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Documentação escrita e registo arqueológico (I): A fundação de Gadir

4. Tartessos: as fontes escritas e a construção arqueológica de um conceito

4.2. As fontes escritas

4.2.2. Γάδειρα, Gadir

4.2.2.3 Documentação escrita e registo arqueológico (I): A fundação de Gadir

Possidónio (finais do séc. II - inícios do séc. I a.C.) recolheu, ao que parece, um relato sobre a fundação do santuário e cidade de Gadir. Segundo este testemunho, transmitido por Estrabão (III, 5.5*), os tírios tentaram, por três vezes, fundar uma cidade no lugar onde se encontravam as colunas (ou os betilos) de Melqart, seguindo a ordem de um oráculo. Depois de duas tentativas frustradas na cidade dos Exitanos (Ἐξιτανῶν) e em Onoba (Ὀνόβα), estes fundadores estabeleceram-se na zona de Cádis.

O texto coloca alguns problemas de interpretação, nomeadamente a cronologia em que é transmitido, com claras implicações no seu potencial uso como fonte para analisar realidades mais antigas. Aparentemente, trata-se de uma versão tardia sobre a fundação da cidade, espelhando a ideologia das elites gaditanas neste período ou, por outro lado, pode ser um resultado da valorização das origens das cidades que estiveram ao lado de Roma (Martí- Aguilar & Ferrer Albelda, 2009, pp. 179-182), ou mesmo da importância que este espaço teve na Antiguidade (D.S. V, 20*). Possidónio terá recolhido uma tradição oral, mas não se regista nada no texto que possa demonstrar a existência, ou não, de documentos do próprio santuário, onde se deixariam testemunhos escritos destas informações (Marín & Jiménez, 2004, com bibliografia).

Este último aspecto pode ser enquadrado na discussão sobre a importância da oralidade na construção de uma memória colectiva, cuja autoridade pode ser equivalente à de um documento escrito (socialmente mais restrito). Tal como um texto, que é visto a partir de vários ângulos, a tradição oral pode adaptar-se às circunstâncias de um momento e ser transmitida, com poucas ou muitas alterações, ao longo de várias gerações. É importante assinalar que a memória transmitida oralmente remonta, por norma, a períodos anteriores em cerca de dois séculos (Vansina, 2006; Murray, 2007a; b; Anexo 1, "Heródoto"). O relato estraboniano remete, porém, para um período mais recuado (I, 3.2; III, 5.5*; infra, 4.2.2.4), embora possa ser relacionado com outros relatos anteriores, também recolhidos oralmente junto dos funcionários dos santuários (Hdt. II, 44*).

O texto de Estrabão apresenta traços que permitem pensar na continuidade de alguns mecanismos que presidem à formulação de relatos de fundação anteriores, também eles

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ligados à legitimação de um sentimento de pertença, bem como à conquista espiritual das zonas limítrofes, integrada numa pretensão de domínio universal (Wagner, 2008; cf. Sl. 72, 8*). Não pretendo afirmar que esta informação se manteve inalterável, no seu conteúdo, ao longo dos anos. Pelo contrário, a forma desta narrativa pode remeter para versões anteriores: (1) o protagonista, individual ou colectivo, sai da sua terra de origem com um determinado objectivo; (2) passa por uma série de obstáculos e (3) concretiza o objectivo da viagem. Obviamente, Possidónio (ou Estrabão) transmitiu um resumo desse relato, que pode integrar toda uma série de episódios que marcam, através da figura de Héracles, um processo "civilizador" e violento, com a eliminação de seres ctónicos.

No caso do relato aqui discutido, afirma-se que os sacrifícios não foram favoráveis, o que pode ser uma forma de dizer que os fundadores não obtiveram permissão, que estes lugares estavam anteriormente habitados, ou que não reuniam as condições pretendidas. Ou que estas tentativas são uma representação posterior dos contactos prévios à fundação. Em suma, uma narrativa com estas características pode ser o reflexo embelezado de uma situação anteriormente vivida, cujos contornos mais profundos desconhecemos e que, muito provavelmente, foram adaptados ao quadro de referência que a transmitiu.

O sacrifício e o oráculo não são, porém, exclusivos da fundação de Gadir71. Nono de Panópolis (Dion. XL, 465ss.), entre os sécs. IV e V d.C., ao descrever a visita de Baco a Tiro, coloca na boca de Héracles (anfitrião daquela divindade) a transmissão do relato de fundação de Tiro. Héracles "présente les Tyriens comme un race autochtone à laquelle il transmit jadis un oracle" (Bonnet, 1988, p. 31). Neste, refere uma águia que vivia no cimo de uma oliveira, marcando o lugar predestinado para a fundação. Esta ave, cujo sangue foi derramado no ritual de fundação, faz parte da simbologia de Melqart, tal como a oliveira, o fogo e a serpente (ibid., p. 32) e, consequentemente, da própria cidade e daqueles que se consideram descendentes dos fundadores. A cronologia desta obra justifica, porém, algumas reservas.

Justino (XLIV, 5.2) apresentou outra versão do relato, em parte condizente com a de Pompónio Mela (III, 46). Aquele autor afirmou que os sacra de Héracles (Melqart) foram transferidos para Gadir no momento da sua fundação. Mela, por seu turno, justificou a importância do lugar pelo facto de nele se depositarem as ossadas do herói, embora sem mencionar se estão associadas, ou não, à fundação.

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Heródoto (IV, 151) relatou a fundação de Cirene pelos habitantes de Tera, por ordem de um oráculo. É importante assinalar que, pouco antes (IV, 147-148*), o autor referia a fundação de Tera (no Norte de África) por parte de Teras, definido como de estirpe cadmeia (γένος* ἐὼν Καδμεῖος). Esta ilha era também, note-se, habitada por Fenícios descendentes de Membliarau.

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Não obstante, é sobre este confuso panorama que a investigação arqueológica em Cádis assentou as suas bases, partindo de vestígios materiais conhecidos para definir a localização desta fundação, bem como da sua cronologia.

No que diz respeito à localização, as escavações no palácio dos marqueses de Retaño e no edifício que lhe é contíguo ("Cine Cómico") conduziram à identificação de uma ocupação na ilha menor, com um conjunto assinalável de estruturas e materiais de finais do séc. IX numa ampla sequência estratigráfica (Frutos & Muñoz, 2008, p. 240; Zamora et al. 2011;

infra, Cap. 7). Estas escavações destacaram uma ocupação antiga na ilha menor de Gadir,

identificada pelos autores clássicos como Ἐρύθεια. Confirmaram também uma proposta anterior, que localizava a antiga cidade numa pequena elevação que se erguia sobre o canal Bahía - Caleta, nas proximidades da Torre Tavira (Fierro Cubiella, 1995, pp. 102-103; Muñoz Vicente, apud Zamora et al., 2011, p. 203). Outras propostas de localização da antiga Gadir apontavam para o Castillo de Doña Blanca (Ruiz Mata, 1999a), para a plataforma rochosa entre o Castelo de Santa Catalina e a Punta del Nao (Corzo Sánchez, 2005), ou mesmo para o Bairro de Santa María (Frutos & Muñoz, 2008, pp. 240-241).