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4. Tartessos: as fontes escritas e a construção arqueológica de um conceito

4.2. As fontes escritas

4.2.4. Uma perspectiva diacrónica, segundo as fontes escritas

Um primeiro problema que se impõe quando se aborda a "questão tartéssica" é, como se tem vindo a assinalar, a diversidade de contextos literários, históricos e geográficos em que Taršiš ou Tartessos é referido. Neste sentido, qualquer leitura diacrónica corre o risco de ser simplista, na medida em que transmite uma imagem de homogeneidade que não corresponde à complexidade do panorama geral da documentação escrita. Tal não impede uma breve análise do percurso de um conceito nestes textos, considerando, sobretudo, as circunstâncias e os contextos da sua elaboração. Propositadamente, o tema afasta-se de uma leitura que pretenda analisar a comunidade representada e aproxima-se dos processos que influenciaram os discursos dos observadores. Esta perspectiva é útil para assinalar o modo como Taršiš ou Tartessos têm sentido num determinado discurso, bem como as consequências do contexto e da forma no conteúdo destas referências.

Admitindo a cronologia proposta para a muito discutida Estela de Nora* (finais do séc. IX - inícios do séc. VIII a.C.), Taršiš é um nome que começou a ser utilizado numa época bastante recuada, mas as dificuldades de tradução desta epígrafe não autorizam uma valorização excessiva. Se a primeira linha da estela apresenta, de facto, Taršiš (Tršš), as referências veterotestamentárias a este nome ganhariam algum sentido, sobretudo aquelas que descrevem as navegações de Hiram de Tiro. Tais viagens parecem corresponder, cronologicamente, aos achados de Huelva (Mederos, 2006, pp. 175-179), permitindo assinalar que o conhecimento desta região levou à sua representação no AT entre os sécs. VI e IV a.C. (v. Anexo 1, "1 e 2 Reis"), embora com diversas matizes (Gn. 10, 4*; Is. 2, 16*; 23*; 1Rs. 10, 22*; Sl. 72, 10*, etc.).

Como vimos no cap. 2, é provável que Taršiš seja uma adaptação semita a um nome indígena (da série trt-/ trs-, segundo Koch, 2003), o que coloca algumas questões sobre a ausência de Gadir ou de um topónimo similar no Antigo Testamento. Os textos não permitem especular sobre a possibilidade de Taršiš corresponder a Gadir ou se, por outro lado, esta é somente uma cidade desta região ocidental. Os achados de Huelva podem também contribuir para esta questão, uma vez que são os "candidatos" cronologicamente mais próximos dos textos, na medida em que nas escavações em Cádis não se identificaram realidades anteriores a meados do séc. IX a.C.

Os testemunhos veterotestamentários não são, como podemos ver, fontes de informação suficientemente consistentes, uma vez que utilizam Taršiš como um ponto de referência do

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Ocidente e não fazem muito mais do que assinalar, em certas ocasiões (p. ex., 1Rs. 10, 22*) as navegações orientais. Em todo o caso, a relação entre registo escrito e registo arqueológico baseia-se, sobretudo, numa aproximação cronológica, o que não significa que estejamos perante documentos que transmitam informações sobre a "composição étnica" da entidade a que se referem.

O mesmo pode ser dito em relação à produção literária grega. Os textos que tivemos oportunidade de ver até este momento são, igualmente, vagos no que diz respeito ao significado do conceito de Tartessos e, em muitos casos, são transmitidos através de menções indirectas. No entanto, é possível afirmar que as tradições que começam a integrar esta entidade no seu discurso surgem em finais do séc. VII a.C., sob a forma de poemas como o de Estesícoro (Gerioneida), em particular num texto transmitido por Estrabão (III, 2.1*): o poeta localizou o nascimento de Gérion nas nascentes do rio Tartessos (fr. 184 PMG*) associando-o a Ἐρύθεια e à Península Ibérica. O facto de Hecateu (Arr., An. 16, 5 - 6) apresentar uma alternativa à localização assinalada por Estesícoro é um reflexo da importância deste relato e das dúvidas que este suscitou noutros contextos.

