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4. Tartessos: as fontes escritas e a construção arqueológica de um conceito

4.3. A construção arqueológica de um conceito

4.3.3. Tartéssios = Realidade pluriétnica?

O último aspecto assinalado é, na óptica deste trabalho, um obstáculo praticamente incontornável, mas não o suficiente para descartar a hipótese de M.A. Martí-Aguilar (v., sobretudo, 2007 e 2009). No entanto, a cronologia das fontes escritas gregas, quando comparada p. ex., com os resultados de Huelva ou Cádis, permite pensar que as observações dos Foceenses (Hdt. I, 163*) ou dos Sâmios (Hdt. IV, 152*) foram feitas sobre populações que, provavelmente, já se encontravam muito "misturadas" e que podiam ter a sua própria identidade, independentemente das diferenças estruturantes de uma sociedade, ou mesmo da origem dos indivíduos (ou das famílias) que a compunham. E essa identidade pode ser transmitida pelo nome de "Tartessos" ou "Taršiš", independentemente de ter, ou não, origem indígena.

105 cf. "Políbio" no Anexo 1. Para o sentido de ἔθνος na obra deste autor, veja-se a monografia de F.J. García Fernández (2003, p. 64).

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Tivemos oportunidade de verificar que o próprio conceito de ἔθνος* em Heródoto permite situações de convivência de vários elementos numa identidade alargada. A designação "Cipriotas" (Κύπριοι) integra vários ἔθνη (Hdt. VII, 90*) e é utilizada pelo autor na descrição das tropas na Batalha das Termópilas. Do mesmo modo, o nome dos Aqueus, como foi apontado, é composto por vários grupos humanos, cada qual com a sua designação própria ou, pelo menos, com um sentimento de pertença em relação à sua origem, reivindicado para responder aos seus interesses.

Apesar de todas as reticências que se devem ter quando se analisa o conteúdo do etnónimo "Tartéssios", a designação pode responder a uma situação deste género, sobretudo porque o próprio registo arqueológico não permite separar com rigor o que é indígena e o que é oriental a partir de um determinado momento (Arruda, 2010). Assinalam-se, p. ex., casos em que se desenvolvem em território peninsular estilos de decoração, tanto nos marfins do Baixo Guadalquivir (Aubet, 1978; 1980 e 1981) como na cerâmica tipo Lora del Río (Remesal, 1975; Murillo, 1989) em contextos dos sécs. VII e VI a.C. (Torres, 2002, p. 145), que remetem para uma ideologia oriental, mas com uma estética própria. Teremos oportunidade de voltar a este tema ao longo do presente trabalho, mas importa destacar aqui o facto de estarmos perante materiais que, muito provavelmente representam regionalismos criados em ambiente colonial.

A utilização de uma designação comum por parte de um grupo mais alargado, que mantém os seus componentes individualizados, é um aspecto que pode ser destacado noutros contextos, nomeadamente o dos "Luso-Africanos". Dentro deste grupo integram-se indivíduos de várias origens, unidos em torno de uma relação de pertença que está longe de ser estática: "ser português na Guiné foi [...] uma resultante de convergências heterogéneas nascidas de pontos de partida identitários, na aparência irredutivelmente antinómicos: europeu e africano" (Horta, 2009, p. 262). Não importava muito a origem familiar neste contexto: as origens italiana ou castelhana fundiam-se na identidade portuguesa, ao mesmo tempo que outros grupos (de Portugueses nascidos em Cabo Verde, de Luso-Africanos nascidos da união entre Portugueses e Africanos, ou Africanos nascidos na Guiné de Cabo Verde). Tratava-se, essencialmente, de um grupo dinâmico que construiu a sua identidade a partir de determinados critérios (profissão, arquitectura, religião, etc.), num contexto que não é, necessariamente, colonial, uma vez que se desenvolveu nos séculos XVI e XVII (ibid.).

