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3. Conceitos e significados

3.3. Mestiçagem/ Hibridação

No Livro I das Histórias, Heródoto apresentou um interessante discurso sobre os Iónios da Ásia (I, 142ss.), onde podemos fazer alguns apontamentos para esta reflexão (I, 146-147*; cf. Ruiz de Arbulo, 2000, pp. 9-10; outros exemplos em Prontera, 2003, pp. 116-117). Em primeiro lugar, assinala a presença de vários povos (ἔθνη) entre os Iónios, que não têm nada

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em comum com eles e que se designam com outros nomes (I, 146.1*). Em segundo, salientou que a colonização de Mileto (I, 146.2 - 147.1*) por aquele povo não contou com a presença de mulheres atenienses: os colonizadores tomaram Cárias como esposas, assassinando os seus maridos, pais e filhos; com aquelas tiveram descendência. Em terceiro lugar, a definição dos Iónios puros não deixou de inspirar a Heródoto alguma perplexidade (I, 146.1*; 147.1), uma vez que o nome que designa este grupo integra várias entidades.

A estes exemplos poderíamos acrescentar outros que referem algumas "misturas" no seio de várias comunidades ( Str. III 5.4*; Sal., Jug. XVIII*). Além da já referida presença de Fenícios em Mênfis (Hdt. II, 112*), a referência aos Budinos (Hdt., IV, 108 - 109*), um ἔθνος vizinho dos Citas, fornece dados interessantes. A cidade de Gelono, cujos habitantes pertenciam ao território dos Budinos, apresenta uma particularidade: segundo Heródoto, os Gregos que abandonaram os empórios marítimos estabeleceram-se entre os autóctones (Budinos), mais precisamente na referida cidade. Como resultado desta migração, os santuários de Gelono respeitam alguns cânones gregos (deuses, altares e imagens), embora sejam construídos em madeira, e os Gelonos falam uma língua "meio cita, meio grega" (IV, 108.2*). A crer no testemunho herodotiano, estaríamos perante um caso em que um grupo de Gregos se estabelece no interior, seguindo as pautas construtivas presentes na região (cf. nota a IV, 108.1*) e os modelos gregos. Curiosamente, a língua parece ser mista.

Esta referência permite pensar, com as devidas cautelas, que estes grupos sentiram necessidade de reconstruir a sua identidade num outro lugar, com um outro nome, garantindo assim a sua sobrevivência num espaço onde eram, claramente, minoritários ou, pelo menos, não eram dominantes. Tal não impedia que os Gregos designassem os Budinos como Gelonos (109.1*). Outro exemplo seria o de Salústio (Jug. LXXVIII, 4*), que refere a contracção de matrimónios entre Sidónios e Numidas em Leptis, que resultaram na utilização da língua destes e dos costumes daqueles.

Heródoto assinalou também o exemplo dos cipriotas: segundo estes, existiriam dentro do seu povo elementos de origens diversificadas (VII, 90*).

Um dos aspectos mais salientes do AT no que diz respeito à interpenetração ideológica é, certamente, a condenação dos matrimónios mistos (cf. Gn. 34, 13 - 17; Sl. 106, 35-36). Estes, segundo a tradição veterotestamentária, eram condenáveis (p. ex. Ex. 34, 15-16*; Dt. 7, 3; Jz. 3, 5-7*), uma vez que constituíam verdadeiras ameaças à reprodução da ideologia presente nestes textos (cf. Anexo 1, "Antigo Testamento"). Note-se que, em Ex. 34, 15-16, parte dessa preocupação recai sobre os filhos, demonstrando assim um possível resultado do

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matrimónio de duas referências culturais diferentes. Tal não significa que a "lei" tenha sido seguida, a julgar pelas constantes referências a estas situações (1Rs. 11, 1-11*; 16, 31*).

