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Algumas questões teóricas da argumentação de Chaim Perelman

No documento Livro Proprietário - Redação Instrumental (páginas 148-155)

Argumentativo – Discursivos: Argumentação

3.9 Lógica Jurídica: Lógica dos Juízos de Valor

3.9.3 Algumas questões teóricas da argumentação de Chaim Perelman

Chaïm Perelman, professor na Universidade Livre de Bruxelas, publicou, em 1958, em coautoria com a professora Lucie Olbrecht-Tyteca, Tratado da argu- mentação: a nova retórica. O próprio subtítulo do livro já denota e acentua o caminho pelo qual o jurisfilósofo percorreu: a herança aristotélica. O primeiro parágrafo da introdução é muito significativo quanto a essa intenção do autor, pois escreve o filósofo e jurista, ao iniciar o seu Tratado da argumentação, tra- tar-se da “[...] publicação de um tratado consagrado à argumentação e a sua ligação a uma velha tradição, a da Retórica e da Dialética gregas” (PERELMAN, 2000, p. 1).

A primeira parte do primeiro parágrafo serve para afirmar com toda a clare- za, desde o início, uma genealogia que coloca a obra na direta sucessão da pro- blemática grega sobre a Retórica. As raízes são claramente afirmadas e remon- tam aos gregos, particularmente a Aristóteles. Essa referência grega é um reatar de uma tradição rompida e, ao mesmo tempo, a ruptura com uma outra tradi- ção, a da modernidade, fatos que o autor proclama ao afirmar: “[...] constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio saído de Descartes, que marcam com o seu selo a filosofia ocidental” (PERELMAN, 2000, p. 1).

Por essa razão, o alvo principal da Nova Retórica é a concepção de razão que teve origem com o pensamento cartesiano, ao qual dedica a primeira e a última

frase do Tratado da argumentação, uma vez que Descartes tem quase por falso tudo o que não é mais que verossímil (PERELMAN, 2000, p. 194).

Os estudos de Perelman vão além dos limites da Retórica antiga, que obje- tivava a arte de falar em público de forma persuasiva perante uma multidão, com o intuito de obter a adesão à tese defendida. A nova retórica, do filósofo de Bruxelas (2000, p. 6), estende-se à argumentação escrita e preocupa-se mais em compreender o mecanismo do pensamento “do que as de um mestre de eloquência cioso de formar praticantes”. Ela, na realidade, preocupa-se com o ponto de partida do raciocínio com o seu desenvolvimento e com o resultado a ser obtido, retomando conceitos e categorias da Antiguidade, ao valorizar a argumentação como técnica para lidar com valores, objetiva chegar a acordos, descritos pela argumentação.

As palavras perelmanianas, escritas em 1958, trazem, portanto, quase uma premonição do que será a crítica pós-moderna da razão, porque em vez da ne- cessidade do encadeamento das ideias no raciocínio e da evidência com que estas se impõem ao espírito, o vocabulário privilegiado é outro e nele emergem termos como verossímil, plausível, provável. A verossimilhança (2000, p. 6) dife- rencia-se da verdade porque aquela é semelhante ao vero e se decide apenas na instância interlocutória que é um auditório, por isso as provas são necessárias e estão voltadas para o estatuto aproximativo da probabilidade e do plausível.

A verossimilhança é, portanto, a marca do discurso retórico e, no espaço jurídico, cumprirá papel determinante na equação de realização do fenômeno jurídico em toda sua extensão. A noção de verossímil é tradicionalmente explo- rada na retórica argumentativa. A priori, característica de um modo de correla- ção entre o enunciado e a realidade, o verossímil deve ser compreendido tanto como um produto quanto como um fundamento do discurso.

