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3. Conceitos e significados

3.2. Etnia e Grupo étnico

3.2.3.2. Em Heródoto

Ἔθνος* é utilizado por Heródoto em mais de cento e quarenta ocasiões (Powell, 1938,

s.v. ἔθνος), exclusivamente para grupos humanos. Seria desnecessário apresentar todos esses

excertos no Anexo. Por esse motivo, optou-se por seleccionar os exemplos mais expressivos e que melhor representam os sentidos do termo na obra herodotiana.

Este tema não é novo (cf. Jones, 1996; Cardete del Olmo, 2004, com bibliografia), mas um estudo exaustivo dessas referências permite alargar horizontes na análise de um termo cujo uso coloca alguns problemas. Por um lado, a relação entre ἔθνος e γένος parece evidente, uma vez que se associam, amiúde, às mesmas entidades (Cardete del Olmo, 2004, p. 18). Por outro, ἔθνος não parece corresponder "a una realidad prefijada, sino que se basa en un concepto abstracto de unidad y cohesión [...]" (ibid., p. 18). Estaria este autor em condições de apreender essa coesão em todas as sociedades que referiu utilizando este termo?

Uma das principais dificuldades no estudo da obra herodotiana é o facto de o autor não tratar com detalhe os conceitos que utiliza (Jones, 1996, p. 315). A análise dos contextos em que o termo surge permite, no entanto, matizar a ideia de que é um conceito de unidade e

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coesão. Este primeiro sentido parece expor-se com alguma evidência em VIII, 144.2*, em que os atenienses referem o mundo grego como uma unidade em termos de língua, costumes, comunidade de santuários e sacrifícios aos deuses (Jones, 1996, p. 315 e n.4; Cardete del Olmo, 2004, p. 23). A consaguinidade (Prontera, 2003, pp. 118-119), por seu turno, será desenvolvida quando nos debruçarmos sobre o termo γένος. Os cinco critérios enumerados não são, no entanto, um conjunto determinante para que uma comunidade seja apresentada como um ἔθνος, como podemos ver nas situações que serão de seguida assinaladas.

Relativamente à língua, os atenienses são apresentados como um povo pelásgico que, ao tornar-se helénico, teria mudado a sua língua (I, 56.2* e 57.3*; cf. infra, γένος), garantindo assim a sua integração no ἔθνος helénico (I, 57.3*: Ἑλληνικὸν ἔ.; I, 58*)53. Este primeiro critério separa dois grandes grupos e parece ser determinante para os progressos de cada um (I, 58*). Consequentemente, os grupos que falam uma mesma língua (ὁμόγλωσσος*/ homoglôssos) são representados como um todo (I, 57.3*; I, 171.6*; II, 158, etc.). Note-se que a distinção que estrutura o discurso herodotiano, i.e, entre Gregos e Bárbaros (τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι), baseia-se na língua, independentemente da variedade de línguas "bárbaras" (cf. Dubuisson, 1982, pp. 6-7; 2001, passim; Cários βαρβαρóφωνος* em Il. II, 867: cf. nota a Hdt. I, 142.1*).

Porém, não é possível afirmar, taxativamente, que um ἔθνος representa uma unidade linguística. Em I, 142. 3-4*, Heródoto assinala a variedade de dialectos entre os Iónios, dividindo-os em quatro grupos. Em I, 171.6*, refere que há povos que, embora falem a mesma língua que os Cários (Καρικὸν ἔ.), são diferentes. Mais adiante, em III, 98.3, assinala a existência de povos indianos (ἔθνεα Ἰνδῶν) que, embora sejam integrados numa mesma designação, têm línguas diferentes.

O excerto de I, 172.2* apresenta elementos que não permitem relacionar, por outro lado, língua e costumes54: os Cáunios (Καύνιοι) assimilaram-se aos Cários pela língua (ou vice-

versa), mas tinham costumes diferentes destes. Novamente, em I, 176.1*, o texto de Heródoto

assinala que Mísios e Cários partilhavam o mesmo santuário, enquanto que outros, mesmo falando a língua dos últimos, foram excluídos desse conjunto.