Os exemplos não se esgotam nos relatos apresentados. Por exemplo, na região de Cachéu, na Guiné-Bissau, bem como na Guiné de Cabo Verde, muitas "identidades étnicas" incluem pessoas de origens muito diversificadas (respectivamente, Crowley, 1993, pp. 284- 285; Horta, 2009, passim), registando-se o abandono da designação original em prol de outra que podia ser mais conveniente. O mesmo pode dizer-se dos Peul, estudados por J.-L. Amselle (1987; 1990), que se integraram num grupo que, para os observadores externos, era designado por Malinké.

Estes exemplos têm a particularidade de destacar as contradições de uma investigação que se centre na separação rígida entre grupos em contacto num processo histórico. Uma tentativa no sentido de analisar a existência de processos de hibridação abre caminho para o uso do conceito de mestiçagem ou de mestiço. Impõe-se, no entanto, uma delimitação do conceito, de modo a perceber o seu significado e alcance.

O termo parece ter uma origem grega (μιξ- /miks- ou μειξ-/ meiks) e difere, no seu significado, das raízes ὀμó- (homo-) e ἡμι (êmi-). As duas últimas traduzem-se, respectivamente, por "o/a mesmo/a" (ὁμόγλωσσος*, a mesma língua) e "semi-" (ἡμιθέων*, semidivino). Um texto de Políbio (I, 67.7 = D.S. XXV 2.2) indica que o exército de mercenários que lutou contra Cartago era composto por Iberos (Ἴβηρες), Celtas (Κελτοί), Ligustinos (Λιγυστῖνοι), Baleares (Βαλιαρεῖς) e μιξέλληνες* (miksélênes). A tradução de μιξέλληνες é discutível, podendo referir-se a Gregos mestiços, a julgar pelos sentidos de outras palavras com a raiz μιξ- (cf. Dubuisson, 1982, p. 11ss.; Platão, Mx. 245d; X., Hel. II, 1.15; E., Ph. 138: μιξοβάρβαρος*).

Esta raiz parece estar na origem dos termos correspondentes em Latim (Miscĕō*,

mixticius*, mixtum*), da qual herdámos a palavra "mestiço". Inicialmente, esta representava

uma opção política, designando os Cristãos que se uniram aos Muçulmanos na luta contra o rei Rodrigo (Gruzinski, 1999, pp. 36-37 e n. 11).

No Novo Dicionário da Língua Portuguesa (2007), Mestiço é associado a outros termos: (a) Mestiçagem: 1. "Cruzamento de raças diferentes"; 2. "Reprodução de mestiços entre si"; (b) Mestiçar: "cruzar etnias diferentes ou indivíduos da mesma etnia com os de outra, gerando mestiços"; (c) Mestiço: "aquele que tem pais de etnias diferentes entre si".

O uso destes termos parece pressupor uma apriorística separação entre dois pólos que o observador considera como diferentes, biológica e etnicamente. Como observa F. Twiesselmann (1971, p. 145), um indivíduo é mestiço "quand ses deux progéniteurs sont

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issues de populations jugées suffisamment différentes par l'ensemble de leur patrimoine héréditaire". A observação destas diferenças baseou-se, maioritariamente, em caracteres somáticos, nas classificações das "raças" e "sub-raças" humanas ("tipos teóricos") e na inter- penetração de unidades somatológicas, partindo da constatação de que os indivíduos da espécie humana são inter-fecundos (ibid., pp. 145-147). Não podemos desligar estas classificações do desenvolvimento do conceito de Raça no séc. XIX (cf. supra, 3.2.2) e das implicações que teve nos trabalhos de Gobineau sobre o grau de "pureza" da descendência de Noé, com clara vantagem para as populações herdeiras de Jafeth (Gn. 10, 2-5*; Bernal, 1993, pp. 115-116).