O verossímil é uma qualidade da opinião, que a opõe ao verdadeiro. Ele cor- responde ao provável da estatística ou ao plausível da doxa, ou seja, às repre- sentações, maneiras de fazer, de pensar e dizer normais, coerentes, frequen- tes numa comunidade (rotinas, cenários, lugares-comuns, estereótipos), que pré-formam as expectativas e guiam as ações. Distinguem-se o verossímil dos argumentos e o verossímil dos esquemas argumentativos ou topoi, que, con- juntamente, devem produzir a persuasão. Relativamente aos argumentos, o ve-

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Daí o autor nos dizer que ao lado da prova para a lógica tradicional, dedutiva ou indutiva, impõe-se considerar também outro tipo de argumentos, os dialé- ticos ou retóricos.

As provas fundadoras de uma convicção não têm a exatidão de uma prova dedutiva ou científica, como já visto. Basta pensarmos no sistema jurídico e na sua codificação de um conhecimento procedimental em que a prova tende a fundar um saber, mas voltado para o campo do verossímil, do plausível ou do provável. Se toda a prova fosse reduzida à evidência não teria necessidade de prova (2000, p. 5), logo a noção de evidência tem de ser entendida, para que uma teoria da argumentação seja possível, como uma força de persuasão que se insere numa escala proporcional.

Campo do plausível porque fundado em juízos de adesão, que dependem do posicionamento do destinatário e não da natureza do objeto do discurso; à medida que se transfere a responsabilidade da decisão final ao destinatário do discurso, enquanto titular da adesão, a Nova Retórica, escapando dos limites fixados por Aristóteles, possibilita uma prática discursiva ágil e dinâmica em situações que não exigem mais que verossimilhança em suas conclusões.

O conhecimento psicológico, sociológico ou ideológico do auditório é, pois, essencial à própria eficácia da argumentação. Compreendemos que assim seja dado o papel central que a natureza do auditório tem na argumentação, visto que a argumentação tem por objetivo não propriamente a verdade, mas a ve- rossimilhança, essa semelhança ao verdadeiro só pode encontrar um critério de validade ou justeza naquilo que pensa o auditório, qual seja o seu estado de espírito, a força da sua convicção ou crença, eventualmente pela argumenta- ção aduzida.

Desse modo, num processo penal com intervenção de um júri, o que proces- sualmente está em causa não é tanto a verdade dos fatos, mas antes a adesão do espírito dos jurados a uma das teses em confronto: culpabilidade ou inocência (PERELMAN, 2000, p. 31).

A verdade, que, cartesianamente, se impõe pela evidência, não resulta de uma deliberação argumentada, nem é, por isso, também objeto de um consen- so. Deliberação e evidência são duas expressões quase contraditórias, porque, como descreve Perelman, “não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência” (PERELMAN, 2000, p. 1).

Como sublinha o jurista de Bruxelas (2000, p. 5), não há que se confundir “evidência” com “verdade”, uma vez que a “evidência” se referirá apenas à

adesão por parte do espírito que uma ideia merece. Estaremos, portanto, num campo puramente psicológico, enquanto que a questão da verdade, pelo me- nos na tradição racionalista cartesiana, contra a qual o teórico se inscreve em ruptura, implica uma necessidade e um constrangimento lógico.

O teórico define de prontoargumentação e demonstração e destaca a im- portância do tempo nessas categorizações. A citação abaixo esclarece a diferen- ça entre esses dois elementos contraditórios:

Damos o nome de argumentação ao conjunto das técnicas discursivas que permi- tem provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o termo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possibilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições ou, ainda, no terreno da lógica formal, passar, com a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um sistema a outras teses do mesmo sistema. Enquanto a demonstra- ção, em sua forma mais perfeita, é uma série de estruturas e de formas cujo desenvol- vimento não poderia ser recusado, a argumentação tem uma natureza não coercitiva: deixa ao ouvinte a hesitação, a dúvida, a liberdade de escolha; mesmo quando propõe soluções racionais, não há uma vencedora infalível.(PERELMAN, 2000, p. 15)

A demonstração clássica e a lógica formal de um lado, e a argumentação do outro, podem, ao que nos parece, reduzir-se a uma diferença essencial ao siste- ma: o tempo não tem a menor importância na demonstração; em contraparti- da, ele é, na argumentação, primordial, o ponto que melhor permite distinguir a argumentação da demonstração. Perelman (2000, p. 7) assinala que o tempo não cumpre papel algum na demonstração, entretanto, ele é fundamental para a argumentação, pois esta se insere no tempo porque é uma ação de indivíduos sobre outros: orador sobre interlocutor e vice-versa.

