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3. Conceitos e significados

3.1. Identidade

O termo Identidade deriva do Latim identitas e é definido pelo Novo Dicionário da

Língua Portuguesa como "qualidade do que é idêntico", "paridade absoluta", "analogia" e

"conjunto de elementos que permitem saber quem uma pessoa é". Este acto de identificação, ou "determinação da identidade", está na base da construção de uma personalidade individual ou colectiva, por sua vez apoiada em mecanismos de diferenciação e negação.

Estes mecanismos fazem com que a identidade seja um conjunto de representações que se definem a partir da relação entre o Eu e o Outro (cf. Escacena, 2011, p. 161). Esta relação gravita em torno de processos de afirmação/ negação (Lalanda, 2005, pp. 39-40).

Estes processos são mecanismos que garantem, por sua vez, a sobrevivência biológica ou cultural de um indivíduo ou de um grupo humano. Consequentemente, a identidade pode ser vista como uma construção resultante de processos de imitação, adaptação ou negação (Potolski, 2006, passim), e como uma construção que estrutura a relação do indivíduo com os outros ao longo da sua vida (Knapp, 2008, p. 32).

Esta relação pode ser determinada pelo ambiente social do indivíduo. Ao longo de um percurso individual, estabelecem-se relações de identidade com a família, com o grupo social (se for esse o caso) e com uma comunidade mais ou menos alargada. É nestas relações que se definem afinidades e diferenças entre os vários indivíduos que compõem uma sociedade (Hernando, 2002, p. 50ss.; Duploy, 2006, passim). Consequentemente, a identidade é um fenómeno compósito e cambiante. Compósito, porque cada indivíduo constrói a sua

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identidade a partir de vários elementos que o caracterizam (a pertença a uma família, a um grupo de opinião, a uma determinada camada social, etc.). Cambiante, porque a construção da identidade é determinada pelas circunstâncias em que interessa destacar, ocultar ou adaptar qualquer um desses aspectos.

Creio que dois exemplos podem transmitir por outras palavras estas afirmações. O termo sincretismo (Συγκρητισμός), exposto por Plutarco em De Fraterno amore (Moralia, 490b), descreve a união entre Cretenses quando são ameaçados por um inimigo comum. É perante esta ameaça, identificada por um nome, que dois grupos que vivem em permanente oposição se unem para garantir a sua sobrevivência.

O segundo exemplo é bem mais próximo de nós. Atendendo ao excurso sobre a história de Portugal, protagonizado por Vasco da Gama nos Cantos III e IV d’Os Lusíadas, verificamos que o percurso histórico “lusitano” é construído em torno da luta contra dois inimigos: o Castelhano e o Mouro. O primeiro representa uma ameaça à independência, enquanto que o segundo é um inimigo religioso. Quando esse inimigo é o Mouro, Castelhanos e Portugueses unem esforços para combatê-lo (cf. Albuquerque, 2008, pp. 155-158). Esta identificação depende, como podemos ver, das circunstâncias históricas de uma comunidade.

Compreende-se assim o papel das designações na individualização de uma personalidade individual ou colectiva. O nome, elemento estruturante da identidade, determina o que sou e o que não sou. Atendendo, p. ex., a um contexto de identificação nos Poemas Homéricos (Od. I, 180-181*), verificamos que a identidade de um indivíduo recorre ao nome individual, dos seus progenitores, da comunidade onde se insere e, finalmente, do seu grupo dentro dessa mesma comunidade (basileus, escravo, etc.). Esta identificação tem um claro reflexo no uso de γένος* (génos) nos Poemas Homéricos (cf. infra, 3.2.3)

Ou seja, cada sociedade estabelece, de acordo com a ideologia dominante, um sistema de relações sociais nas quais o indivíduo é integrado. Estabelece, igualmente, uma linguagem

simbólica, compreensível para os membros da comunidade, e uma série de critérios que a

individualizam perante outra. Mesmo não afectando o sentimento de pertença em relação a uma comunidade como um todo, estas relações sociais estabelecem uma série de fronteiras

sociais (Grosselain, 2000; García Fernández, 2007) entre os seus membros. Estas fronteiras

podem ter um reflexo arqueológico (p. ex., os símbolos das moedas e a língua das suas inscrições, determinados comportamentos sociais, etc.) e transmitem a tal relação, ou oposição, entre o Eu e o Outro (Grosselain, 2000, p.188, com bibliografia). Podem também incidir sobre qualquer um dos possíveis componentes de uma identidade: género, grupo de idade, hierarquização social, grupos "étnicos" dentro de uma comunidade, etc.