O estudo das mestiçagens incidiu, maioritariamente, sobre processos de contacto entre comunidades de continentes diferentes (Gruzinski & Rouveret, 1976; Gruzinski, 1999; Bernand & Gruzinski, 2007). Apesar de partir de um pressuposto questionável (a "mistura" entre pessoas de categorias "raciais" diferentes), o foco e os resultados desta análise têm uma conotação cultural (cf. Escacena, 2011, p. 166, com uma explicação clara desta questão). Por seu turno, a abordagem cultural e biológica deste fenómeno está presente, respectivamente, nos conceitos de μιξέλληνες e μιξοβάρβαρος (Dubuisson, 1982, p. 15).

O destaque dado aos matrimónios "mistos" permite assinalar a criação de novas realidades culturais e tecnológicas (cf. Smedley, 1998, p. 692; Prontera, 2003, p. 117). A este respeito, "les métissages américains sont des processus irréversibles" (Bernand & Gruzinski, 2007, p. 617), marcando a relação das comunidades com o ambiente social e natural que as rodeava. São, portanto, processos de transformações recíprocas e não só de uma influência unilateral (por norma associada à comunidade que representamos como mais desenvolvida). É assim que se regista a "europeização" da população residente e a "americanização" dos Europeus, sobretudo a partir das gerações que nascem neste contexto de contactos. Estas "mestiçagens" evoluem "selon les rythmes et des chronologies qui s’accordent mal à notre vision linéaire de l’histoire" (ibid., p. 618).

Estas leituras desafiam a homogeneidade, a singularidade e a ordem, com a afirmação de panoramas heterogéneos, plurais e desordenados (Amselle, 1990, pp. 9-10; Gruzinski, 1999, p. 36), obrigando a matizar o hábito intelectual polarizante que preside à análise de processos de interacção como estes e, dentro do âmbito deste trabalho, do fenómeno "orientalizante". Não obstante, outras perspectivas sobre o tema da mestiçagem colocam questões que importa sublinhar. F. Laplantine e A. Nouss opinam que, por um lado, "le métissage est une composition dont les composantes gardent leur integrité" (1997, pp. 8-9) e,

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por outro, que "[...] n’est pas la fusion, la cohésion, l’osmose, mais la confrontation et le dialogue" (ibid., p.10, apud Gruzinski, 1999, p. 38).

O conceito de mestiçagem foi também uma ferramenta útil na explicação dos processos de transformação (vulgo aculturação) ocorridos nas populações residentes que entraram em contacto com os Fenícios (Wagner, 1989, p. 159ss.; 2005b; Bandera & Ferrer, 1995, pp. 53- 54; Marín, 2011, p. 16). Estes trabalhos reflectem, directa ou indirectamente, a influência de um importante artigo publicado por S. Gruzinski e C. Rouveret (1976) que incide sobre a questão da aculturação61.

M.ª L. de la Bandera e E. Ferrer assinalam, p. ex., que a formação de comunidades mistas pode ser comum em "centros semiurbanos como Mesas de Asta, Carmona, Montemolín o la misma Cástulo" (1995, pp. 63-64), baseando-se no espólio identificado numa sepultura da necrópole de Estacar de Robarinas (Cástulo, Jaén) e em duas referências escritas (D.S. XXV, 12*; Liv. XXIV, 41; cf. Blázquez, 1992, p. 502) relativas a matrimónios contraídos por Cartagineses. Esta estratégia parece ser muito útil na aquisição de poder, para estabelecer alianças (Sil. It., Pun. III, 97-107)62 e, a julgar pelo testemunho veterotestamentário sobre Acab (1Rs., 16, 29-33*), para a transmissão de cultos.

A formação de comunidades mistas, como vimos nos exemplos assinalados por Heródoto (I, 146-147*; II, 112*; IV, 108-109*; VII, 90*), bem como nalguns casos africanos e no último apresentado, é um excelente ponto de partida para reflectir sobre os processos de interacção que resultam na e da consolidação de identidades. Recentemente, A.M. Arruda (2010, p. 443ss.) assinalou, com acerto, que a presença fenícia no actual território português deu início a processos irreversíveis de transformação que, progressivamente, impedem uma distinção clara entre sítios orientais e indígenas.

