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2. Três questões prévias: Toponímia, Fontes escritas e História de África

2.3. A contribuição História de África

A valorização da História de África nesta análise, apesar de circunscrita a alguns casos concretos, é importante para formular um questionário para a leitura dos processos históricos decorrentes da fundação de edifícios ou de povoados de feição oriental entre a Baía de Cádis e o Tejo. A utilidade deste tema reside na emancipação em relação a alguns apriorismos que condicionavam o estudo das sociedades africanas mencionadas na documentação escrita europeia produzida a partir do séc. XV. Estas representações, resultantes das explorações costeiras, originaram discursos que, nos últimos anos, têm vindo a ser fortemente criticados por historiadores africanistas. Além disso, o impacto da presença colonial na construção e

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desconstrução das várias realidades políticas africanas produziu resultados extremamente interessantes que devem ser destacados.

Estes resultados devem ser vistos com as devidas cautelas, uma vez que estamos perante contextos históricos e culturais diferentes. No entanto, os estudos africanistas questionaram não só o conteúdo e as limitações das referidas fontes europeias, mas também a validade de alguns conceitos utilizados no discurso arqueológico. Entre esses conceitos está, precisamente, o de "Etnia" ou "Grupo étnico" (Amselle & M'Bokolo, 1999; Moret, 2004; Albuquerque, 2013a).

Nas últimas décadas, as escavações arqueológicas desenvolvidas em territórios africanos permitiram levantar algumas questões sobre a relação entre as fontes europeias, o registo material e as tradições orais (Vansina, 1995; 2006; DeCorse, ed., 2001; DeCorse, 1994; 1996; DeCorse & Chouin, 2003; Falola & Jennings, eds., 2003). O volume de informações, apesar de desigual, fornece ferramentas metodológicas importantes para assinalar os limites da imagem produzida por um agente externo, ausências de informação e, sobretudo, a materialização desses processos históricos.

É neste sentido que o estudo da construção da Angola colonial se revelou bastante promissor. Embora não tenha sido alvo de um estudo sistemático (certamente, muito útil para desafiar as ideias aqui transmitidas), que por si só merece outra dissertação, fornece dados extremamente interessantes: gravuras e fotografias que registam o "antes" e o "depois" das operações dos colonizadores; marcadores territoriais que consolidavam a identidade de uma comunidade e que transmitiam, visualmente, o seu percurso histórico (necrópoles, marcadores de caminhos, monumentos evocativos, etc.: fig. 4.7), etc. (Henriques, 2004, passim). A destruição destes marcadores no contexto da imposição do sistema colonial afectou de sobremaneira as várias comunidades que passaram a estar integradas dentro de um território desenhado na cartografia a régua e esquadro. O desaparecimento destes elementos conduziu a uma adaptação indígena ao novo sistema, embora mantendo alguns esquemas ancestrais.

Um dos aspectos que mais chama a atenção é a adopção da arquitectura de planta rectangular em detrimento das casas circulares anteriores, mas mantendo os mesmos materiais e técnicas construtivas (ibid.). Noutras ocasiões, estas comunidades apropriaram-se de alguns elementos que identificavam o poder colonial. As "operações estruturantes" deste último conduziram a um desmantelamento progressivo do modo como estas comunidades viam e viviam o seu território, dos seus sistemas económicos e até mesmo das suas relações sociais. Neste sentido, é imprescindível sublinhar que as comunidades residentes foram os agentes da

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sua própria transformação, o que não implica abdicar do reconhecimento de uma ideologia

dominante que terá forçado esse processo (cf. Wagner, 2004, p. 268).

Esta situação motivou o questionário proposto neste trabalho: até que ponto a construção de novos marcadores territoriais (p. ex., edifícios de culto) pode reflectir a imposição de um poder emergente? Se significa uma desconstrução das percepções indígenas prévias, justifica as transformações da arquitectura, da exploração económica do território, a acentuação das desigualdades sociais e os próprios enterramentos? A construção destas estruturas, o reforço das defesas através da construção de muralhas, ou mesmo os excedentes necessários para manter os edifícios de culto, os seus funcionários e, provavelmente, para pagar tributos, são elementos que permitem pensar numa transformação relativamente abrupta (quando analisada em pequena escala) destas sociedades.

As relações podem, porém, ser diferentes. Aceitação e negação são duas faces da mesma moeda e dependem, essencialmente, dos seus agentes. A imposição de um novo sistema pode implicar deslocações de população, explicando, p. ex., o abandono de alguns povoados e o crescimento substancial de outros (por captura de mão-de-obra, por protecção, por integração no novo sistema, fuga, etc.), convertendo alguns deles em pólos de atracção de vários grupos de origens diferentes. É por esse motivo que o conceito de Spirit Province, desenvolvido por E. Crowley (1993) para a análise deste tipo de situação na região de Cachéu, na Guiné - Bissau, pode ser bastante útil, uma vez que consistia, no essencial, na criação de mecanismos de consolidação identitária destinadas a integrar os vários grupos de

outsiders num mesmo sistema, dominado, note-se, por uma determinada ideologia que se

reforçava, reformulava ou abandonava consoante as circunstâncias históricas e os próprios interesses económicos e políticos das comunidades que integravam estas "províncias".

Este ponto de partida é também útil quando se aplica à leitura das fontes escritas, como muito bem demonstrou Pierre Moret (2004). Acrescentam-se ainda outros contributos, relacionados com a construção dos "mapas étnicos" europeus em África, bem como com a literatura de viagens produzida a partir do séc. XV, que permitem destacar as limitações das representações enquanto "espelhos" do olhar do observador que transmite uma ideia sobre comunidades distantes do seu ponto de origem e, sobretudo, pautadas por quadros de referência diferentes (cf. Horta, 1995).

O contributo deste texto no que diz respeito à História de África resume-se às potencialidades que um estudo mais profundo e uma discussão conjunta, podem ter na análise dos problemas que tanto a documentação escrita como o registo arqueológico colocam. Trata- se, mais do que uma comparação sistemática entre realidades distantes no espaço e no tempo,

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de criar um questionário que procure responder às várias interrogações que pairam sobre a Proto-história peninsular.

Por esse motivo, achou-se necessário dedicar algum espaço aos conceitos utilizados e aos seus significados, de modo a fornecer, dentro das limitações do autor destas linhas, algumas ferramentas que podem ser úteis na análise das fontes escritas e do registo arqueológico...