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3. Conceitos e significados

3.2. Etnia e Grupo étnico

3.2.1. Algumas questões prévias

Como vimos, a identidade é um fenómeno de representação indissociável da relação entre o Eu e o Outro. Os critérios de identificação do observador condicionam, ou determinam, a transmissão de um etnónimo (p. ex.: língua, religião, costumes, hábitos de alimentação, sistemas sociais, posição na hierarquia da comunidade, etc.), e podem, ou não, estar ligados a um antepassado comum (cf. Escacena, 1992; Bourdieu, 2011, p. 57ss.).

É neste sentido que a representação dos grupos étnicos nem sempre corresponde ao modo como estes se identificam ou se individualizam perante outros. Muitos desses grupos resultam da presença do colonizador, não só devido a situações que requerem uma unificação, mas também das representações que este constrói e que denominam outras comunidades. Pode dizer-se que a relação de pertença étnica pode ser, tal como nos restantes elementos que compõem a identidade, alteroadscrita ou egorreconhecida consoante as circunstâncias do contacto que lhe dá sentido. Esta situação aplica-se ao tema deste estudo, na medida em que alguns documentos referem um hidrónimo, um topónimo ou um suposto território (Tartessos), e um etnónimo (Tartéssio) sem que saibamos ao certo se esses nomes eram reconhecidos pelas comunidades que habitavam um espaço indefinido (Martí-Aguilar, 2009, p. 89ss.).

Se sairmos do foco cronológico e histórico abarcado por este trabalho, verificamos que as designações étnicas presentes nestes textos são, muitas vezes, estratégias desenvolvidas para a apreensão ou simplificação de uma realidade que não é a do observador. Como tal, está sujeita a generalizações, consoante a distância geográfica entre o observador e o elemento representado (cf. Hdt. II, 32. 4*). Isto impede, naturalmente, a apreensão das especificidades de cada grupo humano, bem como dos vários patamares da identidade46.

46 Para exemplificar, podemos reflectir sobre o modo como um indivíduo se identifica consoante as circunstâncias: para uma pessoa que viva na nossa cidade ou aldeia, vivemos na rua X. Para uma pessoa de uma cidade diferente, somos da cidade ou aldeia Y. O mesmo pode dizer-se em relação a uma região (p. ex., Beira Alta). Para uma pessoa de nacionalidade diferente, recorremos à nossa nacionalidade para tornar reconhecível a nossa pertença. Para alguém de outro continente, somos europeus.

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No caso da presença colonial no actual território de Angola, os Portugueses procuraram sistematizar informações no sentido de definir uma "certa arrumação etnológica" (Mendes Correia, apud Estermann, 1983, I, p. 18). Este objectivo norteou a realização dos Censos de 1940, que consistiram no levantamento de semelhanças e diferenças a vários níveis: aspecto físico, organização social, língua, etc.

O uso isolado de qualquer um destes critérios conduziria a resultados bastante díspares e, consequentemente, resultaria na elaboração de mapas completamente diferentes. Porém, muitas das informações utilizadas para a construção destes mapas eram indirectas (Diniz, 1918; Estermann, 1983, I, pp. 18-19; Henriques, 2004) e, como tal, podiam não representar a realidade que se pretendia apreender. Podemos estender este comentário ao debate sobre a localização da nascente do Nilo em Hdt. II, 32. 1-3*, bem como ao pouco conhecimento dos territórios interiores, como foi apontado em 2.3.1 (Bühnen, 1992, p. 45; Kashtan, 2000, p. 380; J., Ap. I, 60 - 66*).

Esta individualização colocou alguns problemas, sobretudo com o uso do critério linguístico (Henriques, 2004, imagem 18). Este uso resultou, p. ex., na definição de quatro grupos no distrito de Huila: Ambo, Humbi (e "tribos afins"), Nhaneca e Hereri. Esta divisão, apesar de útil para o colono, não explicava casos de pequenos grupos que falavam a mesma língua de um grupo mais alargado, mas que se consideravam (e eram considerados) diferentes. P. ex., os Kedes falavam a mesma língua dos Cuanhamas, que por sua vez estavam integrados no grupo Ambo (Estermann, 1983, I, pp. 17-19; 22).