O texto de Estesícoro permite pensar que paisagens ocidentais como Ἐρύθεια, vagamente enunciada por Hesíodo (Th., 287 - 294), começam a ser localizadas em espaços mais concretos, em parte devido às navegações sâmias e foceenses a estas regiões, a par de outros mitos (Wagner, 1986, p. 207ss.). Tartessos pode, neste sentido, representar essa tendência a partir da identificação ou reconhecimento de uma região conhecida pelos fenícios como Taršiš, o que justifica a sua integração no conjunto da Gerioneida, bem como num texto de Anacreonte (Str. III, 2.14/ fr. 361 PMG).

Este último poeta viveu em Samos (536-522 a.C.) e terá vertido para um texto a imagem resultante das navegações de Colaios a Tartessos, registadas, segundo o testemunho de Heródoto, no Heraion desta cidade (IV, 152*). É provável que durante o séc. VI a.C. se comece a formar uma imagem de Tartessos com os contornos da poesia, o que se reflecte tanto na imagem da longevidade dos monarcas (Anacreonte, fr. 361 PMG; Hdt. I, 163*) como na sua caracterização, baseada, provavelmente, na representação da Idade de Ouro (Hes., Op. 109-123; Albuquerque, 2009; 2010; 2011). Recorde-se também que Estesícoro parece reproduzir tópicos literários associados ao nascimento de seres míticos (i.e., junto às nascentes de uma corrente de água). Trata-se, portanto, de um período em que começaram a surgir tradições orais que seriam, mais tarde, transmitidas em textos como os de Heródoto (I, 163*; IV, 152*).

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Este processo é paralelo à construção de uma imagem do Ocidente noutros moldes. Hecateu de Mileto, no último quartel do séc. VI a.C., representa os primeiros passos da "ciência iónica" no sentido de apresentar um texto destinado a divulgar uma imagem mais racional e crítica do mundo habitado (FGrH 1, fr. 1*). Para levar a cabo este intento, Hecateu parece reproduzir a ideia de que Tartessos é uma região, na qual se integram cidades (fr. 45 Nenci* e FGrH 1, fr. 38*). Estas referências pertencem a um conjunto mais vasto que refere outras cidades e povos, transmitidos no séc. VI d.C. por Estêvão de Bizâncio (Anexo 1, "Hecateu"). Com Hecateu surgem os primeiros intentos de apresentar reflexões sobre o presente observado (Darbo-Peschanski, 2007, p. 28), embora neste caso não seja uma observação directa, mas uma possível reprodução de nomes que o autor conseguiu escutar.

Heródoto representa, igualmente, a tendência para a observação/ representação do presente, mas com contornos diferentes. Para além da descrição geográfica, o autor valoriza os costumes e elementos do passado das comunidades que observou (ou sobre as quais recolheu informações). A acção de ver com os próprios olhos, ou autopsia (αὐτoψία), é um elemento constante na elaboração das Histórias e um ponto de partida para o tratamento e valorização das informações e da figura do viajante (v., no Anexo 1, "Heródoto", as relações entre o autor e Homero).

No que diz respeito ao Ocidente, a comparação das referências a Tartessos com III, 115* revela-se significativa, na medida em que os relatos dos Foceenses (I, 163*) e dos Sâmios (IV, 152*) apresentam, implicitamente, a αὐτoψία que o autor exigia para dar crédito a uma informação. Neste caso, os protagonistas presenciaram uma situação, terão visto uma realidade. Pelo contrário, em III, 115* (e, em parte, II, 23), o autor não viu, nem escutou de alguém que tenha visto, o mar que rodeava a terra ao longo de toda a sua pesquisa. Quer isto dizer que Heródoto se interessou pela questão depois de ter escutado os relatos que verteu para o seu texto (I, 163* e IV, 152*)? Ou nenhum desses testemunhos apresentava uma reflexão sobre tal mar?