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Esta questão foi abordada, sobretudo, pela Nova Arqueologia, preocupada com a análise das diferenças existentes entre os membros de uma comunidade. A valorização do registo funerário (Brown, ed. 1971) conduziu a algumas leituras sobre a "personalidade social" e a "identidade social" de um indivíduo (Lull & Picazo, 1989, pp. 9-10; Torres, 1999, p. 44), embora estas leituras estejam integradas na análise de processos de complexificação social.

Determinados sectores da população podem revestir-se de aparatos simbólicos e de comportamentos que os identificam e diferenciam perante outros. Esta pode ser uma leitura possível dos vários objectos representados nas estelas de guerreiro, muito provavelmente associados a determinados grupos sociais e/ou étnicos (Celestino Pérez, 2001, p.140ss.; Torres, 2002, pp.72-73). Do mesmo modo, o espólio e o tratamento do cadáver podem ser elementos associados a grupos diferenciados dentro de uma mesma comunidade. No entanto, como vimos, a identidade é composta por vários patamares. O elemento "grupo social" ou o elemento "étnico" são apenas dois, entre vários, critérios de representação, e não a identidade como um todo.

Para ilustrar estas afirmações, vejamos o exemplo dos Citas, amplamente representados na obra de Heródoto. Este pode explicar:

 A materialização de uma fronteira social (IV, 3. 3-4*): o uso dos chicotes dos cavalos faz, aparentemente, parte de um código social associado a um relato (o regresso dos Citas); a ostentação desse símbolo afirma a diferença de um grupo perante outro (Citas e filhos dos escravos);

 O uso de critérios de identificação diferenciados num cenário de oposição (IV, 1*; 3.1*): de um lado, os filhos dos escravos que, independentemente da sua origem, utilizam essa situação para se unirem contra os Citas que, do outro lado, representam um grupo, diríamos, étnico;

 O tratamento diferenciado do corpo dos reis Citas (IV, 71*; cf. Soares, 2003, p.184ss.): o cadáver viaja até aos confins do território, num percurso que vai juntando cada vez mais gente. Esta cerimónia é fundamental na reprodução da ideologia e do poder dominantes.

Independentemente da veracidade destas informações de Heródoto, é possível assinalar a materialização dos vários patamares da identidade, tanto ao nível das relações quotidianas como dos enterramentos diferenciados. O uso de um determinado código de conduta ao nível do tratamento do corpo pode marcar uma diferença de pertença a um grupo no seio de uma comunidade (cf. Gn. 34, 8-17*). Para além dos já assinalados grupos étnicos e sociais, haveria que acrescentar a identidade dos grupos de idade. Um indivíduo pode passar por várias etapas

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ao longo do seu percurso: uma criança tem um estatuto diferente de um adolescente, e este, por sua vez, diferente de um adulto. Como defunto, o indivíduo pode revestir-se de uma identidade própria. Esta perspectiva, desenvolvida por Van Gennep, incide sobre os chamados

rites of passage, que não vão ser alvo de desenvolvimento neste trabalho (cf. Torres, 1999,

pp. 43, com uma excelente síntese desta temática). Estes patamares da vida individual podem reflectir-se na diferenciação dos enterramentos.