Esta ideia reforça uma afirmação: os critérios de observação, vertidos para um discurso, assinalam diferenças significativas entre a realidade observada do agente externo e a

realidade vivida do agente representado. Ao nível dos etnónimos, podemos encontrar quatro

modos distintos de designação (cf. Crowley, 1993, pp. 280-284): 1) nome pelo qual o grupo se designa a si mesmo;

2) nome pelo qual o grupo é conhecido para os seus vizinhos;

3) nome dado por um observador externo a 1 e 2 (viajante, comerciante, colonizador, etc.)

4) nome transmitido pelos informadores de 3.

Qual destes modos representa a transmissão do topónimo/hidrónimo Tartessos e do etnónimo Tartéssio? Estes nomes eram reconhecidos e utilizados pela(s) comunidade(s) representada(s) na sua auto-definição? Tartessos é um exemplo entre, certamente, muitos outros (cf. Hecateu,

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agente externo identifica uma comunidade pode ser assumido por esta nas relações (digamos assim, para simplificar) internacionais (Moret, 2004, p. 35); o nome próprio do grupo pode ser utilizado quando este contacta com outras comunidades vizinhas, familiarizadas com a sua organização social (cf. Crowley, 1993, p. 284ss.)47.

Não é ocasião para desenvolver este tema com maior detalhe. De qualquer modo, estes apontamentos pretendem assinalar as limitações de um estudo que se debruce sobre documentos escritos com cariz etnográfico e sobre as comunidades aí referidas. Estes problemas colocam sérios entraves, p. ex., à definição dos territórios dessas comunidades, ou melhor, dos seus limites.

A cultura material, por seu turno, é um critério de identificação que foi introduzido no discurso científico de finais do século XIX e pode não representar a identidade ou a individualização de uma comunidade (Arruda, 2013). O recurso a este critério implica a

selecção de materiais considerados como "fósseis directores"; esses materiais podem

apresentar dispersões muito diversificadas e podem, inclusive, não coincidir com costumes funerários ou mesmo com áreas de dispersão de uma língua. E estes critérios, como se tem vindo a salientar, podem não ser aqueles que uma comunidade utiliza para se individualizar perante outras.

Deste panorama, podemos concluir que três campos de estudo – História de África, História Antiga e Arqueologia Proto-histórica – aparentemente muito diferentes, colocam problemas muito semelhantes (cf. Bühnen, 1992, passim), apesar de todas as diferenças existentes entre os cenários históricos em que se desenvolvem. Uma leitura comparada pode não conseguir reproduzir, fielmente, o Passado, mas pode desenvolver ferramentas úteis para colocar alguns pontos de interrogação sobre as relações sociais, de identidade e de pertença.

Um desses pontos de interrogação recai sobre o modo como podemos estabelecer fronteiras ou limites a partir de representações vertidas para a documentação escrita. Seremos capazes de desenhar, arqueológica ou linguisticamente, os limites de um território mencionado nessas fontes? Em muitos casos, é possível verificar que determinados acidentes geográficos são utilizados para delimitar o espaço de ocupação de um povo (p. ex. Hdt. VII, 110* e nota; 111; I, 104.1; Herodoro, St. Byz. s.v. Κυνητικόν*; Prontera, 2003, p. 114), o que pode dificultar a análise desses territórios.

A definição de fronteiras, atendendo à referida organização do território colonial angolano, é determinada pela lógica civilizacional inerente a dois contextos diferentes: o do observador e o do observado. Este aspecto é evidente na grande diferença entre a percepção

47 V. Nota 44.

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cartográfica do território colonial e a concepção de território das comunidades residentes implicadas nesse processo.

O colono, neste caso o observador, apercebendo-se da importância de alguns marcadores territoriais das comunidades residentes, procurou desmantelá-los. Este desmantelamento, marcante na intervenção colonial e na imposição de um novo pensamento dominante, resultou na delimitação das fronteiras de um País. Com a independência surge uma tentativa de consolidação de uma unidade, de uma identidade, a partir dos limites impostos pela presença colonial. Este exemplo (cf. infra, 3.3.2), revela que essas fronteiras não são estáticas ao longo dos anos, e reforça a ideia de que a identidade étnica/ política é uma construção histórica que está sujeita a muitas transformações e reinterpretações.

É no contexto colonial que o termo Etnia entra no vocabulário europeu, derivando, directamente, do grego Ἔθνος (Cardete del Olmo, 2004, p. 18). Veremos estes dois conceitos individualmente, de modo a procurar perceber os limites da sua aplicação aos resultados do presente estudo.