A valorização da αὐτoψία pode, portanto, explicar as diferenças entre um relato que refere uma região (I, 163*) e outro que assinala um emporion (IV, 152*) conhecido como Tartessos, na medida em que o autor reproduziu, sem questionar, o que escutou. Isto pode significar que a representação de Tartessos não é a mesma para ambas as cidades e que, portanto, não há uma noção clara da realidade que se pretende descrever. Apesar desta limitação, parece evidente que os relatos assinalam o encontro com o Ocidente por parte das duas cidades ou, dito de outro modo, o momento em que indivíduos de espaços geográficos diferentes entram em contacto entre si. Parece, pois, significativo que esta região ou cidade

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seja conhecida com um nome que pode estar associado, eventualmente, a Taršiš. Este estaria em uso durante todo o período que medeia o texto de Estesícoro e o de Heródoto.

A transmissão de um possível etnónimo começa também a ser comum a partir do séc. V a.C., embora não possamos descartar o seu uso em Hecateu (na verdade, conhece-se pouco da sua obra). A referência herodotiana ao "rei dos Tartéssios" (βασιλέυς τῶν Ταρτησσίων) pode

dizer respeito a um povo (ἔθνος*), mas a formulação da frase pode obrigar a apresentar o nome dos habitantes. Dito de outro modo: o uso de βασιλέυς pode ser seguido de um genitivo, em que este governa um povo e não um território, se tomarmos como exemplo a já assinalada frase de Heródoto relativa a Creso (I, 53.2; supra, 3.2.3.5; C.P. Jones, 1996, p. 316; Albuquerque, 2012, p. 48)99. Tal como na já assinalada passagem de Herodoro, que refere uma phylê (FGrH, 31, fr.2a / Const. Porph., Adm. Imp. 23/ St. Byz. s.v. Ἰβηρίαι*), não se sabe ao certo que critérios presidem a esta designação, muito menos se esta é autoimposta ou alteroadscrita.

Durante o séc. IV a.C., o exercício da Historia (ἱστορία) começa a contar com os textos produzidos nos séculos anteriores e a servir outros propósitos. Se, no caso dos autores comentados anteriormente, o interesse das averiguações (ἱστορίης) recaía sobre um melhor conhecimento das causas que opunham conquistador e povos submetidos, neste, o interesse começa a ganhar contornos morais (Teopompo e Éforo) e políticos (Arist., Rh.. I, 4. 13/ 1360a*), associando-se, essencialmente, à retórica. Não se sabe ao certo qual o papel que Tartessos (e, por conseguinte, os Tartéssios) desempenhou nos textos de Teopompo e Éforo, mas as tendências gerais da historiografia deste período permitem afirmar que as informações vertidas nestes textos podem basear-se em textos anteriores, uma vez que a αὐτoψία não parece ter a importância que vimos reflectida em Heródoto. As pesquisas destes autores terão sido "encomendadas" pelo mestre de ambos, Isócrates, tendo como ponto de partida (Teopompo) e de chegada (Éforo) a Guerra do Peloponeso (Fócio, Bibl. 121a 23-36, apud Darbo-Peschanski, 2007, pp. 33-34), de modo a unir o tempo presente ao retorno dos Heraclidas.

Como podemos verificar, as referências a Tartessos na documentação escrita respondem a diversos objectivos e desempenham funções muito concretas nos vários discursos. O facto de se utilizar, preferencialmente, um etnónimo a partir do séc. V a.C. não significa que possamos estabelecer uma cronologia para a sua formação e/ou manutenção. A designação de uma cidade ou de uma região conduz à formação do chamado "etnónimo", e este acompanha

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o período em que tanto um corónimo ou um topónimo está em uso. O uso de um etnónimo em detrimento daqueles nomes é um aspecto que deve ser considerado, mas não deve, contudo, ser sobrevalorizado. Tal opção pode depender do autor, como podemos ver, p. ex., em Hdt. I, 163*.