Estas situações podem ser vistas através da perspectiva que C. Bernand e S. Gruzinski apresentam na Histoire du Nouvel Monde (Vol. II): "la généralisation des métissages accoutume les individus et les groupes les plus exposés a circuler entre les cultures et les modes de vie. Ces va-et-vient développent une sensibilité culturelle à la différence, une

aptitude à varier les registres, tout comme ils stimulent la capacité à mêler ou a multiplier les

masques et les appartenances" (2007, p. 622. O itálico é meu).

61 O tema da aculturação, apesar do seu interesse, não é desenvolvido nesta dissertação, ainda que tenha sido considerado. Como tal, remeto a discussão e os aspectos fundamentais do problema para os trabalhos de J. Alarcão e A.M. Santos (1970), Gruzinski e Rouveret (1976), Dubuisson (1982); C. Wagner (1989), J. Alvar (1990) e S. Baucells Mesa (2001).

62 É Sílio Itálico, e não Tito Lívio (XXIV, 41), que refere Imilce, princesa nascida em Cástulo, como esposa de Aníbal.

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Uma das possíveis consequências deste fenómeno pode ser aquilo que estes autores apelidam de mobilidade das identidades (cf., igualmente, Smedley, 1998, p. 692; Mark, 2002; Horta, 2009). Porém, este não será, seguramente, o caminho mais fácil, na medida em que pouco ou nada sabemos sobre o modo como essas diferenças são percebidas nas sociedades que pretendemos analisar. Ao entender a cultura como um "ensemble de pratiques internes ou externes à un espace social donnée que les acteurs sociaux mobilisent en fonction de telle ou telle conjoncture politique" (Amselle, 1990, p. 13), abrimos possíveis caminhos para observar a oposição entre as várias (id)entidades que protagonizam os processos de interacção.

Assim, se em determinadas situações pode haver uma oposição que se traduz numa exclusão mútua, noutras assiste-se a situações de interpenetração, convergência e aproximação. Ou seja, essas entidades opostas podem identificar-se entre si de acordo com a conjuntura política e social (Gruzinski, 1999, pp. 39 – 40).

A análise arqueológica (diacrónica) das relações entre Fenícios e população residente parece dar conta de uma progressiva imposição de manifestações materiais associadas a uma matriz oriental, resultando num cenário de aparente homogeneidade. Neste sentido, "a relação que se estabelece entre os dois grupos é sempre assimétrica e a dominação exercida pelo forâneo sobre o autóctone é real" (Arruda, 2010, p. 448). Qual o papel desempenhado pelas "mestiçagens" neste contexto?

O estudo de possíveis "mestiçagens" encontra algumas barreiras no estudo do Baixo Guadalquivir, em que se desconhece, em boa medida, o cenário anterior ao estabelecimento de comunidades orientais naquelas paragens (cf. Escacena, 1995; 2011, p. 166; Belén & Escacena, 1995a; Amores, 1980, etc.). A ausência de informações é, neste sentido, um obstáculo para uma melhor leitura sobre as aparentes transformações das comunidades residentes nesta região, como veremos ao longo deste trabalho. Note-se ainda que o registo arqueológico do Baixo Guadalquivir acaba por ser, ainda hoje, um ponto de partida para caracterizar a “sociedade tartéssica”.

Retomando a interpretação da sepultura de Estacar de Robarinas, os autores destacam o possível papel que desempenhou o santuário de La Muela. Este, para J.M.ª Blázquez (apud Bandera & Ferrer, 1995, p. 64, n. 47), indicia a presença de uma comunidade oriental num lugar estratégico de comunicação. Esta fundação pode ter servido como lugar de culto comum, estruturando a interacção, por um lado, e propiciando a mestiçagem e a reprodução de ideias através de matrimónios "mistos", por outro. Esta interpretação pode introduzir o próximo capítulo, que incide sobre o papel dos santuários e das necrópoles na construção social de um território.

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