O filósofo e jurista de Bruxelas ao distinguir entre demonstração e argu- mentação ressalta que, inicialmente, a demonstração é desprovida de ambigui- dade, enquanto a argumentação decorre no seio de uma língua natural, cuja ambiguidade não pode ser previamente excluída. Além disso, a demonstração – que se processa em conformidade com regras explicitadas em sistemas for-

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Enquanto numa demonstração matemática, esses axiomas não estão em discussão, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipóteses, e por isso mesmo não dependem também de qualquer aceitação do auditório, na argu- mentação, a discutibilidade está sempre presente, já que o seu fim “não é de- duzir consequências de certas premissas, mas provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento” (PERELMAN, 2000 p. 15-17). Pode-se, então, dizer que, na linha de pensamento perelmania- no, a diferença entre demonstração e argumentação surge ligada ao modo como nele se distingue a lógica tradicional da retórica.

Segundo Bertrand Russel in Perelman (2000, p. 57), “o homem racional se- ria simplesmente um monstro desumano”, pois é um ser unilateral, que fun- ciona como uma máquina. Já o homem razoável não é sempre racional. Ele é influenciado pelo senso-comum ou pelo bom-senso e se esforça para fazer o que é aceito pelo seu próprio meio social e, se possível, por todos. Ele leva em consideração as mudanças das circunstâncias, a evolução social, a sensibilida- de, o desenvolvimento da moral e os critérios modificáveis da decência, uma vez que “o razoável de ontem não é o razoável de hoje”.

O que é razoável modifica-se à medida que a Humanidade evolui. Um indi- víduo razoável pode viver a qualquer momento com uma variedade de grupos, com diferentes ideais e filosofia, pois ele está preparado para viver num mundo pluralista, ao contrário do que é racional, o qual pode facilmente conduzir-nos a conclusões induzidas e socialmente inadmissíveis; e quando isso acontece, Perelman (2001, p. 57) relata que se deve reavaliar todo o sistema. No Direito, ele prossegue a ideia de “razoável corresponde a uma solução equitativa”.

Por essa razão, o objeto da argumentação jurídica é visar à sustentação de uma tese, de tal modo que cada tese é passível de uma antítese, o que determina que as escolhas dos argumentos aspiram a superar ou a minimizar as fragilidades dos sentidos da linguagem e a reforçar os procedimentos de sustentação da tese, já que a verdade dos argumentos é sempre parcial, pois não há verdade absoluta.

Nessa linha de pensamento, afirma o teórico belga (PERELMAN, 2000, p. 11): “Um argumento não é correto e coercitivo ou incorreto e sem valor, mas relevante ou irrelevante, forte ou fraco, consoante razões que lhe justificam o emprego no caso”. É por isso que o estudo dos argumentos, que nem o Direito nem as ciências humanas nem a filosofia podem dispensar, não se prende a uma teoria da demonstração rigorosa, concebida a exemplo de um cálculo me- canizável, mas a uma teoria da argumentação.

Portanto, existem decisões ou teses com fundamentos mais fortes, ou seja, com argumentos melhores que as sustentam, e que esses fundamentos, que nada mais são que argumentos, sustentam uma tese ou um posicionamento, mas não lhe comprovam a verdade, pois existem, no Direito, dois posiciona- mentos totalmente distintos, sem que em qualquer deles haja erro, razão por que se afirma que a verdade de cada um é sempre parcial.

A argumentação jurídica (2000, p. 15-17), portanto, centra-se inteiramente não na ideia de verdade, mas na de adesão, por isso o objeto de tal teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam.