A aplicação desta perspectiva à análise das fontes escritas referentes aos Tartéssios permite alertar para as variações do conteúdo de uma designação ao longo de vários séculos, bem como para a possibilidade de que existam grupos que se autodenominam de um modo,

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abarcando toda a sua diversidade (ou diferença) interna106. É neste sentido que uma das propostas deste trabalho é, precisamente, a construção de um questionário que permita valorizar cenários de diversidade, heterogeneidade, diferença e unidade consoante os cenários históricos que é possível reconstituir107. Vimos, p. ex., que o termo sincretismo (Plu., Moralia 490b/ De Fraterno Amore) transmite esta ideia de união de dois opostos contra aquele que se reconhece como uma ameaça. Vimos também essa necessidade de união perante os Persas, e voltamos a ver esse sentimento de pertença plasmado, provavelmente, em dois textos que assinalam a oposição dos "Tartéssios" ao poderio cartaginês, em 237 e 216 a.C. (D.S. XXV, 10.1* e Liv. XXIII, 26, apud Martí-Aguilar, 2010, pp. 400-401).

A auto-denominação de uma comunidade não deixa de ser um fenómeno de permanentes reelaborações, transformações, que pode integrar, a partir de um determinado momento, outsiders. As condições históricas são, por isso, determinantes, do mesmo modo que esses mecanismos de integração, para a construção de uma identidade de grupo. Porém, as fontes escritas são instrumentos que devem ser utilizados com muitas cautelas e com um sentido crítico suficientemente eficaz para retirar daí informações que permitam determinar se um etnónimo é um elemento de identidade dessa comunidade ou se, por outro lado, é um

elemento de identificação de um agente externo.

É neste sentido que, alargando os horizontes de análise, é possível proceder a uma aproximação aos mecanismos de construção, desconstrução e reconstrução identitárias. Tanto as fontes escritas, como o registo arqueológico e alguns exemplos da História de África fornecem algumas pistas para esta análise. Como estes aspectos farão parte dos capítulos dedicados aos edifícios de culto (Cap. 5), necrópoles (6) e povoados (7), passemos agora à discussão dos vários dados apresentados.

4.4. Discussão

É momento de colocar lado a lado os dois âmbitos deste capítulo: a documentação escrita e o registo arqueológico. A leitura deste deve ser acompanhada de uma crítica daquela quando se pretende apresentar o que se entende por "Tartessos". As fontes que tivemos oportunidade de comentar transmitem interpretações exoétnicas de uma realidade que nem

106 "diversidade" não pressupõe o mesmo que "diferença". A primeira pode promover a integração sem olhar a "diferenças", enquanto que a segunda pode dar origem a comportamentos de exclusão (Bahbha, 2006).

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Em vários trabalhos, C.G. Wagner tem vindo a chamar a atenção para a necessária valorização de intercâmbios desiguais nestes contextos, sobretudo a partir dos custos sociais envolvidos na produção de materiais e na obtenção de matérias-primas. Esta relação pode basear-se na diferença.

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sempre foi conhecida numa autopsia, não sendo de todo claro que elementos foram considerados para construir a imagem de um ἔθνος. A cronologia destas fontes é tardia em relação à origem que muitos investigadores propõem para Tartessos (p. ex., c. 1050 a.C., segundo Torres, 2002, p. 387). Restaria, em última análise, analisar a realidade arqueológica a partir de inícios do séc. VI a.C., fazendo com que esta correspondesse às fontes gregas mais antigas. No entanto, as informações sobre a Taršiš veterotestamentária, sobretudo as que foram vertidas para os textos dos Livros dos Reis, permitem recuar esta cronologia, do mesmo modo que relatos como os de Heródoto, que mencionam viagens anteriores.

