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Construção: Fatos e Versões

Fatos e Construção de Versões

2.1 Construção: Fatos e Versões

Analisa-se aqui a noção de fato, segundo a abordagem do pragmatismo filosófi- co, porque, nessa perspectiva, é visto como uma narração (construção humana), que reflete os interesses das partes (advogado), afastando-se da teoria da con- cepção da objetividade na interpretação do fato e da teoria da “verdade” como correspondência, e a prova é examinada como descrição, voltada à persuasão.

O fato (suporte fático concreto) será trabalhado, portanto, como versões tra- zidas pelas partes, incompatível com a tese de que existe uma única versão “ver- dadeira” passível de ser descoberta. Tenta-se explicar, de modo simples e lógi- co, como ocorre a passagem do fato, do mundo fático para o mundo jurídico.

Leia a crônica de Luís Fernando Veríssimo para melhor compreensão do que foi ensinado até o momento:

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:

– Agora me lembro, não era um homem, eram dois.

E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:

– Então está com o terceiro!

Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o ma- taram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revista- ram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela. – Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfaleci- da – gritaram os aldeões.

Matem-no!

– Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu! E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.

O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor.

Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter pa- ciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.

Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.

Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:

– A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?

O pescador deu de ombros e disse: – A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.

(VERÍSSIMO, 1966, p. 144-145)

Como se pode notar pela crônica lida, no processo jurisdicional não é diferen- te. As partes, nesse contexto, apresentam-se ao órgão de justiça, oferecendo cada qual a sua versão para os fatos, geralmente antagônicas, uma em relação à outra.

Nota-se, então, que “fato” não é algo independente da elaboração de quem o narra. Os advogados, por exemplo, constroem os fatos com os meios que lhes são disponíveis e, principalmente, constroem-nos por meio da linguagem. Todo fato ao ser elaborado é narrado. E, como se sabe, fatos podem ser narra- dos de diferentes maneiras, conforme texto apresentado.

Em todos os casos concretos haverá uma reconstrução de uma história par- ticular- narrativa jurídica-, em que cada uma das partes envolvidas em um lití- gio buscará e tentará propor uma leitura dos acontecimentos que possa receber o consentimento daquele que julga a ação. E a versão será considerada mais ou menos plausível à medida que ela for capaz de integrar o maior número de pro- vas e de resistir às leituras adversas, conforme texto lido e como descreve Carlos Drummond de Andrade em seu poema “A verdade dividida”:

capítulo 2

 • 53

A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava

só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou

conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Entende-se, assim, que os fatos ingressam na órbita jurídica não em estado bruto, mas sob a forma de uma narrativa jurídica e que um mesmo encadea- mento narrativo pode ser narrado e interpretado de várias maneiras.

Portanto, não há como não reconhecer o caráter interpretativo da apreen- são dos fatos na narrativa jurídica, que devem ser narrados e descritos em uma linha temporal rigorosamente linear, com um raciocínio lógico, coeso e coe- rência narrativa.

Por fim, o aluno - futuro advogado- deve atentar para o fato de que a narrati- va tem sim uma função argumentativa e alguns dos fatos que são selecionados para compô-la vêm para o reforço das ideias que serão expostas na argumenta- ção propriamente dita, que será no próximo elemento, por exemplo, da Petição Inicial, denominado “Do Direito”. Logo, desde o início da narrativa jurídica, o advogado, ao narrar os fatos, já está procurando persuadir o seu auditório (juiz, tribunal de júri).

CURIOSIDADE

O fato pode ser visto de múltiplos pontos de observação. Quem está “certo”? Onde está a “verdade”? Narra-se uma história que pode ser considerada uma boa alegoria.

“Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E à medida que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: “Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemen- te. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acre- ditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida".

(Autor desconhecido)

Percebe-se que não há, nesse texto, qualquer dúvida quanto aos fatos, ape- nas sobre como interpretá-los.

2.2 Descrição a Serviço da Narrativa: