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2. Três questões prévias: Toponímia, Fontes escritas e História de África

2.2. Fontes escritas e registo arqueológico

"Las fuentes literarias [...] no nos llevan al acontecer pasado, sino a los sentidos que nuestros ante- pasados creían descubrir en el acontecer."

J. Sanmartín, 1994, p. 227

A segunda questão prévia enunciada neste capítulo é a relação que se estabelece entre as fontes escritas e o registo arqueológico num trabalho que, como este, pretende defender um questionário aplicável aos dois campos de estudo. Trata-se, no essencial, de um ponto de partida para esclarecer eventuais dúvidas sobre a opção tomada nesta investigação, bem como para compreender o uso de outro elemento - a História de África - na elaboração deste questionário.

As citadas palavras de J. Sanmartín resumem com elegância um dos grandes problemas que se impõem à utilização das fontes escritas para o estudo da História das populações peninsulares em geral, e de Tartessos em particular. Os textos analisados neste trabalho são, no essencial, representações ou percepções da realidade, adaptadas não só ao contexto social e cultural de quem produz o discurso, mas também aos seus destinatários. A construção "exo- étnica" de uma comunidade "faz-se [...] nos limites e possibilidades dos referentes culturais do observador" (Horta, 1995, p. 190), com os seus conceitos, critérios, etc., resultando por vezes da produção de uma imagem sobre os processos de interacção (conflito, aliança, relações comerciais, etc.). Veremos que, na maioria dos testemunhos apresentados, o observador e o autor do texto não são a mesma pessoa, o que também dificulta a análise de um documento. Dentro deste, a referência a um território ou a uma comunidade desempenha um determinado papel, que é exigível reconstituir, no conjunto do discurso, bem como dos objectivos e limitações do autor. Lidamos, assim, com testemunhos nos quais o observador externo criou para si uma síntese da realidade observada (por ele ou por outros), catalogando- a segundo os seus critérios, a partir dos quais individualiza os grupos "étnicos".

Em que contexto são estas representações integradas? Nos encontros entre sociedades? Na História de quem as produz? Ou na História das comunidades representadas? As respostas a estas questões podem ser múltiplas.

Se, por um lado, uma representação evoca um sistema de conceitos e valores de uma sociedade (e, como tal, é um documento útil para a sua caracterização dos mesmos), por outro pode fazer eco das relações sociais que, necessariamente, têm implicações no devir de cada um dos intervenientes no contacto inter-cultural (ibid., p. 182ss.; cf. Alvar, 1990). O que

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obriga, necessariamente, ao conhecimento histórico do agente da representação e do agente representado. Entender estas limitações é, por conseguinte, necessário quando se pretende ler, criticamente, os textos que referem as comunidades peninsulares. Faltam, porém, textos que testemunhem o "outro lado" (i.e., autóctone) do olhar43. Por conseguinte, dispomos de um conjunto importante de fontes que em nenhum caso devem ser confundidas "com a reconstituição histórica, ou mesmo antropológica, dessas sociedades. Estudar o modo como os produtores das fontes escritas [...] as viram não é, propriamente, estudá-las em si mesmos" (ibid., p. 195). Esta consideração é de extrema importância para a leitura aqui apresentada.

A análise de um discurso deve considerar o contexto em que surge, bem como o papel que determinados excertos desempenham no conjunto de uma obra ou de um relato. P. ex.: Heródoto descreve as viagens de Foceenses (I, 163*) e Sâmios (IV, 152*) a Tartessos, inserindo-as em relatos que explicam o que o autor pretende transmitir (a muralha dos foceenses e a fundação de Cirene, respectivamente). O seu interesse pela etnografia das populações afectadas pela expansão persa justifica o desinteresse pelo Ocidente (Hdt. III, 115*). Os seus informadores, por seu turno, apresentam estes relatos com a sequência narrativa que encontramos na poesia épica, nomeadamente nos Poemas Homéricos, e a forma do seu discurso pode não coincidir com os objectivos de Heródoto (Albuquerque, 2009; 2010).

