Judith Cortesão, que vem consigo para a Serra de Itatiaia, primeiro lugar de residência do casal, no Brasil.

Como já referimos, neste período da vida de Agostinho em Itatiaia, os encontros de Agostinho com Cortesão aumentam de intensidade, dado o novo e forte vínculo familiar que os passa a unir, o que muito vai contribuir para uma forte interação de ideias entre ambos. Mas com eles, outros intelectuais portugueses e brasileiros estão presentes nessas interações de ideias. São, entre outros, os casos dos filósofos Vicente Ferreira da Silva e de Eudoro de Sousa (este tal como o nosso autor também filólogo de formação), constituem duas das principais figuras com quem Agostinho mais conviveu nesta altura. Os três fazem parte do designado Grupo de São Paulo, nome atribuído “ao grupo de intelectuais que, nas décadas de 40 e 50, se encontrava em São Paulo para discutir questões de ordem filosófica.”284

De resto, como já vimos, com Vicente e com sua mulher, Dora Ferreira da Silva, chegaram a viver durante algum tempo em comunidade na casa de Itatiaia. Com Vicente Ferreira da Silva “na serra brasileira havia a intenção de se construir um mundo novo e um homem livre e, ao mesmo tempo, visava-se restaurar o elo com a divindade, por via da crença numa nova religião que o pensador português havia criado no Uruguai: o Alcorão.”285

Este encontro com Vicente e Eudoro constituem um período de aceso debate filosófico que coloca no centro da reflexão as relações entre Deus, o homem e a sociedade. Como já analisámos, em texto produzido durante este período intitulado “Alcorão”, a proposta de Agostinho é a de que Deus, princípio absoluto de tudo o que existe, é o mundo sendo; tudo o que existe é parte integrante de Deus e, assim, é tudo e nada, simultaneamente, imanência e transcendência. Em vez de um pensamento dual, a proposta do nosso autor tem uma dimensão paradoxal que “sugere a união dos contrários”.286

Esta dimensão holística de pensar o

284

Idem: 236

285 Idem: 234 286 Idem: 235

Absoluto é igualmente partilhada por esses dois filósofos, dando-

se dessa forma luz ao debate. Nos três existe a ideia de que o homem deve viver a vida como se fosse um jogo; uma dialética em que o Homem só se cumpre inteiramente quando “Solidão” e “Amor”, união de opostos, se fundem.287

Em Agostinho, Vicente e Eudoro, o que interessa é a relação dos homens em sociedade e na sua relação com o Deus Supremo. Para eles, “o Homem é um ser simultaneamente profano e divino, um ser adventício de si próprio, do Mundo e de Deus”,288

surgindo ambos, Homem e Deus, como partes integrantes de uma única realidade. Assim, o Homem surge como “ponte entre si próprio e os outros, entre si próprio e Deus”,289

num sentido em que liberdade e vontade são dimensões intrínsecas ao compor- tamento humano, a partir das quais se vão determinando as possibilidades do mundo. Para eles, ser “homem é ser-se essen- cialmente liberdade e vontade. Quando o eu (se) reconhece (n)o outro, realiza-o livre.”290

Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa têm em comum a formação académica de base em filologia clássica, onde a civilização grega e a dimensão do sagrado constituem um apelo irrecusável. Nessa presença indissociável da divindade no mundo, nessa busca constante do absoluto, o Deus de Eudoro entrecruza- se com o de Agostinho como “um Deus paradoxal, de tudo e que a tudo reúne. (…) Só sendo vários e nenhum deles contribuirás para que seja Deus o todo e o nada.”291

Eudoro de Sousa inspira-se no pensamento do seu tão apreciado Heidegger de “homo faber”, ou “homem sendo”, que também encontramos em Agostinho, “o Mundo ou o conceito de Mundo, é a abertura para todas as possibilidades, é, não um projecto acabado e imutável, mas um projecto ou um jogo 287 Cf., idem: 242 288 Idem: 236 289 Idem: 237 290 Idem: 240 291

Idem:249, cit. Agostinho da Silva, Pensamento à Solta: um manuscrito autógrafo, introdução, leitura paleográfica, fixação do texto, notas históricas e filológicas de Pedro Agostinho da Silva, Salvador da Bahia, EDUFBA, 2006, p.179

(metáfora desde sempre utilizada pelos dois pensadores) inaca- bado e mutável que se deixa moldar curiosamente pela relação Homem-Mundo. Em razão, poder-se-á afirmar que não é o Homem que constrói o Mundo, nem é o mundo que constrói o Homem, mas que é o co-jogar dos (ou entre os) dois que faz haver Homem e faz haver Mundo…”292

Para ambos os autores, “o Homem enquanto um dos ângulos do Triângulo da Complementaridade (os outros são o Mundo e Deus), é um inventor de Mundos que, descontinuamente, os vai superando com o objectivo de alcançar aquilo que já não é mundano, isto é, um estádio supra e extra mundano.”293

Seguindo Romana Pinho, “a partir do momento em que o Homem empreende um projecto de ultra-passagem, logo, de aperfeiçoamento e de ascese, tem a noção de que a porta de entrada no Mundo Novo ou do Mundo outro é mais estreita, polida e de difícil acesso. Assim, deve o Homem limpar-se de tudo o que é superficial e irrisório para poder transpor a porta (…) No fundo o que é imperativo é distinguir o Ser do Ter. O Homem é aquilo que ele é e não aquilo que ele tem, ideia tão difundida pela tradição oriental (…) Como diz Agostinho: “Ó bela cavalaria / Cavalo bem arreado / para o Ser galope largo / para o Ter freio apertado”.294

E concluindo, “já havíamos anunciado que os dois autores luso-brasileiros sentiam afinidades entre si, porém, o que é de realçar é que tanto um como outro apresentam filosofias assaz semelhantes no que diz respeito ao reconhecimento do Homem como ser cósmico e religioso. Para os dois pensadores, o Homem é um ser paradoxal, tanto humano como divino, assim como Deus é, por excelência, o maior dos paradoxos e o agente absoluto da trans-substânciação.”295

292 Idem: 245-246 293

Idem: 253

294 Cf., idem: 251-252, cit. Agostinho da Silva, Quadras inéditas, Lisboa, Ulmeiro, 1990, p.78 295 Idem: 252-253

No documento Agostinho da Silva (páginas 164-168)