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4. Tartessos: as fontes escritas e a construção arqueológica de um conceito

4.2. As fontes escritas

4.2.2. Γάδειρα, Gadir

4.2.2.5. Γάδειρα/ Gadir e Ταρτησσός

4.2.3.2.3. Como corónimo ou território político

O terceiro grupo de fontes integra representação da monarquia e, consequentemente, de um território político, bem como as referências explícitas a uma região. Exclui-se desta leitura, por agora, a imagem de longevidade que transmitem, bem como a interpretação destes testemunhos na perspectiva da reprodução (como textos literários) da representação das riquezas limítrofes (infra, 4.2.3.2.6).

Anacreonte foi o primeiro autor a referir Tartessos como um território possivelmente dominado por uma monarquia (Martí-Aguilar, 2009, p. 90). O texto foi transmitido por Es- trabão (III, 2.14; fr. 361 PMG): “No quisiera yo ni el cuerno de Amaltea ni ser rey de Tarteso ciento cincuenta años" (Trad. F.J. Gómez Espelosín)88. Polícrates terá acolhido o poeta na corte de Samos em 536-522 a.C. (Hdt. III, 121*; Ael., V.H. 9, 7*; Pl., Hipparch., 228b-c; Gangutia, 1998, p. 125; Albuquerque, 2013a, p. 48), i.e., quase um século depois da fundação de Cirene, à qual está associada a viagem de Colaios (630 a.C.; Hdt. IV, 152*)89. Relacionando os dois testemunhos, não seria incongruente pensar que Anacreonte pode ter feito referência a uma cidade, reproduzindo a tradição que, muito possivelmente, circulava em Samos. No entanto, como veremos, a representação de uma monarquia apresenta mais relações com outro texto de Heródoto (I, 163*; v. discussão no Anexo 1, "Anacreonte").

Hecateu, antes de Heródoto, terá referido cidades integradas no território de Tartessos ou Tartésside (cf. Martí-Aguilar, 2009, p. 90). Antes de mais, saliente-se que estas informações chegaram até nós, indirectamente, através de Ethnika, de Estêvão de Bizâncio, obra escrita em c. 530 d.C. com interesses filológicos e gramaticais (cf. Anexo 1, "Estêvão de Bizâncio").

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Esta "fronteira cronológica" foi, anteriormente, definida para os textos referentes a Gadir. 88

ἔγωγ᾽ οὔτ᾽ ἂν Ἀμαλθίης βουλοίμην κέρας οὔτ᾽ ἔτεα πεντήκοντά τε καὶ ἑκατὸν Ταρτησσοῦ βασιλεῦσαι. 89 Os textos sobre Anacreonte encontram-se no capítulo dedicado a este autor no Anexo 1. Note-se, no entanto, que o Hiparco é uma obra de autoria duvidosa que foi atribuída a Platão (Anexo 1, "Homero").

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Elibirge (FGrH, 1, fr. 38; St. Byz. s.v. Ἐλιβύργη*) é mencionada como Πόλις*

Ταρτησσοῦ* ("cidade de Tartessos"); Ibila (Fr. 45 Nenci; St. Byz., s.v. Ἵβυλλα*), por seu turno, é apontada como πόλις* Ταρτησσίας* ("cidade tartéssia")90. Os objectivos de Ethnika não justificavam qualquer tipo de reflexão sobre o contexto em que os nomes surgem na

Periegesis de Hecateu, muito menos sobre o tipo de tratamento que o autor terá dado a estes

territórios. Quando Estêvão de Bizâncio assinala Tartessos (s.v. Ταρτησσός*), não apresenta qualquer fonte, afirmando que se trata de uma cidade da Ibéria (πόλις Ἰβηρίας), o que exclui a hipótese de que o gramático bizantino tenha recorrido a Hecateu para elaborar o verbete.

Note-se que o autor apresenta Tartessos como uma cidade e não como uma região, afirmando que o topónimo deriva, como foi apontado, do nome do rio. Ficamos, portanto, sem saber ao certo o que Hecateu entendia por Tartessos; por outras palavras, se as cidades mencionadas pertenciam a uma região ou se estavam sob o domínio de uma cidade. Por outro lado, Estêvão de Bizâncio acrescentou, como se assinala na introdução a este autor no Anexo 1, interpretações suas aos textos. Caberia assim a possibilidade de que Ἐλιβύργη e Ἵβυλλα tenham sido mencionadas por Hecateu, e que o autor bizantino tenha apresentado a sua interpretação pessoal. Contudo, para isso seria necessário que concebesse Tartessos também como uma região.

As informações de Hecateu, vistas por este prisma, são problemáticas e aconselham alguma prudência no seu uso para a definição das representações de Tartessos nos finais do séc. VI a.C.. Vejamos ainda que, segundo o testemunho bizantino (apud Martí-Aguilar, 2009, p. 90), Hecateu assinala uma πόλις*, Kalathê (FGrH, 1, fr. 39; St. Byz., s.v. Καλάθη*), que Éforo denominou Kαλάθουσα (Kalatousa), nas proximidades das Colunas de Héracles91. Hecateu localizou também o ἔθνος dos Mastianos (FGrH, 1, fr. 41/ St. Byz., s.v. Μαστιανοὶ*) nas proximidades das Colunas, ao qual pertenciam as cidades de Syalis (fr. 52 Nenci; St. Byz.,

s.v. Σύαλις), Mainobora (FGrH, 1,fr. 41; St. Byz., s.v. Μαινοβώρα*), Molibidne (FGrH, 1, fr.