A identidade do defunto permite pensar noutro tema que importa destacar para a questão da construção da identidade de grupo. A partir do momento em que um indivíduo morre, os vivos constroem em seu torno uma representação da imagem social e/ ou sentimental do defunto (Pearson, 2006; infra, 5), integrando-o nos antepassados. O enterramento, e a própria necrópole, podem ser mecanismos de materialização visível de uma memória colectiva que, através da transmissão oral (ou escrita), assegura a reprodução dos comportamentos perante a morte e, em última análise, da ideologia dominante. Creio que é neste contexto que podemos integrar os Poemas Homéricos: os defuntos são lembrados, quer através dos seus feitos, quer através da descrição dos enterramentos. A implantação dos seus túmulos, por sua vez, parece estruturar essa memória, na medida em que são construídos em função da sua visibilidade (Od. XXIV, 80-85*).

A necrópole pode ser vista como um marcador territorial ou, se preferirmos, como um elemento que materializa a pertença de uma comunidade a um determinado território (Hdt. IV, 71*). Este aspecto será tratado mais adiante (3.3.3.2), mas podemos desde já, estabelecer uma relação entre enterramentos e identidades colectivas. Veremos também que os santuários podem desempenhar a mesma função como elementos estruturantes de sentimentos ou relações de pertença44, na medida em que também estão associados aos antepassados que os fundaram (p. ex., Hdt. II, 54 - 57; Str. III 5, 5[1-2]*; infra, 3.3.3.1). Ambos podem ser vistos

como materializações da memória colectiva ou, por outras palavras, da produção de uma imagem histórica da comunidade como um todo ou, somente, de um grupo nela integrado45.

Com isto, colocamos questões sobre a relação entre materialidade e identidade. Esta relação tem atrás de si uma pesada, e preconceituosa, herança historiográfica que deve ser superada (Veit, 1994, p. 36ss.; Niculescu, 1997–98, passim; Fernández Götz, 2009a, p.188ss.; Fernández Götz & Rodríguez Zapatero, 2011, p. 220ss.). No entanto, não deixa de ser

44 F. Wulff Alonso (2005) prefere o uso de relações de pertença, que pode ser mais adequado ao objecto de estudo deste trabalho (cf. Mora Serrano & Cruz Andreotti, 2004, pp. 9-10).

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No tema que nos ocupa, Tartessos, parece pertinente afirmar que o percurso historiográfico desta entidade é um elemento fundamental na construção da imagem histórica espanhola, não só na leitura e interpretação dos documentos escritos, como também na própria leitura arqueológica (Wulff Alonso, 2003; Martí-Aguilar, 2005a; 2005b; 2009).

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interessante procurar ver na materialidade os vestígios das fronteiras sociais criadas e manipuladas por um determinado grupo através da elaboração de simbolos cujo significado nem sempre é perceptível no registo arqueológico (p. ex., os chicotes dos cavalos em Hdt. IV, 3*). Desempenhando a função de elemento de comunicação visual, esses símbolos devem ser

visíveis para os membros da comunidade para que, através deles, seja possível reconhecer

relações de igualdade e diferença.

A análise dos mecanismos de identificação ou das senhas de identidade de uma sociedade resulta, sobretudo, das questões colocadas pela Globalização (Cruz Andreotti, 2009, pp. 297-298). O registo escrito é um excelente ponto de partida para responder às questões levantadas a esse respeito, mas transmite a percepção do mundo num determinado contexto, num determinado momento, e depende também do objectivo de um discurso. Tal aspecto conduz, por vezes, a grandes discrepâncias entre a documentação escrita disponível e as comunidades representadas, ou, se preferirmos, entre a realidade observada e a realidade

vivida. Como reconstituir, assim, a construção de identidades de sociedades que não deixaram

testemunhos escritos próprios?

A Arqueologia e o estudo da toponímia seriam, neste sentido, excelentes documentos para colmatar esta lacuna. No entanto, como veremos mais adiante, podem não ser suficientes, uma vez que contamos, para esta leitura, com critérios de representação tão questionáveis como aqueles que presidiram aos discursos que referem as comunidades peninsulares pré - romanas.

