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Descrição a Serviço da Narrativa: Circunstâncias do Fato

Fatos e Construção de Versões

2.2 Descrição a Serviço da Narrativa: Circunstâncias do Fato

Não há como narrar, sem um mínimo de descrição. Esse é também o entendi- mento de Genette (1971, p.265): “A descrição poderia ser concebida indepen- dentemente da narração, mas de fato nunca é encontrada em estado livre; a narração, por sua vez, não pode existir sem descrição”. Em outras palavras, há

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Todavia, se a narração não pode existir sem a descrição, essa “dependên- cia” não lhe retira a prerrogativa de lhe ser superior. Não é pelo fato de não se poder narrar sem se referir ou contar com determinados objetos e personagens (partes processuais) que a descrição se eleva à condição de superioridade. Pelo contrário, pois por maior que seja sua importância, sempre lhe é atribuído o papel de um simples auxiliar da narrativa.

Diferentemente da dinâmica do fio condutor da narração, na descrição o tempo não corre. Aliás, ele pode até mesmo inexistir. A respeito do tempo na descrição e na narrativa Genette afirma:

A narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo põe acento sobre o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, ao contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço [...] Duas atitudes antitéticas diante do mundo e da existência, uma mais ativa, a outra mais contemplativa7. (GENETTE, 1971, p. 267)

Em Direito a descrição da circunstância em que o fato ocorreu é muito rele- vante, pois por meio dela será desenhada a qualificação do acusado ou esclare- cimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime, dentre ou- tros procedimentos, segundo configura, por exemplo, no artigo 41 do Código de Processo Penal: A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimen- tos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando neces- sário, o rol das testemunhas. Leia:

Ivo Nascimento de Campos Pitanguy por homicídio doloso (quando há intenção de matar), o Ministério Público do Rio (MP-RJ) ofereceu denúncia à 40ª Vara Criminal contra o empresário por homicídio culposo (sem intenção). Atropelou e matou o ope- rário José Fernando Ferreira da Silva na madrugada de sexta-feira (21/8/2015).

Na denúncia, o Ministério Público requereu ainda o agravamento da pena pelo fato de "o homicídio culposo ser praticado na direção de veículo automotor ocorrer em faixa de pedestres ou na calçada e quando o motorista deixa de prestar socorro à vítima".

Percebe-se, por meio da descrição da circunstância em que o delito ocorreu, tem-se a tipificação da conduta, assim como a sua descaracterização, como no fragmento acima, e se há agravantes ou atenuantes para a conduta praticada.

Dessa maneira, em todas as situações fáticas, na área penal ou não penal, a narrativa jurídica vai-se construindo em uma sucessão temporal, e, consequente- mente, o juiz, ao buscar compreender o que se passou com as partes do processo para decidir no presente, participa de uma trama que se liga por um fio condutor que não pode ser apenas descrito, mas também narrado, razão por que narrativa jurídica é a maneira mais adequada para se compreender o Direito.

Observe:

A Autora teve um relacionamento esporádico com o Réu, do qual nasceu Pedro. Durante cinco anos, somente a Autora e a avó materna cuidaram da criança, nunca tendo o menor recebido visita ou auxílio financeiro do Réu, mesmo tendo ele reconhe- cido a paternidade.

Entretanto, em 10 de setembro de 2015, a Autora, a pedido do Réu, pai da criança, levou o menor para a cidade de Belo Horizonte/MG para que conhecesse os avós paternos, sobretudo o avô, que se encontra acometido de neoplasia maligna. Quando chegou à casa do Réu, a Autora foi agredida fisicamente por ele e outros familiares, sendo expulsa do local sob ameaça de morte e obrigada a deixar seu filho Pedro com eles contra sua vontade e o Réu fez questão, ainda, de reter todos os documentos da criança (certidão de nascimento e carteira de vacinação).

Em seguida, ainda sob coação física, a Autora foi forçada a ingressar em um ônibus e retornar ao Rio de Janeiro. Assim, com sua vida em risco, a Autora, desesperada, deixou o menor e viajou às pressas para a Cidade do Rio de Janeiro/RJ, onde reside com sua mãe, a fim de buscar auxílio.