O Antigo Testamento (AT), por seu turno, coloca alguns problemas de leitura, nomeadamente a composição e a cronologia dos seus textos. Estes factores condicionam a leitura da imagem histórica que estes documentos transmitem sobre os "filhos de Israel", na medida em que alguns deles foram elaborados depois do Exílio e, portanto, representam uma ideia desse tempo sobre o passado. Não importava uma descrição histórica rigorosa, mas antes a construção de uma mensagem que justificasse a posse de um território e a centralização do culto de Yahweh em detrimento das outras divindades às quais se prestava culto em Canaã. Todos estes aspectos são tratados, embora de um modo necessariamente breve, nas introduções às obras no Anexo 1 e nas ocasiões em que se justifica na dissertação.

É também importante atender às condições de transmissão de um texto da Antiguidade para dele retirar informações. As várias edições destes documentos apresentam, em muitos casos, correcções posteriores que devem ser consideradas. Tal foi notório nos trabalhos de A. Schulten, que alterou determinadas passagens e acrescentou termos a lacunas para servir os

43 "Autóctone" significa, aqui, a comunidade que habita um lugar no momento da representação. Como tal, não deve ser lido no contexto da polarização "Fenícios - Indígenas".

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interesses da sua investigação. Dentro das possibilidades do signatário, assinalam-se estas questões no Anexo 1.

Outro tanto deve ser dito em relação à tradução de um texto. Por este motivo, assinalam-se, ao longo deste trabalho, termos que apresentam problemas de interpretação, ou mesmo discrepâncias nas versões consultadas. Este estudo de pormenor não se estende à totalidade dos documentos, optando-se por limitar a análise a aspectos muito concretos. Salvo uma ou outra excepção, os textos apresentados no Anexo 1 são traduções feitas por terceiros, apontando-se as diferenças mais significativas.

A oralidade é também um tema considerado nestas fontes de informação. Neste contexto, destaca-se o trabalho de Jan Vansina (20062), desenvolvido no Congo, sobre a manutenção e transmissão de tradições orais em comunidades que não utilizam a escrita para preservar a sua memória. É interessante verificar que na própria obra de Heródoto existem vestígios de informações que o autor ouviu em vários contextos, chegando mesmo a apresentar duas ou mais versões do mesmo relato. Estes dados permitem afirmar que estas tradições são maleáveis e dependem do(s) informador(es) e do contexto social em que se produzem (ibid., pp. 6-7). Heródoto parece adaptar essas informações ao seu discurso, moldando o seu conteúdo para transmitir uma determinada ideia. Do mesmo modo que os primeiros exploradores de África (ibid., p. 7), Heródoto recolheu informações orais sobre o passado das comunidades que conheceu, destacando-se, para os propósitos do presente trabalho, os relatos de I, 163* e IV, 152*. Para O. Murray (2007, p. 19), as Histórias contêm tradições orais que podem remontar a períodos compreendidos entre meados do séc. VII e o séc. V, colocando Heródoto no final de um processo definido por J. Vansina (2006, pp. 19-21) como chain of transmission (fig. 3.1).

O mesmo foi dito em relação a Homero. As fórmulas dos poemas (Nagy, 1996, pp. 13- 27; Sifakis, 1997) terão permitido a reprodução de determinadas passagens até à sua fixação por escrito (cf., no Anexo 1, "Homero"). A declamação de poesia, bem como dos episódios nela relatados, exigem o domínio de determinadas técnicas que facilitam a memorização e, consequentemente, a reprodução (Vansina, 2006, p. 4; Murray, 2007, p. 22). O conteúdo pode, não obstante, sofrer alterações (mais ou menos profundas) sem que isso afecte a forma, ou a sequência, do relato (Propp, 2006; Moreno, 2007; Albuquerque, 2010). Os relatos de Heródoto acabam, consequentemente, por reproduzir algumas dessas sequências, conhecidas graças à conservação dos Poemas Homéricos.

Os textos nem sempre apresentam mais de uma versão. Tal é o caso do relato de fundação de Gadir (Str. III, 5.5), baseado, muito provavelmente, numa tradição oral ("Os

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Gaditanos recordam"), do mesmo modo que Hdt. II, 44* sobre Tiro. Estes testemunhos anónimos acabam por ser o espelho do pensamento de um grupo social num determinado momento. Nas palavras de J. Vansina (2006, p. 20), "the informant does not have to have any conscious intent, when relating facts or events of the past, of doing so because of their histori- cal importance. The aim of a testimony is not necessarily that of recording history". Os textos assinalados podem ser vistos como documentos históricos? Ou como testemunhos de uma representação do passado/ imagem/ identidade da comunidade?