É essencial, pois, que se conheça o auditório, saber quais são as teses que, se supõe, ele aceitaria, e que poderiam servir de premissas para a argumentação que o advogado se propõe a desenvolver, ou seja, que a Nova Retórica provoca o jurista a não pensar os fatos dentro dos ditames da lei, mas a pensá-los como ocorrências suscetíveis de valoração, ao lado de normas igualmente suscetí- veis de valoração, justapostas a provas também suscetíveis de valoração que se aconchegam em argumentos favoráveis ou contrários aos interesses em jogo em determinada causa, mas que, de qualquer forma, revelam-se por meio do discurso e da prática judiciária

Na realidade, o advogado (ou judiciário) busca a adesão de um auditório mais amplo do que a comunidade jurídica em si, procurando atingir a sociedade como um todo. Esse fato dialoga com o que Perelman (2000, p. 22) denomina auditório universal, isto é, aquele que não é persuadido apenas por argumentos jurídicos, mas que demanda uma fundamentação mais próxima da realidade social.

Dessa maneira, é impossível cogitar-se validamente do Direito sem pensar na sociedade sobre a qual atua e de que recebe o influxo. Direito e sociedade são realidades historicamente situadas, mutáveis e perfectíveis, em que de modo necessário se inscreve o homem, interagindo com seu semelhante na construção da vida cultural.

Sendo assim, mediante instrumentos retóricos (recursos e técnicas argumen- tativas), os advogados privilegiam determinados valores e fatos, em detrimento de outros. Criam-se, portanto, relações aparentes de causa e efeito, isto é, entre situações de fatos e normas jurídicas, por meio de argumentos quase lógicos,

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A argumentação das partes, segundo o teórico em estudo, tem como objeti- vo ou efeito fornecer ao juiz as razões que lhe motivarão a decisão, razões que ele considerará as melhores tanto para ele como para os juízes de apelação e de cassação que, eventualmente, teriam de apreciar sua decisão, e às quais terão de submeter-se as partes e opinião pública, que poderia exigir, eventualmente, uma modificação da legislação (PERELMAN, 2000, p. 504-505).

Além disso, o ato de provar fica assim indissociavelmente ligado a uma dimen- são referencial que implica a consideração das condições concretas do uso da lin- guagem natural e da ambiguidade sempre presente nas noções vagas e confusas que integram aquela. Do que se trata agora é de realizar uma prova nas e para as situações concretas em que se elabora, em face às quais se apresenta como justifi- cativa razoável de uma opção, pois, como diz o filósofo (PERELMAN, 2000, p. 80):

[...] a possibilidade de conferir a uma mesma expressão sentidos múltiplos, por vezes inteiramente novos, de recorrer a metáforas, a interpretações controversas, está ligada às condições de emprego da linguagem natural. O fato desta recorrer frequentemente a noções confusas, que dão lugar a interpretações múltiplas, a definições variadas, obriga-nos muito frequentemente a efetuar escolhas, decisões, não necessariamen- te coincidentes. De onde a obrigação, bem frequente, de justificar esta escolha, de motivar estas decisões.

O autor luta contra as ideias do direito natural e do positivismo. Busca, as- sim, traçar uma nova racionalidade. Segundo Alain Lempereu, que prefacia a obra Ética e Direto (2001, p. XV):

[...] o direito não é o lugar do irracional nem do racionalismo tal como é conhecido em ciência. O meiotermo proposto pela ‘Nova Retórica’ é o razoável e seu contraste, mais bem identificável por seus efeitos sociais, o desarrazoado. O filósofo de Bruxelas pleiteia, assim, que se leve em conta a atividade do direito, feita de debates, de trocas de argumentos e de questionamentos das ontologias assentes no real, no verossímil. O realismo radical de Perelman tem condições de explicar a evolução no direito: é suscitada por uma dialética entre formalismo e pragmatismo, entre legislador e juiz. Para encontrar a solução mais adequada, o estatismo do prescrito legal é adaptado pelo dinamismo da decisão judiciária.

ATENÇÃO

O verossímil seria um tipo de afirmação que admitiria o contrário; sua verdade não se subme- te à prova, mas postula o caráter de ser provavelmente verdadeira. Trata-se de um raciocínio, que provoca um efeito de verdade ou realidade, ou seja, algo é verossímil quando consegue provocar a representação de sua veracidade ou realidade.

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