Desde essa data (10/9/2015) o menor se encontra em outro Estado, na posse do Réu e de seus familiares, e a Autora, que sempre cuidou de seu filho Pedro, não sabe

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Como se nota na narrativa jurídica em estudo, o advogado narra os fatos com as formas verbais no passado e na terceira pessoa do singular, aproprian- do-se da fala da autora, por meio da paráfrase, em uma estratégia de apagamen- to da voz da autora, em busca da pretensão de que a verdade possua uma só ver- são. A esse fenômeno conforme já estudado, chama-se discurso monofônico. Observa-se que as circunstâncias que cercam os fatos precisam ser descritas porque elas são submetidas também à apreciação no contexto do caso concre- to, produzindo melhor entendimento acerca dos fatos narrados, além isso con- tribuem para tipificação da conduta praticada e na avaliação da possibilidade das atenuantes e/ou agravantes para o crime praticado.

Na realidade, a análise dos textos jurídicos permite que se entenda que o discurso jurídico reveste-se de uma tipologia própria, que é a do poder e da per- suasão. É essencialmente persuasivo, pois instaura sempre como destinatário direto ou indireto um alguém que, supostamente, tenha infringido o ordena- mento. Sendo assim, o espaço jurídico conduzirá os efeitos de poder e as rela- ções de força que se instauram entre os sujeitos que, inscritos em uma forma- ção ideológico-discursiva, passam a ser vistos como seres socializados que se utilizam de certos fatos e argumentos de “verdade” que lhes servem de sustento.

Sabe-se que o discurso não é o do advogado, pois nos momentos em que se manifesta dentro do Processo, é sempre a voz e o desejo de seu cliente que está representando, embora, na narrativa jurídica, por exemplo, apague a voz do autor para que se tenha a ilusão do discurso da “verdade” única, em busca da persuasão dos fatos narrados. Essa linha de pensamento pode ser vislumbrada nas demais partes da peça processual e não só na narração dos fatos, mas esta será ponta de lança para os demais elementos que comporão a peça jurídica.

Leia este fragmento extraído do caso concreto Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro Gallo e Margot Proença Gallo (ELUF, 2002, p.53) e atente para a descrição intencional nele apresentada e da sua importância como fator de persuasão:

“ [...] No dia em que foi assassinada, Margot trajava blusa de algodão branca e saia xadrez nas cores verde e vermelho. Sapatinho de salto baixo, parecia uma colegial. Tinha 37 anos de idade. [...]”

Parece que a descrição presente na Denúncia teve a intenção de reforçar o ponto de vista de que a vítima não se portava dentro do padrão moral e social exigido àquela época à mulher casada e que, de fato, o adultério poderia sim ter- se consumado, seguindo em uma direção para denegrir a conduta da vítima.

A descrição intencional se volta para o modo como a vítima se vestia, mostra -a como uma colegial, embora tivesse 37 anos, como se não assumisse a idade que tinha, e as roupas descritas minuciosamente, reforçam esse ponto de vista, pois pertencem ao campo semântico da jovialidade, em plena década de 70, como: blusa de algodão, saia xadrez verde e vermelha (típica das jovens ingle- sas), sapatinho de salto baixo (muito usado pelas adolescentes de 70).

A própria construção do período curto –“Tinha 37 anos de idade –“parece estar repleto de intencionalidade, como: levar o auditório a refletir sobre o fato descrito (pausa para reflexão) em uma busca persuasiva para o lançamento da TESE que será proposta mais adiante. Afinal, àquela época, adultério era cri- me, o que levava fatalmente à absolvição do réu, pois havia assassinado a vítima para “lavar a sua honra”– crime em defesa da honra –, indo ao encontro dos valores da sociedade patriarcal e machista que reinava ainda naquela década.

A descrição pormenorizada reforça circunstâncias, voltadas para o compor- tamento da vítima, as quais não poderão passar despercebidas pelo Tribunal de Júri, assim como irão contribuir para a sustentação da tese que se pretende ser aceita pelo auditório.

RESUMO

A narração reproduz, dentro da sequência temporal do texto, a sucessão temporal dos fatos ou acontecimentos do mundo real, havendo, pois, uma sequência de situações que se enca- deiam em direção a um fim ou resultado.

Já a descrição apresenta funções diversas e sempre surge nos vários tipos de textos como um tipo auxiliar a serviço deles, sobretudo na narração. A descrição suspende o curso do tempo e contribui para estender a narração, dando-lhe movimento e auxiliando-a na fun- ção persuasiva.

Na descrição não há uma progressão temporal como no texto narrativo, a ordenação das situações se dá em uma relação de simultaneidade. No texto descritivo, as propriedades, os as-

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2.3 Modalização da Linguagem: Seleção