A ausência da fonte de informação é, nestes casos, um obstáculo, na medida em que impossibilita a leitura de um possível interesse na transmissão dessa versão dos acontecimentos. Se, no caso de Hdt. II, 44*, o informador é um sacerdote, noutros refere-se a população em geral (cf. Hdt. I, 171.5*), e noutros ainda, nada diz (I, 163*).

O AT (cf. introduções no Anexo 1) apresenta os mesmos problemas. Para além de apresentarem fórmulas que se repetem, cuja cronologia de formação é indeterminada, estes textos podem ser compilações de várias tradições orais, seleccionadas e manipuladas para formar um discurso e, sobretudo, uma mensagem. Ou seja, o documento escrito acaba por ser muito similar à oralidade num aspecto: nem um nem outro têm o objectivo de transmitir uma informação histórica.

Os problemas destas fontes são expostos no Anexo 1, para não sobrecarregar esta dissertação e para dar a quem a lê a hipótese de seleccionar as fontes ou os temas que mais lhe interessam. Sublinhe-se, porém, que o corpus desse Anexo é parcial, circunscrevendo-se às questões colocadas neste texto. Uma dessas questões é a relação que as fontes podem manter com o registo arqueológico, e o modo como é possível lançar um olhar sobre a materialidade através das fontes escritas, sobretudo quando referem processos de construção, reconstrução e desconstrução de identidades.

Por este motivo, é conveniente esclarecer que este trabalho não pretende analisar a "questão tartéssica", exclusivamente, com base no corpus de textos que mencionam esta entidade, ou numa leitura diacrónica destas referências. Estes servem, essencialmente, para definir os contornos de um problema geral e analisar o modo como foram utilizados para criar a imagem de uma entidade que seria arqueologicamente reconhecível (cap. 4).

Nestas leituras, como vimos na introdução, a cerâmica ganhou um destaque extraordinário como "indicador étnico", na medida em que a relação percentual entre fabricos manuais e a torno indicaria o predomínio da componente indígena face à oriental, ou vice-

versa. Porém, estou muito de acordo com J.L. Escacena (1992, pp. 325-327) quando afirma

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pode ser utilizado por comunidades diferentes sem que isso pressuponha uniformidade. Apesar desta evidente limitação, a presença de "tartéssios" foi, muitas vezes, determinada a partir do momento em que se reconhece uma ocupação do Bronze Final ou que se identifica um sítio no interior.

Por outro lado, a análise da arquitectura é bastante útil enquanto testemunho de uma presença e/ou influência externa, mas quando é analisada numa perspectiva global que valorize a sua aparição numa sequência ocupacional. Neste sentido, o uso de unidades de medida orientais (côvado), as técnicas construtivas e a planta da estrutura são elementos que permitem verificar se estamos perante uma transformação profunda das construções anteriores, ou numa nova fundação em que se utiliza, de raiz, essa planta, ou mesmo cenários de violência, quando assistimos a um desmantelamento programado e propositado da estrutura anterior. Neste sentido, há situações em que estes testemunhos arquitectónicos ocupam uma área até então desabitada (p. ex., em Alcácer do Sal: Silva et al., 1981), que pode significar uma de duas coisas: primeiro, a presença de um grupo de indivíduos de origem externa ou, segundo, uma expansão da área habitada motivada por razões internas.

Como veremos ao longo de todo este trabalho, nem sempre é possível responder a estas questões, devido à própria desigualdade qualitativa das escavações arqueológicas, motivada pelas circunstâncias de desenvolvimento dos trabalhos ou, inclusivamente, dos métodos de escavação. Não é, portanto, necessário desenvolver muito mais o tema do registo arqueológico neste capítulo, uma vez que é mais importante apresentar estas reflexões mais adiante, depois de expor os arqueossítios analisados. Além disso, os tópicos assinalados ganham outro sentido no próximo ponto, dedicado à contribuição da História de África para esta dissertação.