Não obstante esta limitação, sempre presente nas leituras propostas neste trabalho, é possível definir ferramentas de aproximação para responder a estas questões. Um dos critérios que podemos utilizar é o da visibilidade de determinadas manifestações materiais. Isto é, alguns objectos podem ter servido como elementos de identificação de uma comunidade ou de um sector desta, e podem ter sido fundamentais na construção das referidas fronteiras

sociais. Faltam, contudo, elementos materiais que não sobrevivem aos processos pós-

deposicionais, o que compromete ainda mais esta leitura.

Sem um conhecimento preciso das relações sociais ou intercomunitárias, é muito difícil, senão impossível, verificar a utilidade dos objectos enquanto potenciais senhas de identidade. A construção de identidades é, creio, um processo dialético que produz "identidades alteroadscritas" e/ou "egorreconocidas" (Terén, 2002, p. 46), determinado por um momento de contacto que acciona a percepção ou a representação e que lhe dá sentido. Ou seja, pode espelhar a relação entre dominadores e dominados, ou entre comunidades próximas ou distantes entre si.

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Em todo o caso, vejo a identidade como um fenómeno sujeito aos avatares dos processos históricos vividos por um grupo humano, tratando-se, consequentemente, de uma

relação de forças entre os agentes envolvidos num processo recíproco de representações e

adaptações (Amselle, 1990, p. 54ss.; Ruby, 2006, p.65). No caso grego, as invasões persas justificaram a construção de uma identidade comum (cf. Hall, 1997, pp. 1-2 e 56ss.; Cardete del Olmo, 2004, p. 19ss.) e de um sentido pejorativo para "Bárbaro" (Dubuisson, 1982, p. 7), reforçando assim a ideia de que a identificação pode resultar de uma negação. Esta perspectiva está bem presente no pensamento de Tucídides (I, 3.3*).

É momento de concluir este capítulo, destacando a sua relação com os seguintes.

Em primeiro lugar, os etnónimos transmitidos pelas fontes escritas são o resultado de percepções motivadas pelos contactos estabelecidos entre populações de territórios e contextos culturais e sociais diferentes (cf. Fernández Götz & Ruiz Zapatero, 2011, pp. 230- 231, com bibliografia). Pretendem, antes de mais, simplificar a realidade para torná-la compreensível aos olhos do observador. Este, por sua vez, utiliza os critérios que o identificam para representar outras comunidades. Neste sentido, a Odisseia representa o grau de hospitalidade, a exploração económica do território e a alimentação para estabelecer diferenças entre observador e observado (Hartog, 1996). Heródoto, por seu turno, ao definir o que caracteriza os Gregos, procura representar as sociedades que observou ou das quais teve informações (Hartog, 2001; Silva, 2001; Soares, 2003).

Em segundo lugar, o destaque dado à análise dos marcadores territoriais revela-se fundamental para compreender as relações estabelecidas entre colonos e população residente, bem como as aparentes transformações destas últimas. O caso de Angola é expressivo neste sentido, uma vez que a colonização implicou um processo de desmantelamento das estruturas preexistentes e uma reacção direccionada para a manutenção ou sobrevivência dos sistemas ancestrais (infra, 3.3.2). O estudo dos marcadores territoriais, fundamentais para a construção social do território, surge como um interessante campo de análise para as relações sociais que estruturam as identidades em cenários de contacto frequente ou de domínio efectivo de uma população sobre outra.

Finalmente, e em terceiro lugar, a análise de processos de hibridação ou mestiçagem é importante para colocar algumas interrogações em relação ao modo como algumas entidades são representadas como “puras” quando implicam, p.ex., Fenícios e Indígenas, e como esta polarização não se aplica a partir do momento em que se assinala uma origem “europeia” de alguns aspectos da materialidade ou mesmo da Língua. Novamente, alguns exemplos da História de África (Horta, 2009) e até mesmo da América (Gruzinski, 1999; Gruzinski &

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Rouveret, 1976; Bernand & Gruzinski, 2007; Wagner, 1989) podem ser utilizados como fontes de comparação, não como exercício de analogia, mas como fonte de inspiração para colocar questões às nossas percepções do Presente e, consequentemente, do Passado.