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O nome "Pelasgo" está ligado a um conjunto de tradições muito confuso, inclusive dentro da própria obra herodotiana (cf, p. ex., VII, 94-95;cf. Th. I, 3.2*). Como não pretendo desenvolver aqui este aspecto, remeto esta discussão interessante (sobre a representação dos Pelasgos como antepassados dos Gregos ou como uma entidade oposta) para Bernal, 1993, p.91ss e Sourvinou–Inwood, 2003, passim.

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Cf. Sal., Jug. LXXVIII, 4*. Neste excerto, o autor assinala que, na cidade de Leptis, fundada por sidónios, falava-se a língua dos Numidas devido à contracção de matrimónios, embora mantendo, no essencial, os costumes dos fundadores.

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Este último aspecto será valorizado no ponto 3.3.3.1, na medida em que os santuários podem ser marcadores territoriais que simbolizam alianças políticas e que, em última análise, estruturam a identidade das comunidades que os utilizam e das relações que estabelecem com os seus vizinhos (cf. Ruiz de Arbulo, 2000, p. 13, com bibliografia). Estes elementos podem ser fundamentais para a percepção de um território.

Ἔθνος é também um termo que nem sempre designa um povo específico, como aliás se observa em várias ocasiões ao longo da obra herodotiana (fig. 3.1, linha "genérico/ sem nome associado"). Ou seja, é também uma designação genérica que se traduziria, simplesmente, por

povo, sem que se saiba ao certo se o autor se refere a comunidades que habitam um mesmo

território ou a unidades políticas.

O exemplo dos Trácios, referidos em V, 3.1, afasta definitivamente a ideia de que um ἔθνος é, em todos os casos, uma entidade política unificada. Nesta passagem, Heródoto afirma que este povo é o mais numeroso da terra (Θρηίκων δὲ ἔθνος μέγιστον ἐστὶ) depois dos Indianos e que, "se estivesse regido por um único líder ou seguisse directrizes comuns", seria invencível e poderoso.

Vejamos também IV, 71*: Heródoto assinala o percurso dos cadáveres dos reis citas, em que estes vão passando de povo em povo (ἔθνος) até chegarem aos limites do território cita, colocando alguns problemas de tradução (cf. a tradução de C. Schrader no Anexo 1: tribo e povo). Este excerto permite salientar, por um lado, a importância dos enterramentos na percepção do território (cf. infra, 3.3.3.2) e, por outro, o uso de ἔθνος para designar grupos inseridos dentro de uma mesma entidade (cf. I, 58*).

Ἔθνος dá também origem um termo composto (ὁμόεθνος/ homoethnos), que exprime a relação entre pessoas de um mesmo povo. Referindo-se a Ciro, Heródoto afirma que os seus pais pertencem a um mesmo povo mas que, dentro deste, são de condição social diferente (I, 91).

Este panorama revela a grande complexidade de um termo cujo sentido depende do contexto em que se insere. A sua relação com γένος permite pensar que os seus significados chegam a confundir-se, uma vez que se aplica, p. ex., aos helénicos e aos atenienses em ocasiões diferentes (fig.3.1), como bem assinala M.ª C. Cardete del Olmo (2004, p. 18). Atendendo ao significado homérico de γένος, poderíamos estar perante a pertença a uma origem comum mas, uma vez mais, os contextos não permitem afirmá-lo. Em I, 101*, dentro do povo Medo (Μηδικὸν ἔ.) inserem-se vários γένεα, termo traduzido por tribo.

Γένος* é também utilizado, tal como nos Poemas Homéricos, para assinalar a origem de um indivíduo por nascimento. Assim, Creso é apresentado como um homem de origem Lídia

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(Κροῖσος ἦν Λυδὸς μὲν γένος) em I, 6.1. O sentido colectivo do termo pode ser assinalado, p. ex., em I, 56.2*, onde Heródoto refere a pertença dos Lacedemónios ao γένος dórico e dos Atenienses ao iónico (traduzido, normalmente, por raça ou nação; cf. IV, 46.2). O uso de γένος estende-se também a animais (cf. Powell, 1938, s.v. γένος), com um sentido de espécie.

A este panorama, anunciado de forma breve, acrescenta-se o termo φυλή, utilizado catorze vezes por Heródoto. O sentido de tribo, isto é, pequeno grupo dentro de um ἔθνος ou de uma πόλις (polis, cidade), não apresenta muitos problemas de interpretação (cf. Powell, 1938, p. 377).