No que diz respeito à reconstituição de uma identidade "tartéssica", qualquer estudo esbarra num absoluto silêncio das fontes escritas e no facto de estarmos perante um registo arqueológico que impossibilita qualquer interpretação neste sentido. O paradigma histórico- culturalista revelou-se insuficiente, ao associar uma língua a uma cultura material e a um povo, para afirmar que os "fósseis - directores" definidos pela investigação correspondiam a um povo cuja descrição textual é vaga. Dito de outro modo: só com um exercício de boa vontade, ou de fé, é possível dizer que as fontes transmitem a existência de um mundo "puramente" indígena, ou "puramente" fenício depois de vários séculos de contactos e coexistência, e que os materiais arqueológicos, ou a toponímia, permitem reconstituir essa identidade.

Perante este cenário, a abordagem ao tema de Tartessos deve ter em linha de conta um estudo crítico prévio das fontes, bem como a história das investigações. Os diversos estudos que têm vindo a ser publicados nos últimos anos no sentido de apresentar uma metodologia coerente para a análise da construção/ representação de uma identidade étnica devem ser também discutidos no âmbito da Arqueologia. Por outras palavras, há que juntar dois caminhos que se separaram a partir de um determinado momento e ver de que modo um campo de estudo pode fornecer interrogações, mais do que respostas, ao outro.

Como já se salientou em várias ocasiões, alguns exemplos da História de África podem ser importantes na elaboração deste questionário, uma vez que, para determinadas situações, a investigação tem acesso a fontes escritas, registos fotográficos, tradições orais e, eventualmente, ao registo arqueológico. Mas, acima de tudo, a um conjunto de estudos "afrocêntricos", ou "africanistas" que podem fornecer instrumentos interessantes para uma análise comparada.

No Cap. 3, apresentaram-se os traços principais deste campo de estudo, bem como as suas potencialidades. Para além da elaboração de "mapas étnicos" que não correspondiam à realidade vivida pelas populações, a presença portuguesa na actual Angola implicou o

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desmantelamento das percepções territoriais das comunidades locais, destruindo os seus marcadores e impondo outros que simbolizavam o domínio do colono. Aplicando este questionário ao registo arqueológico dito "tartéssico", os resultados podem ser surpreendentes. Considerando as estruturas e os lugares de culto fundados na área estudada neste trabalho como marcadores territoriais, é possível levar a cabo uma aproximação às relações estabelecidas com as comunidades residentes, bem como às transformações daí decorrentes em ambos os sentidos. Para todos os efeitos, um marcador deste tipo constitui uma novidade no panorama de qualquer região onde se implantou, podendo fazer gravitar em seu torno todo o funcionamento político, social e identitário de um território. Podemos ver nestas fundações um sintoma de desconstrução das percepções indígenas em prol de um poder emergente?

Recorrendo ao exemplo de Angola, o desmantelamento destas estruturas identitárias conduziu a uma transformação profunda e irreversível. As comunidades residentes desenvolveram mecanismos de adaptação a vários níveis (tecnológico, ideológico, religioso, económico, etc.), ao mesmo tempo que procuravam marcar, através desta, a sua autonomia e o seu papel enquanto agente das suas próprias transformações. Em termos metodológicos, o questionário sobre este processo permite analisar o modo como o registo arqueológico peninsular apresenta algumas diferenças ao longo dos anos, quer ao nível da arquitectura (substituição gradual da casa redonda/ ovalada pela quadrada/ rectangular), quer ao nível dos rituais funerários, entre outros aspectos que serão discutidos nos próximos capítulos. A imagem de um grupo oriental que se estabelece com um único propósito, o comércio, e que estabelece estas relações com as comunidades locais, não parece ser suficiente para afectar tão profundamente aspectos da vivência humana que são, tendencialmente, conservadores.

