• Nenhum resultado encontrado

3. Conceitos e significados

3.5. Discussão

A implantação de santuários de cariz oriental na fachada atlântica da Península Ibérica pode manter alguma relação com estes processos de transformação. Como marcadores territoriais e, consequentemente, como elementos estruturantes de identidades, estes santuários parecem institucionalizar a interacção, o comércio e, muito provavelmente, as relações de domínio. Ou seja, tornam-se símbolos da presença e da reprodução de uma ideologia que passaria a controlar o modo de vida das populações que residiam nesses territórios, marcando e sacralizando a sua paisagem.

Atendendo ao exemplo de Angola (supra, 3.3.2), a fundação de um marcador territorial que garante as transações e simboliza a presença, directa ou indirecta, de uma comunidade

90

externa ao território, pode fazer pensar na ressacralização da paisagem por parte desta última. Esta questão deve ser colocada com alguma cautela, uma vez que não parece haver registo de uma destruição sistemática de estruturas preexistentes, antes de uma ocupação de lugares estratégicos na circulação de bens e, em última análise, de ideias. No entanto, a possibilidade de utilização de marcadores naturais (supra, 3.3.2) deixaria em aberto uma proposta de trabalho interessante que, infelizmente, carece de provas, nos textos e no registo arqueológico.

Os resultados destas fundações parecem ir no sentido da transformação no seio das comunidades locais. A este respeito, A.M. Arruda comenta que "[...] o contacto de culturas que decorreu em consequência da chegada de populações próximo orientais ao ocidente europeu resultou na quase dissolução dos sistemas culturais das comunidades menos sofisticadas do ponto de vista tecnológico, neste caso as indígenas, ainda que destas últimas sobreviveu, pelo menos, um efectivo legado genético" (2010, p. 448).

Tivemos oportunidade de assinalar um caso que se assemelha a este, partindo da premissa do desfasamento tecnológico entre as entidades em contacto. Vimos também que a tecnologia não foi determinante para o abandono dos esquemas tradicionais, mas antes a chegada de um novo cenário político, económico e ideológico. O desmantelamento sistemático das identidades locais, quer através da destruição dos marcadores territoriais, quer através da imposição de novas formas de exploração do território, obrigaram a transformações significativas. Estas, por seu turno, parecem ir no sentido da concepção da identidade como uma estratégia de sobrevivência.

É neste contexto que a possível formação de Spirit Provinces, estruturada pelos santuários, pode ter contribuído para a imposição de uma ideologia dominante, na medida em que esta estabelece as regras de um jogo que, à partida, é desigual. É a ideologia dominante, adscrita a um determinado momento, que produz o discurso sobre a fundação de um santuário, adaptando-a às realidades locais, ou até apropriando-se da história do grupo que era residente à chegada de novos contingentes populacionais.

Estas situações não impedem a formação de descendências, diríamos, mistas. Porém, não se sabe ao certo qual a posição que estes descendentes ocupam na sociedade, uma vez que tal pode depender da relação estabelecida entre grupos e das representações que estes promovem entre si (supra, 3.3., μιξέλληνες* e μιξοβάρβαρος*). P. ex., no texto platónico de

Menéxeno (245d), embora a sua autencidade possa ser discutida (Dubuisson, 1982, p. 13,

n.42) o termo μιξoβάρβαρος é utilizado para demonstrar a pureza dos Atenienses. Como vimos, os termos que exprimem a ideia de "mestiçagem" adquirem um sentido cultural (μιξέλληνες) e biológico (μιξoβάρβαρος). Ou seja, um Bárbaro pode converter-se em Grego

91

ao adquirir elementos da cultura grega, enquanto que um "mixobárbaro" é, biologicamente, filho de um matrimónio misto.

A questão da mestiçagem afigura-se como um problema complexo, na medida em que depende da percepção sobre as duas entidades em contacto e que se misturam. Até que ponto o seu uso não reflecte as nossas concepções das "raças" humanas (orientais, africanos, americanos, europeus)? Só se considera "misto" um matrimónio entre estas entidades? Ou também podemos aplicar o conceito a matrimónios contraídos entre comunidades que, etnicamente, se consideram diferentes? A investigação não valorizou de forma suficiente esta última questão, debruçando-se, no entanto, para a anterior. Ou seja, vimos casos de mestiçagens entre europeus e americanos, e entre orientais e indígenas na Península Ibérica. O conceito acaba por esgotar-se nestes pontos.

De qualquer modo, o termo é uma ferramenta útil que permite destacar a convergência de âmbitos culturais muito díspares, ao mesmo tempo que permitiria explicar alguns mecanismos de transformação que operam de forma recíproca em cenários de interacção. Destes cenários, pode resultar a emergência de novas identidades, através de processos de

identificação, reidentificação e desidentificação. Foi o que vimos, p. ex., no conteúdo da

terminologia grega que refere comunidades humanas (supra, 3.2.3), em oposição ao sentido de "pureza" que caracterizou a construção do conceito de Etnia no século XIX, condicionado, em boa medida, por uma perpetiva essencialista que isolava as várias (id)entidades, sem considerar a interpenetração.

Partindo do princípio da heterogeneidade, os Tartéssios podem não ser uma entidade "pura", uma vez que, como vimos, a unidade de um povo não pressupõe a partilha de uma língua, de costumes, de um único património genético e cultural (supra, 3.2.3). A etnicidade, tal como procurámos expor (3.2.4), acaba por ser uma resposta a estímulos externos (supra, 3.1). Assim, para separar duas entidades (Tartéssios/ indígenas e Fenícios), deveríamos ter em linha de conta os motivos que teriam conduzido a essa situação, valendo-nos do exemplo da identificação grega perante os Persas, entre outros. Estes aspectos serão tratados na Parte 4.

Ainda dentro desta questão, vale a pena questionar de que modo podemos, com as ferramentas que temos ao nosso alcance, reconstruir o território de Tartessos sem utilizar os nossos próprios critérios de representação (isto é, toponímia, materialidade, costumes funerários). A tentativa de fazer coincidir o território com o mapa, como vimos (3.3.2), não parece responder aos mecanismos de percepção territorial (ou à territorialidade) das sociedades que pretendemos analisar. Por esse motivo, o estudo dos marcadores territoriais, consequentes da construção social do espaço, pode ser útil para compreender o papel que os

92

santuários (cap. 5) desempenharam nas transformações dos comportamentos funerários (cap. 6) e da organização dos habitats e das actividades económicas aí desenvolvidas (cap. 7). Em suma, da identidade ou dos mecanismos de identificação e organização das comunidades residentes e exógenas.

93