As referências a Tartessos ganham novas formas e conteúdos a partir do domínio romano na Península Ibérica. Este originou vários interesses e novos tipos de discurso que respondem a este período histórico, incidindo sobre os povos conquistados. Parte da produção escrita inscrita neste processo é responsável pela transmissão de textos (i.e., os chamados fragmentos) de autores anteriores (entre outros exemplos, Estesícoro, Anacreonte e Éforo em Estrabão), bem como de uma imagem histórica da qual não se sabe com exactidão a origem. Para M.A. Martí-Aguilar, "cabe preguntarse en qué medida el recuerdo es el de los habitantes del SO. peninsular respecto de su propio pasado, o por el contrario es el fruto de la remem- branza erudita de los autores griegos y latinos a partir de los datos de Heródoto y las demás fuentes clásicas" (2009, p. 97).

O mesmo pode ser dito em relação à representação de Gadir nesta fase, cujos contornos foram expostos, bem como às tradições que associaram esta cidade a Tartessos, chegando mesmo a apresentar estes lugares como sinónimos (Alvar, 1989; Martí-Aguilar, 2007). É também neste contexto que se integra a construção da Turdetânia e dos Turdetanos como "herdeiros" de Tartessos, sobretudo na obra de Estrabão (v. as reflexões de García Fernández, 2003). É com uma breve reflexão sobre este último tema que se encerra este sub- capítulo.

Schulten (1945, p. 136ss.) procurou demonstrar que Tartessos caiu pelas mãos dos Cartagineses em torno de 500 a.C., permanecendo sob o seu domínio até 206 a.C. e deixando na documentação escrita alguns vestígios. No que diz respeito a este aspecto, o autor afirma que "después del hundimiento de Tartessos perduró su nombre como concepto geográfico" (ibid., p. 138), dando origem à Turdetânia e, por conseguinte, aos Turdetanos. À parte dos argumentos linguísticos (ibid., pp. 138-139; Koch, 2003; García Moreno, 1989b), expostos no cap. 2, Schulten introduziu a sua interpretação da documentação escrita, interpretação esta que tem vindo a ser superada nos últimos anos com novas propostas que demonstram a continuidade do uso de Tartessos e Tartéssios em períodos posteriores ao séc. VI a.C.. Ao mesmo tempo, estas propostas provam, de forma bastante convincente, que tanto Turdetânia como Turdetanos são uma criação do período romano que muda de acordo com o conhecimento que, a partir do séc. III a.C., se vai adquirindo da Península Ibérica (Ferrer &

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García, 2002; García Fernández, 2003, p. 194ss.; 2004; Martí-Aguilar, 2009; 2010; Cruz Andreotti, 2010; Moret, 2011, etc.; sobre os Túrdulos, Cardim Ribeiro, no prelo).

Pelo que pudemos ver até este momento, a história das representações de uma entidade não pode confundir-se com a história do povo que se pretende representar, dependendo, essencialmente, dos interesses gregos e, posteriormente, romanos, na Península Ibérica. Como tal, não parece arriscado afirmar que a documentação escrita referente a Tartessos ou Gadir é heterogénea e que pertence, no essencial, ao percurso histórico do observador e aos focos da sua atenção, no que diz respeito ao Ocidente e à etnografia (Ferrer & García, 2002, p. 139; Martí-Aguilar, 2002, p. 94). Além disso, insista-se, muitas das informações que analisámos chegaram até nós indirectamente (Estesícoro, Anacreonte, Hecateu, Herodoro, Éforo e Teopompo), não permitindo ir muito longe nas conjecturas que podemos fazer na sua análise.

Assim, mesmo levando a cabo uma análise muito fina destes textos, mesmo apertando muito a malha do crivo, o resultado é mais um conjunto de perguntas do que, propriamente, de respostas. A análise diacrónica que agora termina permite, portanto, alertar para a necessidade de analisar estas fontes de acordo com o seu próprio contexto, integrando-as nos percursos históricos em que os textos foram produzidos, reproduzidos e transmitidos. A ausência destas questões em trabalhos como o de Schulten (1945) e dos seus seguidores motivou, em boa medida, a transmissão de uma imagem equivocada, não só das fontes em si, mas também de Tartessos.