Os cenários de violência, explícita ou implícita, comuns em contextos de novas fundações e de ascensão de uma nova ideologia dominante, provocam também sérias transformações ao nível do povoamento de uma região, bem como das estratégias de exploração económica. Entre sistemas de povoamento que colapsam (p. ex., no actual Baixo Alentejo) e o aumento das áreas ocupadas, como parece ser o caso, p.ex., de Alcácer do Sal, surgem necessárias questões sobre as consequências da chegada de novos contingentes populacionais. Uma dessas consequências pode ser, eventualmente, o comércio de escravos para o trabalho nas minas e para a produção de excedentes (Moreno, 2000; Wagner, 2005a; c). A ocupação de lugares com fácil acesso às regiões mineiras pode, portanto, ser um indicador destas mudanças na exploração do território e um sintoma da captura de mão-de- obra escrava para alimentar um novo sistema económico.

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Neste contexto, surge uma outra relação com exemplos africanos. Num excelente trabalho de síntese sobre o tráfico de escravos na Senegâmbia (1500 - 1900), S.K. McIntosh salienta que as consequências deste comércio foram, basicamente, a generalização de movimentos populacionais (abandono numas regiões e aumento populacional noutras), ocupação de lugares protegidos e propícios à defesa, a formação de grupos militarizados e, por último, algumas transformações ao nível da cultura material (McIntosh, 2001, pp. 29-31). Todos estes elementos podem ser ponderados na análise do registo arqueológico identificado entre a Baía de Cádis e o Tejo, tanto em sítios costeiros como no interior. Em termos de construção identitária, a chegada de grupos de indivíduos a uma região pode impulsionar o desenvolvimento de mecanismos que permitem estabelecer uma relação de pertença com o território. Neste sentido, a chamada "mestiçagem" (supra, 3.3) é um instrumento de trabalho fundamental para compreender a complexidade das transformações inerentes a estes processos. Por seu turno, o aumento demográfico pode fazer sobressair essa complexidade, uma vez que a chegada de novos grupos pode implicar a criação de sistemas suficientemente eficazes com vista à integração desses indivíduos. É neste sentido que o conceito de "Spirit Province" pode ser útil.

A documentação escrita oriental fornece, como veremos ao longo dos próximos capítulos, bastantes informações no que diz respeito às variantes das relações inter- comunitárias. Exemplos destas variantes podem ser: (1) a imposição de tributos, quer pelo rei (J., A.J., VIII, 146*), quer pelo santuário (Dt. 12, 4-7 e 11*); (2) o estabelecimento de relações de dependência (Hiram e Salomão, segundo Ruiz & Wagner, 2005); (3) tratados que representam imposições unilaterais (entre outros, o Tratado de Assarhadon e Baal de Tiro*), entre outros. Nem sempre é possível encontrar confirmação arqueológica destas informações, mas, à partida, um cenário económico, social e político como aquele que se analisa neste trabalho pode implicar a reprodução de uma ideologia em novos territórios.

Estas situações podem também resultar na deslocalização de populações e em conquistas. Um exemplo disso parece ser a inscrição de Azitawadda de Adana* (ANET, p. 65 -654), que consiste numa "reflexão autobiográfica" (Longman, 1991, p. 74) que expõe a submissão de "países" vizinhos, tratados de paz, deslocalização dos habitantes dos povos submetidos para territórios de fronteira, entre outros aspectos que testemunham as relações intercomunitárias, pelo menos no que diz respeito a esta cidade, fundada, segundo o texto afirma, pelo próprio Azitawadda, rei dos Dananitas. De que modo estes acontecimentos podem afectar as identidades locais?

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O modelo de análise proposto impede que se aborde Tartessos como uma região, e os Tartéssios como um povo, num sentido de homogeneidade. As dificuldades apontadas para as fontes escritas, em parte assinaladas pelos historiadores "africanistas", não permitem afirmar que as representações gregas ou latinas sejam um retrato fiel de uma realidade vivida ou de uma identidade criada no contexto do sujeito representado.

Os próximos capítulos resultam da aplicação destas propostas ao registo arqueológico, considerando informações transmitidas pelas fontes e os problemas ou desafios que a História de África impõe às nossas percepções.