44; St. Byz., s.v. Μoλυβδίνη) e Sixo (FGrH, 1, fr. 43; St. Byz., s.v. Σίξος*)92. Estes Mastianos (ou Mastienos), por outro lado, foram localizados nas proximidades dos Elbestios (segundo Filisto) por Estêvão de Bizâncio, que por sua vez são apresentados como um ἔθνος do Norte de África (FGrH, 1, fr. 40/ St. Byz. Ἐλβέστιοι*); neste contexto, cita também Hecateu, em

90 Os textos assinalados neste parágrafo remetem para "Hecateu" no Anexo 1. 91 Para os topónimos em -ουσ(σ)α e os seus problemas, cf. supra, 2.1. 92

Para M.A. Martí-Aguilar (2009, p. 90), a referência a Sixo é mais problemática: "Esteban de Bizâncio la men- ciona también como polis mastiena, pero no añade [...] que fuese Hecateo quien sostenía esa atribución". No entanto, o autor bizantino cita, explicitamente, Hecateu, como podemos confirmar no excerto assinalado no Anexo 1 (FGrH 1, fr. 43).

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cujo texto estaria escrito "Ἐλβέστιοι καὶ Μαστιηνοὶ"93. Não pretendo entrar aqui na questão da localização de Mastia e dos Mastienos, bem como da relação que estes nomes mantêm com a Mastia Tarseion (Μαστία Tαρσήιoν) do segundo Tratado romano - cartaginês (348 a.C.), em Plb. III, 24.1 - 4* (cf. Koch, 2003, p. 176ss.; García Fernández, 2003, p. 61ss.; Ferrer Albelda, 2006 e 2008).

No testemunho de Heródoto (I, 163*), Tartessos parece surgir como a designação de uma região, integrada numa sequência geográfica que aponta para esse sentido: "Adriático, Tirreno, Ibéria y Tartessos" (cf. Koch, 2003, p. 176; Martí-Aguilar, 2009, p. 92). Tal não exclui, porém, que Tartessos seja aqui também uma cidade, na medida em que os protagonistas da viagem encontram um monarca num lugar concreto. Pelo que se sabe da vida de Heródoto, é muito provável que esta notícia seja posterior ao seu exílio em Samos, o que permite pensar que o autor partiu para a sua viagem com a ideia de que Tartessos era um

emporion. Sabe-se também que conheceu o texto de Hecateu, mas, como vimos, este coloca

sérios entraves pelo facto de se conhecer através de referências indirectas, impedindo de especular em demasia sobre esta questão.

Podemos, no entanto, pensar que o autor reproduziu a ideia que lhe foi transmitida sem qualquer alteração. Partamos do princípio, ainda que com reservas, de que se tratava de uma região. A tradição recolhida, provavelmente junto dos Foceenses, inclui a presença de um monarca (Argantónio) que terá oferecido aos protagonistas bens suficientes para que estes pudessem construir uma muralha. Noutras ocasiões, tive oportunidade de assinalar que a existência de um monarca é fundamental numa narrativa, na medida em que desempenha o papel de ajudante que permite ao(s) protagonista(s) a concretização do objectivo do relato. Consequentemente, Argantónio é comparável a Alcínoo, na Odisseia, e ao rei de Melinde n'Os Lusíadas, para citar apenas dois exemplos (Albuquerque, 2008; 2009; 2010; 2011). Esta representação, ao associar-se à longevidade, aproxima-se do já referido fragmento de Anacreonte e, por conseguinte, da imagem transmitida em Samos.

Em todo o caso, tanto no texto de Anacreonte como no de Heródoto (I, 163*), refere-se um possível território político dominado por um βασιλέυς. É neste contexto que surge o testemunho mais antigo de um etnónimo. Para Heródoto, os foceenses tornaram-se amigos do

rei dos tartéssios (βασιλέι* τῶν Ταρτησσίων*).

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Note-se que existe uma pequena diferença entre Μαστιανοὶ e Μαστιηνοὶ. Se atendermos ao exemplo de ναός * (Anexo 2), a variante iónica é νηός. Trata-se, neste caso, de uma diferença entre dois nomes (ou duas realidades) ou, simplesmente, de uma diferença de fontes? Ou de uma questão de transcrição e/ ou reprodução? Note-se que ambas estão associadas a Hecateu.

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Por seu turno, Eratóstenes (último terço do séc. III a.C.), cuja obra suscita alguma controvérsia (supra, 4.2.2.2), afirma que a região em torno a Calpe (uma das Colunas de Héracles, do lado ibérico) se chama Tartésside (Str. III, 2.11* e 5.5[2]*). Esta fonte não será aqui desenvolvida, mas constitui uma excepção à tendência, verificada a partir do séc. V a.C. como veremos de seguida, de mencionar um etnónimo: "Tartéssios".